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Terça-feira, Novembro 11

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Palácio dos Ventos

Assim nasceu o Hawa Mahal, ou "palácio dos ventos", um edifício de arenito vermelho e rosa com 953 pequenas janelas que permitiam ver o exterior e, além disso, favoreciam a circulação do ar.Inspirado na coroa do deus Krishna, o design deste palácio acabou por se tornar um símbolo arquitectónico único em todo o Rajastão. As treliças delicadamente esculpidas não só ofereciam privacidade aos seus moradores, mas também mantinham a temperatura baixa durante os meses mais quentes. Formado por cinco andares que se assemelham a uma colmeia, o Hawa Hamal continua a ser um dos monumentos mais visitados da Índia, uma mistura de estética e funcionalidade que se encaixa perfeitamente nas rígidas normas sociais da época.

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Antes da COP30: as metas das principais cimeiras do clima

A 30ª edição da cimeira climática da ONU começou, nesta segunda-feira, na cidade de Belém, Brasil. Representantes de cerca de 170 países estão a participar num contexto em que o negacionismo das alterações climáticas está em alta e cada vez mais países se mostram contra a celebração de acordos a nível internacional.A "Conference of the Parties" (COP) enquadra-se na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, um tratado adoptado em 1992 e em vigor desde 1994. É composta por 197 partes (196 estados e a União Europeia) e é uma das três "Convenções do Rio", resultantes da Cimeira da Terra realizada em 1992 na cidade brasileira. As outras duas são a Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica e a Convenção de Combate à Desertificação.O objectivo final da COP é a "estabilização dos gases com efeito de estufa a um nível que impeça uma interferência antropogénica perigosa no sistema climático". As suas decisões baseiam-se nos relatórios do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), o principal organismo científico internacional para o estudo das alterações climáticas.Hoje, recordamos 145 das mais memoráveis COPs e as suas principais decisões.METAS ESTABELECIDAS NAS PRINCIPAIS CIMEIRAS SOBRE O CLIMACOP 1. Berlim, 1995: Na primeira Conferência do Clima da ONU, os signatários concordaram em reunir-se anualmente paramanter o controlo sobre o aquecimento global e reconheceram a necessidade de reduzir as emissões de gases poluentes.COP 3. Quioto, 1997: Foi aprovado o Protocolo de Quioto com o compromisso de reduzir as emissões de gases de efeito estufa nos países industrializados. Estabeleceu as bases do futuromercado de direitos de emissões de carbono.COP 13. Bali, 2007: Foi estabelecido um calendário de negociações para um novo acordo internacional que substituísse o Protocolo de Quioto e incluísse todos os países, não apenas os desenvolvidos.COP 15. Copenhaga, 2009: Foi validado o objectivo de manter o aquecimento global abaixo de 2 ºC e os países desenvolvidos comprometeram-se a financiar os países em desenvolvimento a longo prazo.COP16. Cancún, 2010: Foram redigidos os Acordos de Cancún, que formalizaram os compromissos estabelecidos em Copenhaga, e foi criado o Fundo Verde para o Clima, destinado principalmente acções climáticas nos países em desenvolvimento.COP17. Durban, 2011: Todos os países se comprometeram a começar a reduzir as emissões, incluindo os EUA e os países emergentes (Brasil, China, Índia e África do Sul). Foi decidido negociar um acordo global que entraria em vigor em 2020.COP18. Doha, 2012: Foi decidido prorrogar o Protocolo de Quioto até 2020. Países como os Estados Unidos, China, Rússia e Canadá não apoiaram a prorrogação.COP20. Lima, 2014: Pela primeira vez, todos os países concordaram em desenvolver e partilhar o seu compromisso de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa.COP21. Paris, 2015: Após 20 anos de negociações, foi aprovado por unanimidade o Acordo de Paris, um tratado que insta os signatários a "manter o aumento da temperatura média global muito abaixo de 2 °C em relação aos níveis pré-industriais e a prosseguir os esforços para limitar esse aumento de temperatura a 1,5 °C".COP23. Bona, 2017: Foi lançada a Plataforma de Diálogo de Talanoa para promover a participação e o diálogo das comunidades locais na luta contra os efeitos das alterações climáticas. Foi adoptado um Plano de Acção de Género para garantir o papel das mulheres na tomada de decisões relacionadas com as alterações climáticas.COP26. Glasgow, 2021: Uma emenda de última hora introduzida pela China e pela Índia suavizou a linguagem que havia circulado anteriormente num rascunho de texto sobre "a eliminação da energia de carbono não estabilizada e dos subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis". O acordo também pede prazos mais rigorosos para que os governos actualizem os seus planos de redução de emissões.COP27. Sharm el-Sheikh (Egipto), 2022: Foi encerrada com um acordo inovador para fornecer financiamento por perdas e danos a países vulneráveis afectados por inundações, secas e outras catástrofes climáticas. Os países concordaram com a criação de um fundo e dos mecanismos de financiamento necessários. Além disso, foi criada uma via para alinhar os fluxos financeiros mais amplos com um desenvolvimento com baixas emissões e resiliente às alterações climáticas.COP28. Dubai, 2023: Todos os olhos estavam postos nas propostas para a eliminação dos combustíveis fósseis. No entanto, apesar das grandes ambições e expectativas, a cimeira foi manchada no último momento por importantes desacordos entre as partes, que enfraqueceram o projecto inicial. Como consequência, o texto final mal mencionava o petróleo, o gás natural e o carvão. Entre as principais conclusões, destacam-se o compromisso de triplicar as energias renováveis até 2040 e duplicar a taxa média mundial de melhoria da eficiência energética. Além disso, foi estabelecido um compromisso efectivo para abandonar progressivamente os combustíveis fósseis, a fim de atingir a meta de emissões líquidas zero em 2050, e falou-se pela primeira vez em eliminar progressivamente os subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis que não abordam a pobreza energética nem as transições justas. COP29. Baku (Azerbaijão), 2024: A última cimeira do clima terminou com um sabor amargo. A única conquista destacada pelas organizações ambientais foi a reafirmação do compromisso global de abandonar os combustíveis fósseis, proposto na edição anterior da COP. Algo que, no entanto, contradizia o facto de a cimeira ter sido realizada, pela terceira vez consecutiva, num país fortemente orientado para a exploração de petróleo.

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Assim correu a curiosa visita de Júlio César a Cícero

No dia 19 de Dezembro de 45 a.C., Cícero recebeu Júlio César na sua propriedade em Puteoli (actual Pozzuoli), na região da Campânia, perto de Nápoles.Numa carta ao seu amigo Ático, Cícero confessou os seus sentimentos contraditórios em relação a essa visita, que aos seus olhos foi mais um "acantonamento", pois César chegou com 2.000 soldados, o que o obrigou a habilitar três refeitórios para alimentar os seus oficiais.Eis a transcrição do relato em que Cícero explicava a Ático como César comeu e bebeu sem reservas, mostrou-se agradável e conversador com o seu anfitrião, mas sem chegar a iniciar conversas verdadeiramente importantes:"Bem, afinal não tenho motivos para lamentar a visita do meu formidável hóspede! Pois ele comportou-se de forma extremamente agradável. Mas, quando chegou à villa de Filipe na noite do segundo dia das Saturnálias do ano 325 [21 de Dezembro de 45 a.C.], a villa estava tão cheia de soldados que mal havia espaço para César jantar. Dois mil homens, nada menos!Eu estava muito preocupado com o que aconteceria no dia seguinte; então, Cássio Barba veio em meu auxílio e forneceu-me guardas. Um acampamento ao ar livre foi instalado e a vila foi posta em estado de defesa. Ele permaneceu com Filipo no terceiro dia das Saturnálias até a uma hora da manhã, sem receber ninguém. Penso que estava a tratar de assuntos com Balbo [Lúcio Cornélio Balbo]. Depois, deu um passeio pela praia. Às duas horas, foi aos banhos. A seguir, soube do que aconteceu com Mamurra sem se abalar [interpreta-se que se refere à sua morte]. Foi ungido e sentou-se à mesa. Estava sob o efeito de eméticos e, por isso, comeu e bebeu sem escrúpulos e à vontade. Foi um jantar excelente, bem servido, e não só isso, mas 'comida bem cozinhada e temperada, com uma conversa requintada: um banquete, em resumo, para alegrar a alma' [refere-se a alguns versos do poeta Lucílio].Além disso, o pessoal foi agraciado em três salas com um estilo muito generoso. Os libertos de classe inferior e os escravos tiveram tudo o que podiam desejar. Mas os de classe alta tiraram proveito de um jantar realmente requintado. Na verdade, mostrei que era alguém. No entanto, não é um convidado a quem se diria: 'por favor, volte a visitar-me quando regressar'. Uma vez é suficiente. Não dissemos uma palavra sobre política. Houve muita conversa literária. Em resumo, ele estava contente e divertiu-se. Disse que ficaria um dia em Puteoli e outro em Baiae. Esta é a história do entretenimento, ou poderia chamá-lo de hospedagem por minha conta, testando a minha paciência, mas sem me causar grandes inconvenientes. Ficarei aqui por pouco tempo e depois irei para Tusculum. Quando passava pela vila de Dolabella, toda a guarda se formou à direita e à esquerda do seu cavalo, e em nenhum outro lugar. Isso foi-me contado por Nicias."

