O mistério das náuseas causadas pela erva
Sierra Callaham tinha 23 anos quando sofreu a sua primeira crise de um mês com dores abdominais, náuseas e vómitos cíclicos diários. Ficou perplexa, mas atribuiu tudo ao stress – o trabalho estava complicado e ela andava desavinda com a família. Os medicamentos para as náuseas e a ansiedade ajudavam na maioria dos dias. À noite, quando não estava activamente a vomitar, mantinha a sua rotina habitual de consumir um pouco de erva. Queria tanto “relaxar e não estar presente no meu corpo”, disse.Sierra vive no estado de Washington, onde o consumo recreativo de canábis é legal desde 2012 e era há muito consumidora diária, embora moderada: fumava um pouco todas as noites para dormir melhor. Antes do seu primeiro episódio gastrointestinal, no final de 2020, vaporizava óleo de canábis concentrado com uma caneta a pilhas. Depois de os sintomas parecerem superados, passou a fumar charros previamente enrolados durante alguns anos, antes de regressar ao vapor.No início de 2024, sofreu outra crise que durou semanas – cãibras debilitantes na barriga e vómitos diários e incontroláveis – que a levaram duas vezes às urgências hospitalares. Numa dessas visitas, um médico das urgências perguntou-lhe se consumia canábis. Todas as noites, respondeu Sierra. Ficou chocada quando o médico lhe deu um diagnóstico provisório: síndrome de hiperémese por canabinóides (SHC), por vezes conhecida simplesmente como enjoo de erva.Episódios recorrentes de náuseas, vómitos e dores abdominais são os sintomas clássicos desta condição gastrointestinal intrigante, associada ao consumo frequente e a longo prazo de marijuana, sobretudo de produtos de alta potência. Os médicos australianos descreveram pela primeira vez a síndrome de hiperémese por canabinóides em 2004 (os canabinóides são compostos, como o THC ou o CBD, presentes na marijuana; “émese” é o termo clínico para vomitar). Não se sabe quantas pessoas padecem de SHC, mas um estudo realizado em 2018, extrapolando os dados de um levantamento realizado junto de pacientes de urgências hospitalares, apresenta um número tão elevado como 2,75 milhões de pessoas por ano nos Estados Unidos. Um resumo da investigação mais recente publicado pelo Journal of the American Medical Association sugere que está a ser cada vez mais diagnosticado: as visitas às urgências hospitalares devido a SHC duplicaram nos EUA e no Canadá entre 2017 e 2021.O que está por trás desse aumento? Segundo Deepak Cyril D’Souza, professor de psiquiatria e director do Centro para a Ciência da Canábis e dos Canabinóides de Yale, um dos factores é a crescente potência dos produtos à base de canábis. Há trinta anos, amostras apreendidas pelas autoridades continham, em média 4% de THC. Desde 2022, a média é cerca de 16%. O óleo dos cartuchos de vaporização como os que Callaham consumia pode conter uma percentagem tão alta como 85%.Os estudos também apontam para a crescente legalização da erva para consumo recreativo. Num estudo descritivo publicado em 2022 no American Journal of Gastroenterology, os investigadores compararam o número de pacientes que deram entrada num grande hospital de Massachusetts devido a SHC entre 2012 e 2020, constatando um aumento significativo após a legalização de canábis no estado, em finais de 2016.A SHC é uma maleita frustrantemente inconstante. “É mesmo um mistério algumas pessoas parecerem ser vulneráveis e outras não”, diz Deepak. “A maioria das pessoas que fumam canábis diariamente não sofrem disto”, reconhece Christopher N. Andrews, gastroenterologista e professor clínico na Universidade de Calgary. E entre as que sofrem, os sintomas não são constantes. “Vai e vem, acontece em ciclos”, explica Deepak. Christopher Andrews acrescenta que se os sintomas de SHC fossem mais constantes, a síndrome poderia motivar mais pacientes a interromperem o consumo de canábis.Uma das teorias sobre a causa da SHC envolve o eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA), que regula as respostas do organismo ao stress, ajustando os equilíbrios hormonais. O consumo crónico de canábis “faz esse pêndulo ir mais longe num dos sentidos do que no outro”, diz o médico. É possível que desencadeie sintomas ao estimular o eixo HPA de forma anormal.Poderá também haver alguma susceptibilidade genética em jogo e a depressão e ansiedade são comuns nas pessoas afectadas pela síndrome. “O paradoxo é que não percebemos o que desencadeia a síndrome num momento específico”, diz David Levinthal, director do Centro de Neurogastroenterologia e Motilidade no Centro Médico da Universidade de Pittsburgh. Alguns dos principais suspeitos são falta de sono e stress intenso.Outra faceta estranha da SHC: as pessoas tendem a demorar-se longamente no duche. “As pessoas com