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A IA tem um novo objectivo: acabar com os vírus biológicos

O sistema imunitário é uma verdadeira maravilha biológica repleta de mecanismos celulares e outras moléculas com capacidades que parecem saídas da ficção científica.Entre essas proteínas que parecem impossíveis, destacam-se os anticorpos, pequenas máquinas biológicas produzidas pelos linfócitos B cuja função é reconhecer e neutralizar os inimigos. Para isso, eles são formados por duas partes: uma que é muito semelhante em todos eles e que serve como estrutura e outra incrivelmente variável, localizada nas extremidades, que é usada para reconhecer tudo o que possa representar uma ameaça.Guiando essa incrível capacidade de reconhecimento, os investigadores conseguiram desenvolver ferramentas extremamente específicas contra praticamente qualquer toxina ou patógeno. Essas ferramentas, denominadas anticorpos monoclonais, baseiam-se na criação de anticorpos específicos para um objectivo concreto e, posteriormente, na sua produção em massa através do cultivo das células B que os produzem. Para isso, eles precisam unir o linfócito B a uma célula de mieloma, dando origem ao que é conhecido como hibridoma, um tipo de célula imortal que produz anticorpos constantemente.No entanto, o desenvolvimento de anticorpos monoclonais específicos é uma tarefa complexa, uma vez que se baseia principalmente em métodos experimentais. Ou seja, para obter um anticorpo monoclonal humano contra um vírus ou uma bactéria, é necessário encontrar um humano ou animal que tenha sido infectado pelo patógeno e cujas células B produzam anticorpos contra ele. Depois disso, é necessário extrair as células B, criar os hibridomas e, finalmente, iniciar a produção. Este processo, embora tenha sido optimizado ao longo do tempo, continua a ser muito complexo, trabalhoso e, em muitos casos, pouco rentável, o que limita as possibilidades desta tecnologia.ACELERANDO A PRODUÇÃO COM IAPor isso, um estudo publicado recentemente na revista Cell é muito promissor para a investigação e produção de anticorpos. Neste estudo, uma equipa multidisciplinar de diferentes centros demonstrou que um modelo de inteligência artificial especializado no desenvolvimento de proteínas era capaz de projectar anticorpos humanos. Além disso, esses anticorpos podiam reconhecer proteínas e outras características específicas de vírus.Para testar o modelo de linguagem, ao qual chamaram MAGE (do inglês Monoclonal Antibody Generator, ou Gerador de Anticorpos Monoclonais), os investigadores treinaram-no oferecendo-lhe sequências de anticorpos monoclonais específicos contra o vírus da gripe aviária H5N1. Depois de aprender as sequências, o MAGE conseguiu projectar novos anticorpos contra outras estirpes do vírus que não foram observadas na natureza, mas que podem surgir no futuro.Portanto, o MAGE permitiria preparar defesas contra possíveis ameaças sanitárias emergentes. Desta forma, os investigadores poderiam saltar a primeira etapa da produção de anticorpos monoclonais. Agora, em vez de terem de encontrar uma pessoa ou animal infectado com o vírus e examinar os seus linfócitos B até encontrarem o que lhes interessa, poderiam projectar directamente os hibridomas à medida, introduzindo neles as sequências geradas pelo MAGE.Como indica um dos seus autores, Ivelin Georgiev, "este estudo é um marco importante no caminho para o nosso objectivo final: usar computadores para projectar de forma eficiente e eficaz novos produtos biológicos a partir do zero e transferi-los para a clínica".BOAS NOTÍCIAS PARA DIFERENTES TERAPIASActualmente, os anticorpos monoclonais são utilizados como terapias para doenças muito diferentes entre si. Por isso, Georgiev afirma que "esta nova abordagem terá um impacto positivo significativo na saúde pública e pode ser aplicada a uma ampla gama de doenças, incluindo cancro, doenças auto-imunes, doenças neurológicas e muitas outras", afirmou.De acordo com a Antibody Society, todos os anos são aprovados aproximadamente entre 10 e 15 novos medicamentos baseados em anticorpos monoclonais, tanto nos Estados Unidos como na Europa. Estas terapias são utilizadas para combater doenças tão diferentes como a asma, a artrite reumatóide, a doença de Crohn, para evitar rejeições em transplantes ou como tratamento para o cancro.Mas com a implementação da IA, espera-se que este número aumente substancialmente. Como indicam os autores do estudo, eles analisaram pormenorizadamente e experimentaram apenas uma pequena parte das sequências geradas pelo MAGE, mas acreditam que, ocultos entre os dados, possa haver muitos outros anticorpos interessantes com propriedades funcionais melhoradas. No entanto, pedem prudência ao usar essa tecnologia contra outros antígenos para os quais ainda não foram desenvolvidos anticorpos monoclonais. Nesses casos, esperam que a eficiência do resultado seja muito menor. Mesmo assim, este resultado pouco optimizado poderia servir como um raio de esperança para pacientes com doenças aparentemente incuráveis.

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Nesta semana, Alcaide celebra a arte de dismistificar os cogumelos

Não são plantas nem animais: os fungos existem num reino à parte. E embora, nos últimos anos, a polémica acerca do perigo para a saúde do consumo de cogumelos silvestres não tenha esmorecido, a verdade é que são muito poucas as espécies mortíferas (em Portugal estão identificada dez letais contra 150 tóxicas). De qualquer modo, há um evento anual no concelho do Fundão que procura esclarecer os visitantes sobre esta entidade tão misteriosa quanto fascinante. De 12 a 16 de Novembro, o Míscaros – Festival do Cogumelo, em Alcaide, dedica cinco dias a celebrar o património fúngico, mas também culinário, proporcionado por este mutante da natureza.O cogumelo e a HistóriaO cogumelo é consumido há milhares de anos, mas mais que a sua antiguidade é o papel que tem tido na história da cultura humana que fascina e lhe dá relevância. Desde os egípcios aos gregos, passando pelas civilizações meso-americanas como os maias ou o Império Chinês, o cogumelo é constantemente associado aos deuses. Tal deve-se à capacidade que algumas espécies possuem de conceder alegadamente ao consumidor a habilidade de ver o futuro, contactar com o mundo divino, atravessar as fronteiras da realidade.Sabemos que, na Grécia, um tipo de cogumelo que crescia no esporão de centeio se consumia em festas como as Bacanálias como se fosse o 5G do Olimpo. Já na Europa medieval, os cogumelos eram temidos como algo maldito. Em vários países, certos exemplares possuíam alcunhas tudo menos inocentes: cogumelo do Diabo, cogumelo de Satã... Os chamados anéis de fadas eram vistos como um portal infernal: os seres humanos evitavam aí colocar os pés e levar o gado a pastar, antes que as vacas produzissem mau leite, ou pior, morressem. Talvez por isso os cogumelos apareçam em tantos contos de fadas como um perigo ou, então, como morada de duendes ou anões.A relação pagã com esta maravilha da natureza é, claro, oposta à dos seus congéneres cristãos. Na Escandinávia, os vikings. Nas suas fileiras, pontificavam os berserkir, os mais ferozes e inumanos dos seus guerreiros, descritos como caminhantes. Nas suas crónicas, descrevem-se rituais onde a ingestão de uma espécie específica, o Psilocybe semilanceata, lhes causavam visões.A ideia, aliás, do uso deste produto na indústria militar não ficou enterrada nas brumas medievais. Nos anos a seguir à Segunda Guerra Mundial, o exército dos Estados Unidos da América criou um largo programa originalmente baptizado como “Projecto Cogumelo”, onde a CIA também estava envolvida. O objectivo era descobrir se o uso de alucinógenos funcionaria no processo de interrogação a presos. Vários cientistas atravessaram as antigas terras maias de Oaxaca em busca da milagrosa “carne dos deuses”, como os locais lhes chamavam.Uma aldeia em crescimentoEm Portugal, foram identificadas mais de 500 espécies de cogumelos, sendo que uma parte considerável dos míscaros comestíveis cresce nas encostas da serra da Gardunha. Não é, portanto, por acaso que o concelho do Fundão – também célebre pelas suas deliciosas cerejas – enaltece-os enquanto recurso alimentar. Em Alcaide, durante quatro dias outonais, o cogumelo é rei. De quarta-feira a domingo, o programa do Míscaros – Festival do Cogumelo oferece passeios micológicos, guiados por especialistas, e convida a degustar pratos confeccionados com o ingrediente-vedeta da festa. Enquanto os come, a paisagem da Beira Baixa, as curvas dos montes da Gardunha, acompanhá-lo-ão. Embora a Liga dos Amigos do Alcaide e a Câmara Municipal do Fundão sejam os organizadores oficiais, toda a aldeia está fortemente envolvida nos preparos. São os cientistas que conduzirão as explicações, em workshops e demonstrações, mas são os alcaidenses que tratam do resto. Se passear nas ruas, verá fitas de muitas cores, como se chovessem, ou outro género de decoração mais curiosa como roupa interior branca: ceroulas, cuecas, soutiens. Na verdade, há quinze anos que o festival se repete e com grande sucesso. Mudou a vida da aldeia, de tal forma que de há uns anos para cá houve a necessidade de lhe dedicar mais dias para que a própria população apreciasse o seu festival e os seus cogumelos. Em terras da cereja e também da castanha, a dedicação de Alcaide aos míscaros sobressai. A apanha do cogumelo é algo complexo na realidade portuguesa, porque basicamente não existe enquadramento legal para quem o faz. O que significa que, muitas vezes, à procura do negócio, encontramos alguns amadores do fungo que não sabem distinguir, por exemplo, algo venenoso de algo comestível.Numa entrevista ao portal Rostos da Aldeia, José Matos, um dos conselheiros científicos do festival pelos seus conhecimentos micológicos, queixa-se que chegam muitas vezes a Alcaide camionetas de turistas, com pás e baldes em braço, que apanham o que podem e estragam ainda mais o que deixam. Matos começou, também ele, por ser um turista, mas daqueles que a aldeia procurava: alguém que, interessado pela paz do interior e pelo ritmo lento de Alcaide, chegou aqui para ficar. Abriu uma quinta com o companheiro, Paulo, e enquanto Matos estuda cogumelos, Paulo cozinha-os com grande sucesso.Alcaide está cheio destas pequenas histórias, de quem abandonou as cidades, como a mais próxima Castelo Branco ou a capital do país Lisboa para poder usufruir. Há uns anos, havia bastantes casas para alugar em Alcaide. Segundo Fernando Tavares, presidente da Liga de Amigos de Alcaide, neste momento já é impossível encontrar sequer uma. Responsabiliza o próprio festival pela recém-descoberta relevância deste local e portanto, quando o Míscaros acontece todos os anos, a alegria justifica-se. O que ver e o que fazerNo Míscaros – Festival do Cogumelo, as actividades de um vasto programa vão da culinária ao turismo de natureza, passando por palestras científicas. Seria longo descrever tudo o que se vai passar, mas a animação está garantida. Pode, além disso, passear por Alcaide e arredores.a aldeia é o local de nascimento de duas importantes figuras do período de transição entre a monarquia e a república: João Franco, famoso primeiro-ministro de Dom Carlos I, e Cunha Leal, feroz republicano e uma das principais figuras das suas fileiras. As suas casas-berço encontram-se bem conservadas e abertas para visita. Entre tascas, pequenas igrejas e pinturas murais, conheça os bosques circundantes onde crescem os apetecíveis míscaros.O Rota da Portela da Gardunha (PR6 FND) é um óptimo guia, dez quilómetros que se fazem em três horas e meia e o levam ao miradouro da Portela de Alpedrinha, onde pode contemplar a Gardunha completa. Lá em baixo, neste Outono, a cor dos castanheiros rodeia Alcaide – e a beleza é tão grande que nem necessita de ingerir fungos para julgar que está a alucinar.

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Quando o penteado é definido pela tradição

Os membros desta tribo semi-nómada mantêm um estilo de vida tradicional e isso reflecte-se no cabelo. Os homens usam cristas penteadas para trás, enquanto as mulheres se enfeitam com complexas tranças embebidas em otjize, uma pasta espessa feita com manteiga e ocre-vermelho.Antigamente, homens e mulheres himba usavam roupas tradicionais, especialmente adaptadas ao clima quente e semi-árido da região. Hoje, apenas as mulheres vestem roupas atávicas, como saias e sandálias feitas de pele. Quando atingem a idade de casar, elas fazem mais tranças, às quais acrescentam extensões feitas de lã. Dispostas para a frente, estas servem para esconder o rosto dos homens enquanto são solteiras, e são colocadas novamente para trás após o casamento.Esta não é a única mudança de aparência relacionada com as transições do ciclo de vida e o estatuto social desta tribo. Quando têm filhos, elas elaboram complexos adornos chamados erembe, esculpidos em pele de ovelha, formados por múltiplas madeixas de cabelo trançado tingido, às quais dão forma com pasta de otjize.

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A Google está a procurar formas de ter bases de dados no espaço

A inteligência artificial, a mesma que utiliza para criar imagens de estilo Ghibli e perguntar todo o tipo de banalidades, chegou a um ponto em que precisa de cada vez mais energia e potência de cálculo.Até agora, o limite era estipulado pelos centros de dados do planeta. Mas a Google quer ir um passo além e convida-nos a aderir a uma das suas últimas ideias: treinar a IA com uma rede de computadores instalada nas constelações de satélites equipados com processadores, conhecidos como TPU, preparados para treinar e executar modelos de inteligência artificial e conectados através de ligações ópticas.Como podemos aproveitar o espaço para maximizar os centros de dados?É aqui que surge a primeira pergunta: porque temos de ir até ao espaço para este fim? Segundo a informação disponível da webpage da Google, a premissa original é que o Sol emite mais de 100 mil milhões de vezes a energia produzida por toda a humanidade. Colocado na órbita adequada, um painel solar poderá gerar até oito vezes mais energia do que sobre a superfície do nosso planeta – e de forma quase contínua. Por conseguinte, teríamos energia de sobra para impulsionar redes de IA que não dependessem de centros de dados terrestres.Os pormenores técnicos do Projecto Suncatcher foram publicados num documento intitulado Towards a future space-based, highly scalable AI infrastructure system design, que descreve como seria um sistema modular de satélites interligados. Cada um teria processadores TPU e comunicaria com os restantes através de ligações ópticas de alta capacidade. O objectivo seria escalar a dimensão de computação de futuros modelos de IA sem consumir recursos terrestres, nem aumentar a pegada de carbono.Esta constelação de satélites ocuparia a órbita heliossíncrona, ou seja, estaria sempre sobre uma zona do planeta exposta à iluminação solar. Trata-se, portanto, de uma órbita estável e quase permanentemente iluminada. E embora tudo isto pareça uma fábula, é fácil de perceber por será necessário superar obstáculos para concretizar este projecto tão ambicioso. Por exemplo, conseguir ligações de dados equivalentes a um centro terrestre. As primeiras simulações indicam que seria possível alcançar dezenas de terabits por segundo, sempre que os satélites se encontrassem muito perto uns dos outros. Mas, como é evidente, deparamo-nos, então, com o segundo problema.Seria necessário um controlo orbital de extrema precisão. É por isso que os investigadores da Google desenvolveram um estudo, segundo o qual precisariam de um enxame de 81 satélites posicionados a 650 quilómetros de altitude, separados entre 100 e 200 metros. Este conjunto poderia manter-se estável com manobras mínimas e poderia compensar os efeitos gravitacionais e o arrastamento atmosférico. Mas ainda há outro desafio por superar.No espaço, os componentes electrónicos sofrem impactos constantes de partículas energéticas. Google testou o seu TPU v6e, um acelerador de IA de sexta geração, expondo-o a um feixe de protões de 67 milhões de electrão-volts. Esta quantidade é suficiente para um protão conseguir atravessar material sólido – tal como a radiação espacial faz. Felizmente, os resultados demostraram que os componentes só sofreram pequenas falhas, com doses quase três vezes superiores às que receberiam numa missão de 5 anos.Mas é claro que nos ainda falta abordar o factor económico. Historicamente, este tem sido um dos grandes travões da exploração espacial. Com a redução dos custos dos lançamentos espaciais, a empresa de Mountain View crê que, em meados da próxima década, o preço poderá ficar abaixo dos 175 euros por quilo. Se isto acontecer, o custo de um centro de dados orbital poderia ser equiparável ao de um centro terrestre.A inteligência artificial que veio do espaçoAinda não devemos comemorar, pois o projecto ainda se encontra em fase de investigação, mas talvez a Google, em colaboração com a empresa Planet, lance dois satélites de teste para validar este estudo e comprovar a eficácia das comunicações ópticas. Estes satélites poderão verificar como os processadores se comportam em condições de microgravidade, usando o espaço como campo de treino improvisado.A Google sabe que não só terá dificuldades como as acima mencionadas, como deverá enfrentar a dissipação do calor no vácuo, por exemplo. Terá de garantir a fiabilidade de todos os sistemas e estabelecer ligações estáveis com a Terra. A Google já tem experiência com projectos que pareciam uma loucura, mas foram implantados no seu organigrama. Falamos, por exemplo, na computação quântica ou na tecnologia que tornou possível a circulação de veículos autónomos nas estradas dos EUA.Teremos de esperar para ver se o projecto consegue avançar e se os modelos de inteligência artificial do futuro não vivem só em centros de dados na Terra, mas também no espaço. As constelações de satélites alimentadas por energia solar, processando dados a velocidades incríveis, poderiam fazer parte da imagem do nosso futuro. Tudo está nas mãos dos investigadores da Google e da energia proveniente do astro rei.