SHC relatam com frequência sentir alívio dos sintomas tomando banho com água quente, algo que pode levar a banhos compulsivos”, diz Maria Isabel Angulo, professora assistente de Medicina Interna e Pediatria na Universidade de Illinois. Isto sugere que a área do cérebro que ajuda a regular a temperatura corporal (o hipotálamo) poderá estar envolvida na síndrome.Sejam quais forem as causas, as consequências a longo prazo da SHC podem ultrapassar os longos períodos de desconforto intenso. As complicações podem incluirdesidratação grave e desequilíbrios de electrólitos, potencialmente causadores de lesões renais, anomalias do ritmo cardíaco e convulsões. Em casos raros, estas complicações revelaram-se fatais.Por complicado que seja ignorar os seus sintomas, pode ser difícil diagnosticar correctamente a SHC, dizem os médicos, em parte porque estes sintomas são idênticos aos de outras condições gastrointestinais e porque os pacientes nem sempre são sinceros sobre os seus hábitos. “A forma de chegar ao diagnóstico é [fazer o paciente] parar de consumir de canábis, provando retroactivamente que era a canábis” que causava os sintomas, recomenda Christopher Andrews.A interrupção também é a única solução duradoura conhecida para a SHC. E embora o mito de a canábis não ser viciante persista, o abandono súbito de um consumo regular pode causar sintomas como ansiedade, irritabilidade, perturbações do sono e perda de apetite e o alívio pode demorar semanas ou meses a chegar. “Como se demora tanto tempo a melhorar depois de deixar a canábis, as pessoas podem pensar que a canábis não tinha nada que ver com os seus sintomas”, resume o médico. Até a ideia da abstinência pode levar alguns consumidores crónicos a sentirem relutância em aceitar a condição.Com Sierra Callaham, isso não aconteceu. Quando o seu médico das urgências lhe deu pela primeira vez informação sobre a SHC, ela mostrou-se céptica. “Pensei que não poderia ser, dada a forma deliberada como consumia”, diz. “Porém, assim que li os documentos, percebi. E foi nesse dia que parei.”Já não consome desde então. Não foi fácil e teve de lutar contra desejos e de reaprender a sentir-se descontraída sem estar sob o efeito da canábis. Mas torna-se mais fácil quando se lembra da gravidade da hiperémese. “Sentia-me tão desesperada por melhorar”, reconhece.Que mais se aprende sobre os potenciais efeitos da erva de alta potência, sobretudo entre os adolescentes?O consumo de marijuana comporta riscos, mas os investigadores têm preocupações específicas sobre a forma como os produtos de canábis com alto teor de THC podem afectar a saúde mental. Nos adultos, as evidências sugerem que os consumidores de canábis de alta potência, sobretudo os consumidores frequentes, correm maior risco de desenvolver psicose e perturbação do consumo de canábis, uma incapacidade de deixar a droga, mesmo quando causa problemas de saúde ou sociais. Alguns estudos associaram a canábis de alta potência a depressão e ansiedade, embora seja difícil encontrar evidências de risco acrescido.Os profissionais de saúde asseguram que a situação é mais alarmante quando se trata de adolescentes. Os consumidores precoces de produtos de canábis de alta potência, como os que são consumidos através de vaporização e dabbing, correm riscos de ansiedade, depressão e pensamentos suicidas, juntamente com impactes na memória, função cognitiva e motivação. Os adolescentes que consomem concentrados de canábis correm mais riscos do que aqueles que consomem formas não concentradas de canábis. E como o cérebro dos adolescentes ainda está em desenvolvimento, existe um risco concreto de lesões permanentes.Sendo um fenómeno relativamente novo, os concentrados apanharam desprevenidos alguns pais, cuidadores e professores. Uma vez que a vaporização produz um cheiro mais ténue e é tão simples como carregar num botão, os adolescentes têm facilidade em escondê-la. O número de adolescentes que consome através de dabbing ainda não será significativo, mas um relatório recente assegura que quase um quinto dos jovens norte-americanos com 12 a 17 anos que consumiam canábis tinham consumido concentrados dessa forma no último ano.Talvez de um modo contra-intuitivo, as preocupações com a erva de alta potência desencadearam pedidos ao governo federal para que retirasse a canábis da sua categoria mais restrita de drogas ilícitas. Os limites legais do teor de THC variam consoante os estados e algumas restrições à canábis permitiriam regular a sua potência a nível federal. Esta reclassificação foi iniciada em 2024, na administração presidencial anterior, mas agora encontra-se num limbo. A proibição da canábis ainda não foi revogada.Artigo publicado originalmente na edição de Setembro de 2025 da revista National Geographic.