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A três velocidades

Em terra, o movimento das focas não é o mais rápido: deslocam-se para a frente, oscilando entre o peito e a pélvis. No gelo, são muito mais rápidas, mas são melhores na água. As focas são nadadoras ágeis e os seus corpos estão adaptados ao ambiente aquático. Assim, quando querem nadar rapidamente, as focas mantêm as barbatanas dianteiras junto ao corpo e impulsionam-se com as barbatanas traseiras, enquanto a parte de trás do corpo se move de um lado para o outro. Se, pelo contrário, querem nadar lentamente, estendem as barbatanas dianteiras para se estabilizarem com elas.E como se isso não bastasse, têm também uma visão que lhes permite ver dentro e fora de água. E tudo para sobreviver!

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Uma reunião amistosa no mar dos Açores

Há muito que se sabe que os cetáceos se organizam em grupos socialmente complexos, mas as orcas têm registado recentemente comportamentos ainda não descodificados, investindo contra embarcações no Sul da costa portuguesa.Os três protagonistas desta história, são, no entanto – e até prova em contrário – inocentes desses comportamentos. As biólogas Georgina Cabayol e Laura González, integradas na empresa de observação de cetáceos Futurismo Azores Adventures, em articulação com o Programa MONICET, estão a reunir novos elementos, utilizando a foto-identificação para reconhecer cada indivíduo a partir da pigmentação e da forma particular de cada barbatana dorsal. Com um catálogo recolhido desde 2006, já conseguiram identificar um universo de 75 indivíduos diferentes nas águas açorianas e encontraram um trio especial.Os dois machos e a fêmea da fotografia, foram avistados juntos em 2012, 2021, 2022 e 2023, sugerindo pela primeira vez nos Açores a existência de laços sociais de longo prazo. Com uma esperança de vida que pode chegar a 90 anos, talvez voltem a ser vistos juntos nas águas açorianas. O catálogo está agora a ser comparado com projectos similares da Islândia, de Gibraltar e do Canadá na esperança de cartografar os movimentos de longo curso destes animais notáveis e perceber se haverá mais grupos de amigos que, de tempos a tempos, se juntam em reuniões sociais.

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Carlos Magdalena, o salvador de plantas à beira da extinção

O homem a que chamam messias das plantas, Carlos Magdalena, ouviu falar nas notícias pela primeira vez sobre o caso do Ramosmania rodriguesi, um arbusto de café da ilha de Rodrigues (no arquipélago da Maurícia) que se pensava estar extinto durante grande parte do século XX. Até 1980, isto é, quando um estudante descobriu um único sobrevivente à beira da estrada.Os Jardins Botânicos Reais de Kew, em Londres, adquiriram uma muda, mas os horticultores não conseguiram que ela produzisse sementes. O café e as suas flores em forma de estrela pareciam condenados – até Magdalena chegar ao Kew em 2003.Na altura, ele era apenas um estagiário de 30 anos vindo de Espanha, o que não o impediu de fazer experiências – amputando o estigma e colocando pólen na ferida, cultivando a árvore em condições mais quentes. “E então”, diz ele, “de repente, boom, consegui fazê-lo”: propagar este arbusto de café e reintroduzi-lo em Rodrigues. “Foi uma lição de conservação”, acrescenta. “Se uma planta não pode ser salva, de que adianta mantê-la viva? E a questão é que talvez não possamos salvá-la agora, mas talvez possamos salvá-la em 20 anos.”Magdalena, agora especialista em horticultura em Kew, fez do renascimento de espécies ameaçadas de extinção o trabalho da sua vida. Cerca de 45% das espécies angiospérmicas estão potencialmente em perigo de extinção, de acordo com a instituição onde trabalha, mas os mamíferos ameaçados de extinção – baleias, por exemplo – tendem a dominar as manchetes. “Talvez estejamos a focar-nos no topo da pirâmide, quando nos devemos focar é na base”, diz Magdalena. “As plantas são os alquimistas do nosso universo.”Magdalena viajou até aos penhascos da Maurícia, às florestas tropicais da Amazónia e às planícies da Austrália em busca de espécies de plantas ameaçadas de extinção para propagar, sempre atraído pela sua planta mais preciosa, o nenúfar.“Talvez estejamos a focar-nos no topo da pirâmide, quando nos devemos focar é na base.”Para ajudar a salvar o nenúfar-anão, Nymphaea thermarum, uma espécie ruandesa que cresce em fontes termais, o horticultor espanhol solicitou sementes ao Jardim Botânico da Universidade de Bona, na Alemanha, onde os horticultores não conseguiam cultivá-las até a maturidade. Magdalena abordou o problema com a sua habitual dedicação obsessiva e, certa noite, enquanto cozinhava tortellini, encontrou a solução: talvez o nenúfar precisasse de mais dióxido de carbono para crescer? Ele semeou as sementes em solo húmido, apenas um a dois milímetros abaixo da água, permitindo que as folhas emergentes absorvessem ar desde o início. “Sempre digo que a obsessão tem má reputação”, diz ele, reconhecendo a sua busca compulsiva. “Mas acho que a obsessão faz coisas incríveis.”Essa combinação de persistência e abordagem intuitiva para resolver mistérios botânicos contribuiu para as descobertas de Magdalena, diz Richard Barley, antigo director dos jardins de Kew: “Ele é muito bom a dedicar-se a um problema por um período de tempo até que a solução se apresente.” “As plantas são os alquimistas do nosso universo.”Segundo estimativas dos investigadores de Kew, ainda existem cerca de 100.000 espécies de plantas por descobrir. “Estamos a destruir ecossistemas inteiros sem saber o que estamos a perder”, afirma Magdalena. Em 2006, enquanto navegava na Internet, ele deparou-se com uma foto de um nenúfar gigante na Bolívia. À primeira vista, percebeu que era diferente das outras duas espécies conhecidas de nenúfares Victoria. Após anos de investigação, incluindo análises de ADN, Magdalena e uma equipa de especialistas de Kew e da Bolívia confirmaram que a planta era realmente uma terceira espécie: Victoria boliviana. Era uma planta com folhas de três metros de comprimento, um elefante metafórico na sala que escapou à classificação durante mais de um século. “Foi uma grande lição para mim”, diz Magdalena. “O que mais existe por aí?” Extensão de artigo publicado originalmente na edição de Abril de 2025 da revista National Geographic, incluído no dossier "Os 33 da National Geographic" (aqui adaptado e integrado na série "Os novos pioneiros da National Geographic")

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Na Grécia antiga, acreditava-se que a masturbação era para fracos. Agora sabemos porquê.

Compreender os antigos gregos é iniciar uma viagem fascinante pela história de uma civilização cujos ideais atribuíam ao corpo humano um papel central, tanto na arte, como na filosofia, como na vida quotidiana.Sabemos, por exemplo, que eles eram obcecados por dietas – algo que não difere muito da sociedade em que vivemos hoje –, que tinham a nudez em boa conta (até mesmo os atletas competiam sem roupa) ou que o sexo era uma parte natural do seu dia-a-dia. Sobre este último aspecto, conhecer novos detalhes permite-nos, de certa forma, aceder a uma intimidade que remonta a 2.000 anos atrás. E talvez uma das perguntas mais frequentes a este respeito seja: por que razão os antigos gregos concebiam a masturbação como uma fraqueza?Agora, um artigo publicado no Journal of the History of Sexuality e assinado pela historiadora Kelly L. Wrenhaven, da Universidade de Cleveland, lançou luz sobre a questão: embora tivessem poucos tabus em relação à sexualidade, os gregos associavam essa prática àqueles que pertenciam aos escalões mais baixos da sociedade: mulheres, escravos e estrangeiros. MASTURBAÇÃO: FALTA DE AUTO-CONTROLO?Diógenes, pai do cinismo, é conhecido pelas suas provocações filosóficas e pela sua rejeição das normas sociais de Atenas. Pouco se sabe, no entanto, sobre uma anedota que protagonizou na ágora por volta do século IV a.C. O filósofo, fiel ao seu ideal de auto-suficiência, decidiu masturbar-se em público. O seu gesto não foi um acto de libertinagem, mas uma declaração moral – uma crítica à hipocrisia e ao controlo que a sociedade exercia sobre o corpo e o desejo. Mas nem todos os gregos tinham a mesma perspectiva. No artigo de Wrenhaven, a investigadora explica que a masturbação, na mentalidade grega clássica, era interpretada como um sinal de falta de domínio sobre si mesmo (enkráteia). E numa cultura em que a virtude residia precisamente na capacidade de conter os impulsos – a temperança, conhecida como sophrosýne–, o auto-prazer era visto como um sintoma de fraqueza moral. Por outras palavras, para os cidadãos livres e educados, o controlo do corpo era uma prova de superioridade moral. Além disso, perder o sémen – de acordo com as crenças médicas e filosóficas da época – implicava perder uma parte vital do corpo. Daí que o seu desperdício, especialmente fora do coito com fins reprodutivos, fosse percebido como um acto de empobrecimento físico e moral. A DIFERENÇA ENTRE CIDADÃOS SUPERIORES E INFERIORESTodo este contexto levou Wrenhaven a detalhar como a hierarquia do desejo estava profundamente impregnada na estrutura social grega: a masturbação não era um acto físico, mas uma metáfora do status. Nos discursos literários e filosóficos, aqueles que a praticavam eram representados como seres sem disciplina, dominados pelo corpo: escravos que não podiam ter acesso ao prazer do coito, mulheres relegadas à passividade ou estrangeiros alheios à paideia (o sistema de educação e formação ética da Grécia antiga). Em contrapartida, o homem livre, dono de si mesmo e do seu corpo, demonstrava a sua virtude precisamente através do controlo e da moderação.Hoje em dia, a ciência desmontou muitas dessas crenças que inquietavam os antigos. Sabemos que a masturbação não implica perda de vitalidade nem deterioração física e que, longe de ser um sinal de fraqueza, faz parte da saúde sexual. Mas como é interessante compreender como os gregos a interpretavam! Esta nova investigação permite espreitar uma sociedade que fez do corpo um espelho da alma e do desejo uma medida da virtude.

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O chupa-cabra – como a evolução criou um monstro mítico

A existência do chupa-cabra foi relatada pela primeira vez em Porto Rico, em meados da década de 1990. Desde então, as histórias sobre o misterioso monstro de aspecto canino que chupa o sangue do gado desperta medo – e fascínio – no México, na região sudoeste dos EUA e até na China.No entanto, os cientistas dizem que conseguem explicar as histórias com a ajuda da teoria evolutiva.Relatos de pessoas que dizem ter avistado chupa-cabras de carne e osso em datas tão recentes como 2023, fazem com que a criatura mítica seja mais acessível ao estudo do que, por exemplo, o monstro do Lago Ness ou o Bigfoot.Em quase todos estes casos, os monstros revelaram-se coiotes com casos muito graves de escabiose, uma doença dermatológica dolorosa e potencialmente mortal que provoca a queda do pêlo dos animais e o encarquilhamento da pele, entre outros sintomas.Para alguns cientistas, isto é suficiente para explicar os alegados chupa-cabras. “Não me parece que tenhamos de olhar mais a fundo ou de pensar noutra explicação para estes avistamentos”, disse Barry OConnor, entomologista da Universidade do Michigan, que estudou o Sarcoptes scabiei, o parasita que provoca a escabiose.Do mesmo modo, Kevin Keel, um especialista em doenças de animais selvagens, viu imagens de cadáveres de alegados chupa-cabras e identificou-os claramente como coiotes, embora diga que consegue imaginar que outras pessoas não o façam.“Continua a parecer um coiote, mas é um péssimo exemplo de coiote”, diz Keel. “Não me ocorreria que fosse um chupa-cabra se o visse no meio da floresta, mas eu já observo coiotes e raposas com escabiose há algum tempo. Um leigo poderia ficar confuso quanto à identidade do animal.”O que é um chupa-cabra?O Sarcoptes scabiei também causa a irritação cutânea conhecida como sarna nos seres humanos. Os ácaros enfiam-se sob a pele do hospedeiro, segregando ovos e resíduos que desencadeiam uma resposta inflamatória do sistema imunitário.No ser humano, a sarna – a reacção alérgica aos resíduos dos ácaros – costuma ser um mero incómodo. Mas a sarna pode ser mortal para caninos como os coiotes, que não desenvolveram reacções particularmente eficazes para combater as infecções com Sarcoptes.OConnor especula que o ácaro tenha sido transmitido do ser humano para os cães domésticos e destes para coiotes, raposas e lobos em estado selvagem.A sua investigação sugere que a razão para as respostas dramaticamente diferentes reside no facto de os seres humanos e outros primatas terem vivido com o ácaro Sarcoptes durante grande parte da sua história evolutiva, enquanto outros animais não.“Os primatas são os hospedeiros originais” do ácaro, disse OConnor. “A nossa história evolutiva com os ácaros ajuda-nos a mantê-la [a sarna] sob controlo, fazendo com que não escale como acontece com os [outros] animais.”Por outras palavras, os seres humanos evoluíram até um ponto em que o nosso sistema imunitário consegue neutralizar a infecção antes de a infecção nos neutralizar.Os ácaros também têm estado a evoluir, sugeriu Keel. O parasita teve tempo de optimizar o seu ataque aos seres humanos de forma a não nos matar – o que eliminaria a nossa utilidade para os ácaros, disse ele.O Sarcoptes ainda não encontrou esse equilíbrio nos animais não-humanos. Nos coiotes, por exemplo, a reacção pode ser tão grave que provoca queda do pêlo e constrição dos vasos sanguíneos, somando-se a uma fadiga geral e até exaustão.O que um chupa-cabra comeUma vez que os chupa-cabras são provavelmente coiotes com escabiose, isso explica porque lhes chamam frequentemente “chupa-cabras”, uma vez que atacam o gado e lhe drenam todo o sangue.“Os animais com escabiose costumam ficar bastante debilitados”, disse OConnor. “E se tiverem dificuldades em capturar as suas presas normais, podem caçar gado, porque é mais fácil.”Quanto à parte de chupar o sangue da lenda do chupa-cabra, talvez seja uma história da carochinha ou um exagero.“Acho que é simplesmente uma lenda”, disse OConnor.EquívocosLoren Coleman, director do Museu Internacional de Criptozoologia, em Portland, no estado americano do Maine, concordou que muitos avistamentos de chupa-cabras, sobretudo os mais recentes, podem ser explicados como avistamentos de coiotes, de cães ou híbridos de coiote-cão com escabiose.“É certamente uma boa explicação”, disse Coleman, “mas não explica a lenda toda.”Por exemplo, os mais de 200 relatos originais de avistamentos de chupa-cabras em Porto Rico em 1995 descreveram uma criatura que não era, definitivamente, canina.“Em 1995, o chupa-cabra era considerado uma criatura bípede com pouco menos de um metro de altura e coberto de pêlo cinzento curto, com espigões no lombo”, disse Coleman.No entanto, tal como acontece no jogo do telefone sem fio, a descrição do chupa-cabra começou a mudar em finais da década de 1990, devido a erros e traduções equivocadas das notícias, disse ele. Em 2000, o chupa-cabra original com espinhos afiados já fora praticamente substituído pelo novo, de aspecto canino. Uma criatura que era considerada bípede, agora perseguia o gado sobre quatro patas.“Foi um grande erro”, disse Coleman.“Devido a toda aquela confusão – com a maior parte da comunicação social a dizer que os chupa-cabras eram cães ou coiotes com escabiose –, deixámos de ouvir relatos decentes de Porto Rico ou do Brasil, como acontecia nos primeiros tempos. Estes relatos desapareceram e os relatos de canídeos com escabiose aumentaram.”As origens da lendaComo explicar, então, a lenda original do chupa-cabra?Para Coleman, uma das possibilidades é as pessoas terem imaginado coisas depois de terem visto – ou ouvido falar sobre – um filme de terror com extraterrestres que estreou em Porto Rico no Verão de 1995.“Se olharmos para a data da estreia do filme Espécie Mortal em Porto Rico, veremos que se sobrepõe à primeira explosão de relatos”, disse ele.“Depois comparamos as imagens da personagem desempenhada por [actriz] Natasha Henstridge, Sil, e reparamos nos espigões inconfundíveis que ela tem nas costas, que correspondem a muitas das primeiras imagens dos chupa-cabras de 1995.”Outra teoria é que as criaturas de Porto Rico eram um bando fugitivo de macacos-rhesus, que se erguem frequentemente sobre as suas patas traseiras.“Havia uma população de macacos-rhesus que era utilizada em experiências hematológicas em Porto Rico naquela altura e o bando pode ter fugido”, disse Coleman.Explicar o chupa-cabra “pode ser algo assim tão simples ou pode ser algo muito mais interessante”, acrescentou Coleman, “porque sabemos que estão sempre a ser descobertos animais novos”.

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Caminhando ou pedalando: uma outra maneira de conhecer Dão e Lafões

Estamos numa zona de imensa variedade de trilhos que nos levam a descobrir a brutalidade do granito beirão, mas também a frescura dos seus cursos de água e a variedade da sua fauna. São quatro os percursos no seio da natureza que lhe propomos explorar na Comunidade Intermunicipal Viseu Dão Lafões, mais concretamente nos concelhos de Carregal do Sal, Nelas, Penalva do Castelo e Sátão. SátãoJá foi aos míscaros? Devia, fazem um maravilhoso arroz. Mas realmente, é preciso ter cuidado, que os míscaros são cogumelos. Se não souber distingui-los, pode embarcar numa aventura sem regresso. O concelho de Sátão dedica-lhes um percurso pedestre.O caminho começa no Santuário de Nosso Senhor dos Caminhos, no lugar de Rãs. Daí, salta-se de sinal em sinal, nas margens do Vouga, numa caminhada mais longa, 18 km circulares, mas de baixa dificuldade. Ideal para um dia de descompressão absoluta. Pelos pinhais, chega ao Convento do Senhor Santo Cristo da Fraga e, entre pontes, sobe para a Capela de São Matias. Seguindo o património religioso, mais à frente dará de caras com o Convento de Santa Eufémia. Entre casas de agricultores e o verde sempre presente, estará de regresso ao ponto de partida.Em Sátão, o mais antigo concelho de Portugal com foral dado pelo conde Dom Henrique, há para descobrir a Igreja de Santo André, o Solar dos Viscondes de Banho ou o Convento de Senhora de Oliva. Penalva do CasteloCuriosamente, Penalva não tem castelo. Este existiu algures na Idade Média, mas já não é possível encontrá-lo. Mas há o trilho de Nossa Senhora da Ribeira. São quase sete quilómetros de um percurso circular nas margens do rio Coja, começando na capela dedicada à aparição mariana que dá nome à rota.É um dos principais pontos de interesse, juntamente com os açudes e moinhos que pontuam o percurso do rio e os campos de cultivo de vinhas, que serão transformadas em líquido rubro e claro do Dão, e com a interessante formação geológica das marmitas do gigante, depressões que, quando as águas são suficientes, criam piscinas naturais.Entre as matas de carvalhos e pinheiros e o murmúrio do rio, talvez tenha a sorte de observar a fauna autóctone, como a gralha-preta, o pisco-de peito ruivo ou o chapim. Se preferir uma abordagem mais arqueológica, a Rota dos Cenários do Passado (percurso de Esmolfe) leva-o, durante quatro 4,5 km, a descobrir os monumentos megalíticos mais significativos do concelho.Carregal do SalÉ impossível vir a Carregal do Sal e não mergulhar no seu património pré-histórico. Já o mencionámos em artigos anteriores, como este. Pode fazer o trilho que aí que sugerimos, mas deixamos a referência ao Percurso Patrimonial de Cimalhinhas ou a Rota da Pinha e do Pinhão. Durante muitas décadas, este valioso conjunto arqueológico esteve ao abandono, coberto de matagal e ervas daninhas. Apenas com trabalhos recentes de limpeza e sinalização, estes monumentos tornaram-se acessíveis ao público.Em Carregal, encontra o Museu Manuel Soares de Albergaria, dedicado à Pré-História e baptizado com o nome do homem que mais fez por dar a descobrir este lado do concelho. Encontrará duas sepulturas antropomórficas no lugar de Passal, onde se encontra uma necrópole com várias sepulturas geminadas. O destaque é a Lapa da Moura, um dólmen com inscrições rupestres, hoje não sobrando mais do que um penedo ancestral.Curiosamente, o dólmen é neolítico, mas as incrições… são romanas. Estando em Carregal, faça um favor a si mesmo e estacione em Cabanas de Viriato. A Casa Museu Aristides de Sousa Mendes, hoje recuperada, celebra a vida do nosso diplomata mais famoso e da sua afirmação de ética humanista que ainda hoje perdura não só da nossa memória, mas nas famílias das pessoas que salvou, cuja contribuição monetária foi fundamental para este projecto.NelasNelas é a terra da Casa de Santar, que certamente merece uma visita. Mas o que queremos recomendar é algo que fará melhor à saúde do que um dia inteiro em redor de uma famosa torneira que, em vez de água, oferece vinho.No lugar de Caldas da Felgueira, uma estância termal traz todos os anos visitantes e promove o bem-estar e a saúde. Nesta aldeia, encontra também uma praia fluvial com parque de piqueniques e um trilho pedestre que percorre a envolvente das termas. O percurso começa e acaba no balneário termal e é um convite a tratar da saúde do corpo com métodos mais vigorosos… mas não em demasia.Verá o Grande Hotel termal, a antiga Pensão Maial e um pouco da história da exploração termal desta terra em edifícios que serviram esta causa. Segue-se uma série de caminho rurais, com vistas excelentes para o Mondego, que atravessa esta aldeia, e antes de regressar ao balneário, há oportunidade de observar a Cascata da Pantanha. Aproveite para conhecer a história destas termas, cujas águas curam doenças respiratórias e de pele, e com uma fama tal além fronteiras que após a Segunda Guerra Mundial receberam muitos refugiados de guerra alemães.ECOPISTA DO DÃO e vougaNo apontamento final, também temos sugestões para os que preferem a religião do pedal. Na Comunidade Intermunicipal  Viseu Dão Lafões, há 285 km de percursos cicláveis (incluindo a Ecopista do Dão e Vouga). Muitos desses quilómetros aproveitam a desactivação de linhas de comboio agora convertidas em pistas apostadas na mobilidade suave. É não só, claro, excelente para a sua saúde, como lhe permite conhecer, com vagar e de forma alargada, o património desta região. Desde 2022 que esta comunidade tem desenvolvido também um sistema público de bicicletas partilhadas, presente em todos os 14 municípios que a integram.

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Reportagem: No interior do jardim mais venenoso do mundo

Os guardiões do jardim venenoso, nos terrenos adjacentes ao Castelo de Alnwick, em Northumberland (Inglaterra), preparam-se todos os anos para o pior cenário. O jardim, o maior do seu género no mundo, está fechado por trás de portões de ferro decorados com caveiras e exibe mais de cem variedades de plantas tão mortais que não é possível entrar sem supervisão. E há sempre desmaios!As visitas guiadas começam a cada 30 minutos, e os guias avisam os visitantes para não tocarem, lamberem ou colherem plantas enquanto ouvem falar dos envenenadores da história e vêem as poções que lhes serviam de arma. Há o Envenenador da Chávena de Chá [Teacup Poisoner] que iniciou a sua vil série de assassínios ao drogar a irmã com Atropa belladonna. E o Doutor Morte [Doctor Death], um médico condenado por assassinar 15 dos seus pacientes com uma droga extraída da papoila do ópio. De vez em quando, um visitante colapsa por desmaio. Os jardineiros crêem que os desmaios aumentaram desde que começaram a exibir a contagem num quadro negro. Também parece possível que a emanação de uma mistura do perfume inebriante do loendro, do teixo e da beladona forme uma combinação que faz desmaiar os mais susceptíveis. Inaugurado há 20 anos como atracção macabra, o Jardim Venenoso ganhou nova vida ao tornar-se um destino para investigadores de todos os tipos, desde cientistas curiosos sobre toxinas exóticas a escritores de romances policiais à procura de inspiração. Num dia de Verão, quando a contagem anual de desmaios estava em cerca de 70, Mickey Leach, o jardineiro-chefe de 38 anos, partiu ao meio uma folha brilhante de louro-cerejo que se projectava sobre um trilho. “Esta é uma das plantas mais comuns para sebes neste país”, disse. “Quando se parte uma folha ao meio, o que se obtém? Cianeto.”O Castelo Alnwick pertence à mesma família há mais de setecentos anos. Tradicionalmente, era a residência do aristocrata de mais alto escalão da região, e o castelo e os cinco hectares do jardim passaram por vários condes e duques até ao actual proprietário, Ralph Percy, o 12.º duque de Northumberland, que se mudou para ali em meados da década de 1990 com a mulher, Jane.Por serem as mais perigosas, as plantas fechadas atrás de grades despertam maior interesse.A duquesa começou a projectar melhoramentos na propriedade em ruínas, acrescentando-lhe fontes, labirintos e amplos relvados, e criando a organização de beneficência Alnwick Garden, que inclui o jardim de plantas venenosas.Embora algumas das plantas mais destrutivas sejam também fontes de curas medicinais e antídotos – como a vinca de Madagáscar, que pode causar toxicidade hepática quando ingerida, mas também é usada no tratamento da leucemia –, os benefícios não impressionaram a duquesa, que disse certa vez: “Na verdade, acho a história de como as plantas podem curar bastante enfadonha. É muito melhor saber como uma planta pode matar.”A omnipresença de venenos nos nossos próprios quintais motivou um grupo de químicos forenses a desenvolver uma experiência anual no jardim, quantificando as toxinas em 25 plantas diferentes acidentalmente ingeridas por crianças. A Atropa belladonnafoi considerada pelos cientistas como uma das mais perigosas para as crianças, sendo necessária maior sensibilização do público para evitar consequências fatais.De volta à sala de descanso dos jardineiros, num quadro branco, aponta-se a lista das tarefas do dia: cortar a relva ao longo de uma estrada de acesso e… cuidar de 20 mandrágoras letais. “A mandrágora está entrelaçada com a história da humanidade”, disse Mickey Leach, explicando que os faraós usavam a mandrágora como intoxicante e os romanos como anestésico no campo de batalha. Mais recentemente, a autora J.K. Rowling transformou as mandrágoras numa fonte de cor nos seus livros de Harry Potter, retratando-as como raízes mágicas que se assemelham a bebés humanos a chorar.Mickey confessou que só começou a estudar mandrágoras na última Primavera, depois de receber um e-mail de uma entusiasta de mandrágoras que pretendia doar a Alnwick a sua colecção, que incluía uma variedade rara autóctone da Ásia Central. As 20 mandrágoras herdadas vivem agora numa instalação fechada. “As raízes são venenosas”, diz Leach. “Vamos ter de as enjaular.”Os jardineiros crêem que os desmaios dos visitantes aumentaram desde que começaram a exibir a contagem num quadro negro.Por serem as mais perigosas, as plantas fechadas atrás de grades despertam maior interesse. Algumas Ricinus communis, produtoras da ricina venenosa, são mantidas em gaiolas. Já a planta verde e roxa de aparência inofensiva, por lei, tem de ser mantida atrás de grades. “Salvia divinorum”, diz Leach. “Quando se fuma, provoca uma sensação semelhante à do LSD durante 30 segundos.”É fácil perceber por que razão os escritores de romances policiais gostam de visitar Alnwick. Na sua primeira visita, a romancista britânica Jill Johnson explorou os caminhos cobertos de urtigas, com as mãos nervosamente enfiadas nos bolsos. Depois, teve uma ideia genial: uma botânica-detective que usa o seu jardim como ferramenta para resolver crimes, semelhante à adorada personagem de Agatha Christie: Miss Marple. Basta um minúsculo pedaço de raiz de mandrágora para matar alguém. O primeiro livro de Jill Johnson da série “Professor Eustacia Rose Mysteries”, Devil’s Breath, foi lançado em 2023 e, desde então, a romancista regressou a Alnwick à procura de inspiração. É “um saco de doces repleto de maravilhas venenosas”, diz. “Vai manter-me inspirada para ‘matar’ mais pessoas, usando plantas letais durante muito tempo”.De acordo com funcionários do Jardim Alnwick, já houve pelo menos um corpo de polícia a pedir uma visita para “discutir o uso de plantas e venenos a que devem estar atentos no futuro”. O corpo de polícia em questão recusou-se a comentar, mas registaram-se vários casos de envenenamento de grande repercussão no Reino Unido, entre os quais se destaca o assassínio, em 2009, de um homem cujo jantar de caril foi adulterado com acónito. Mickey Leach sublinhou que bastaria um minúsculo pedaço de raiz de mandrágora para matar alguém. É útil, portanto, que todos os detectives saibam distinguir o malmequer-dos-brejos do visco-branco.O jardim continua a incorporar constantemente novas plantas, mas até recentemente estava em falta uma das espécies mais “dolorosas”. A Dendrocnide moroides, ou “gympie-gympie”, é uma urtiga australiana incrivelmente perigosa.  O contacto mais ligeiro pode fazer vomitar. Depois de ver vídeos no YouTube sobre as vítimas da planta, o responsável pelos guias do jardim, John Knox, tentou cultivar uma a partir de uma semente que comprou na Internet. Quando não conseguiu, entrou em contacto com um indivíduo que mantinha uma planta do tamanho de um gnomo de jardim dentro de uma gaiola na sua sala de estar.Knox transportou-a para Alnwick numa caixa de transporte para cães coberta com sacos de lixo para evitar o contacto com os espinhos, que podem causar um efeito que ele descreveu como “ser incendiado, electrocutado e ter ácido quente despejado sobre nós, em simultâneo”. A “gympie-gympie”, agora bastante maior, vive como Hannibal Lecter numa caixa transparente trancada na ponta do jardim. “Não abrimos a caixa sem um fato de protecção”, explicou Mickey Leach. “Imagine se uma rajada de vento soprasse lá para dentro!” Tal como Knox, Leach fez pesquisa sobre os efeitos. “Três ou quatro semanas de dores intensas e episódios agudos nos anos seguintes”, relatou. “É um pesadelo. E como se gere uma colecção que contém pesadelos destes?”. Mickey Leach começou a dedicar-se à jardinagem em criança, atraído pela ciência, segundo ele, porque era a profissão menos assustadora que conseguia imaginar-se a fazer. Acabou onde acabou! Artigo publicado originalmente na edição de Novembro de 2025 da revista National Geographic.

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O história por trás do mecanismo de Anticítera

No Verão de 1901, ao largo da ilha grega de Simi, o capitão Dimitrios Kontos, da Marinha Real Grega, liderava um grupo de mergulhadores não profissionais numa expedição arqueológica. Normalmente, eram apanhadores de esponjas, mas durante aquele Verão haviam sido contratados para retirarem artefactos antigos do fundo do mar. Fora descoberta uma antiga galé romana e, no esforço de expandir o conhecimento sobre aquela civilização e o espaço grego na Antiguidade, o governo patrocinou uma investigação. Já tinham sido recolhidos variados objectos, desde ânforas a estátuas, jóias e moedas, pedaços belíssimos de um passado que no futuro estaria exposto no Museu Nacional de Atenas.Nesse dia de Julho, um dos mergulhadores subiu, tremendo, à embarcação. Tendo já perdido dois homens para um estranho mal desconhecido que afectava regularmente todos os mergulhadores de profundidade – e que hoje sabemos ser a descompressão, quando demasiado azoto se acumula no sangue – o capitão acorreu para ajudá-lo, temendo novo problema. Mas era apenas fraqueza. Vindo das águas cristalinas do Egeu, o homem trazia aquilo que à primeira vista parecia uma pedra com alguns pedaços de ferro encrustados. Cobertos de verdete, destacavam-se apenas por terem uma clara autoria humana. Sem prestar muita atenção, Kontos juntou-o ao espólio que acumulara.Durante um ano, essa pedra permaneceria esquecida na capital grega, sendo a atenção toda devotada aos belos objectos artísticos encontrados nas profundezas dessa caixa de tesouros helénica que é o mar. Mas em Maio de 1902, o arqueólogo Valerios Stais parou alguns segundos, mais do que qualquer outro antes de si, diante daquele bloco calcário. Para lá dos potes e do bronze, arrancou-o do monte de achados retirados do barco romano, no sótão do museu. Depois de algum tempo a analisá-lo, a excitação abanou-lhe o corpo.Aquelas peças de metal não eram aleatórias. Entrincheiradas na rocha estavam peças de engrenagem. Aquilo era… uma máquina. Quando comentou a sua descoberta com colegas, foi ridicularizado. Era impossível. Segundo cálculos, aquele navio era algures do primeiro século anterior a Cristo. Nenhuma civilização era sofisticada o suficiente para construir algo do género – nem a grega. Stais estava louco para lá de Plutão.Em 1951, Derek de Solla Price era professor de Matemática Aplicada em Cambridge, em Inglaterra. Decidira por esta altura tirar um segundo doutoramento em História da Ciência e, numa viagem de pesquisa, visitou o Museu de Atenas, procurando informações sobre a civilização grega, que ele considerava como fundamental no desenvolvimento do pensamento científico. Como britânico, pôde manusear o património que não estava em exibição. A sua atenção prendeu-se no mesmo bloco de rocha que espicaçara a centelha de Stais décadas antes. Como Stais, reconheceu de imediato a bizarria do que tinha em mãos; mas ao contrário do grego, Price tinha nome e crédito.Nos anos seguintes, dedicou parte do seu esforço a tentar descobrir o que era, afinal, aquele objecto. Análises de raios X e raios gama, efectuadas com um colega físico nuclear, Charalampos Karakalos, deram ao mundo o inacreditável: dentro da matéria densa estavam espalhados vários fragmentos metálicos, 82 ao todo, entre eles rodas dentadas que Price e Karakalos não conseguiram contabilizar. Mas era um aparelho mecânico, não havia dúvida.Na sua pesquisa, o britânico não conseguiu, no entanto, divisar a sua função ou propósito. Percebeu que havia instruções inscritas em algumas peças e chegou a construir um modelo daquilo que seria aquela estranha máquina antes de desaparecer no mar. Mas morreu sem descobrir afinal o mais importante. Apenas em 2008, uma equipa da Universidade de Cardiff, usando tecnologia ainda mais avançada, pôde por fim reconstituir digitalmente aquele enigma enferrujado. Por esta altura, era já conhecida pelo nome da ilha grega mais próxima dos destroços do navio romano onde se encontrara aquela anomalia: o mecanismo de Anticítera. O verdadeiro assombro do mistério tornou-se real: estávamos perante o primeiro computador jamais construído, uma complexa máquina analógica que através de variáveis inseridas, realizava cálculos. Para isso, era apenas necessário girar uma alavanca lateral e a volta das engrenagens… adivinhava o futuro.A COMPLEXIDADE DO MECANISMOO mecanismo de Anticítera seria uma espécie de relógio de metal guardado numa caixa de madeira de 34 centímetros por 18, com pelo menos 37 rodas dentadas que combinavam para fazer funcionar um complicado sistema de cálculos astronómicos. A maior tem 14 centímetros e, atrás desta, estava montada outra mais pequena. Na maior engrenagem, a principal, diferentes ponteiros indicavam informações respectivas. Para que servia todo este aparato? Ora, o mecanismo permitia descobrir onde se localizaria a posição do Sol e da Lua vários dias e semanas e meses e anos no futuro, e também dos cinco planetas conhecidos pelos gregos – Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno. O seu movimento acompanhava e projectava as fases da lua durante o mês escolhido, através de uma bola prateada no topo de um ponteiro, que girava acompanhando esse movimento lunar.Havia também um calendário solar, já numa escala de 365 dias por ano, seguindo o Sol através das sua posição nas constelações do Zodíaco, o que mostra alguns conhecimentos de um fenómeno conhecido como precessão, que faz com que a nossa estrela atravesse toda a nossa cúpula terrestre num ciclo de dezenas de milhares de anos. As inscrições, aliás, revelam algumas instruções para utilização da máquina, nomeadamente contagens de tempo, escalas astronómicas e operações matemáticas. Numa delas, encontramos o nome dos doze meses como fases do Zodíaco como os conhecemos hoje – mas usando as designações egípcias. Outro ponteiro previa eclipses solares e lunares, incluindo as possíveis cores e densidades. Era algo a que os gregos prestavam atenção por serem, no geral, supersticiosos. A máquina oferecia também informações ao utilizador acerca dos futuros solstícios e equinócios, dado em torno da qual girava a grande visão do universo de praticamente todas as culturas antigas, até mesmo as do Neolítico. Dado curioso e bem divertido: este mecanismo trazia embutidas também as datas de 42 grandes festivais religiosos gregos, incluindo os Jogos Olímpicos. O utilizador da máquina, girando a alavanca principal, conseguia saber quantos dias faltavam para a realização de cada um. Era um calendário solar e astronómico, uma agenda, um contador astrológico, um observatório dos astros e, dentro do conhecimento limitado da época, conseguia ter em conta os movimentos irregulares da Lua através de pequenas variações nas engrenagens que lhe estavam atribuídas dentro da máquina.POSSÍVEIS ORIGENSTalvez a explicação científica não ajude a entender o quão fora da norma é este objecto. Mas vamos tentar fazer perceber. As primeiras calculadoras com alguma sofisticação surgidas na Europa aparecem apenas no século XVI. Derivam de outras mais arcaicas do século XIV. Ora, estas têm raízes em algumas maquinetas utilizadas por matemáticos e astrónomos muçulmanos, que provavelmente as foram buscar a Bizâncio, actual Istambul.Na melhor das hipóteses, há entre mil e mil e quinhentos anos de tempo perdido entre o mecanismo de Anticítera e algo que lhe seja semelhante em complexidade, sem que o ultrapasse na variedade de funções ou precisão de engenharia. Um imenso vazio de conhecimento que ninguém consegue muito bem explicar. Para lá das duas perguntas imediatas: quem o fez? Como foi feito? A primeira não tem resposta. Foram sugeridos vários conhecidos sábios da Antiguidade Clássica, desde Arquimedes (o Da Vinci do mundo clássico) a Hiparco, astrónomo que, além da descoberta do cálculo trigonométrico, foi também quem notou pela primeira vez, pelo menos reconhecidamente, o fenómeno da precessão dos planetas no Zodíaco – embora se desconfie que os egípcios, por exemplo, também estavam ao corrente desse evento. Qualquer um deles é válido.A astronomia de Hiparco misturava a geometria grega com cálculos astronómicos babilónicos, que parecem ter um papel importante no mecanismo. Já Arquimedes é o autor de uma das grandes obras científicas da História, um livro chamado Do fabrico das esferas, que segundo o escritor romano Cícero conteria os planos para um engenho muito semelhante ao encontrado ao largo de Anticítera. Mas o facto de terem sido identificadas duas caligrafias diferentes nas peças encontradas indica vários construtores materiais, ainda que o sábio a ser consultado possa ter sido apenas um. Seja quem for, teve a arte e habilidade para construir algo tão incompreensível na sua execução. Os arqueólogos acham estranho que algo tão importante, e de evidente origem grega, tenha sido encontrado num barco romano. Mas talvez isso se justifique pelo saque a que várias cidades-estado do mundo helénico foram sujeitas durante a expansão do Império Romano, que se efectuou mais ou menos no período em que se aceita que esta intrincada maquineta foi construída.A complexidade do mecanismo de Anticítera supõe objectos antecessores que não se encontram. As suas previsões do céu não são completamente precisas: diferem, por exemplo no caso dos planetas, em um grau em relação ao que sabemos hoje ser a sua posição real. Ainda assim, para o conhecimento do período, é extraordinário.Reconhecidos cientistas como Richard Feynman e Jacques Costeau viveram fascinados com a máquina – o francês chegou até a mergulhar em busca de outras peças que pudessem ajudá-lo a esclarecer o mistério. No entanto, a mera existência deste artefacto é em si um tremendo enigma que nos faz repensar a maneira como avaliamos a sapiência e a ciência daquele que nos precederam. É provável que este fosse um conhecimento muito restrito e secreto, um aparelho a ser usado em aulas e para quem quisesse tornar-se astrónomo. Ou até mesmo, um aparelho secreto militar.Na sua intrincada engenharia, o mecanismo de Anticíterareflecte também a maneira como os gregos viam o cosmo. Não como uma imensa algazarra sem sentido ou lógica, mas como fruto de cálculos e ciclos, de ordem matemática. Como se fosse uma máquina complexa, cujas engrenagens, beleza e segredos só vemos se prestarmos realmente atenção. Se nos entregarmos ao tempo de contemplar, se aceitarmos o mistério como parte do ciclo maior da vida. Como parte do seu próprio mecanismo.

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Antárctida: Glaciar três vezes maior do que Lisboa bateu um recorde indesejado

O glaciar Hektoria, uma massa de gelo de 295 quilómetros quadrados localizada na Península Antárctica, registou o recuo mais rápido já observado. Após três anos de monitorização por satélite, uma equipa de investigadores confirmou que este perdeu cerca de 25 quilómetros de superfície em apenas 15 meses. Isto representa uma velocidade de degelo 10 vezes superior à registada noutros pontos do continente.Embora a sua superfície seja relativamente pequena em comparação com outros glaciares da Antárctida, como é o caso do glaciar Lambert e os seus 40.000 quilómetros quadrados, a verdade é que quase triplica a da cidade de Lisboa, que oficialmente tem 100,05 quilómetros quadrados. De qualquer forma, o estudo publicado na Nature Geoscience e dirigido pela Universidade do Colorado, em Boulder, indica que o seu colapso começou quando uma grande massa de gelo marinho se desprendeu da sua frente, o que eliminou uma barreira que lhe dava estabilidade.Essa perda desencadeou uma série de fracturas internas que desaceleraram o seu deslocamento e multiplicaram o número de icebergues libertados para o oceano. Um processo que chegou mesmo a gerar movimentos sísmicos que foram detectados por sensores localizados a grande distância.UM RITMO DE DESCONGELAMENTO RECORDEEntre Novembro e Dezembro de 2022, o Hektoria recuou mais de oito quilómetros. Um ritmo que surpreendeu os próprios investigadores. Como afirmou Ted Scambos, um dos autores da investigação, "o recuo deste glaciar muda o que acreditávamos ser possível em relação a outros glaciares importantes do continente".As imagens obtidas por satélite não deixam margem para dúvidas: o glaciar fracturou-se abruptamente e sofreu desprendimentos massivos que transformaram completamente a linha costeira antártica. De acordo com Naomi Ochwat, principal autora do estudo, a vulnerabilidade estrutural do glaciar foi fundamental para que isso acontecesse."A questão realmente importante é se Hektoria é um caso isolado ou se o mesmo pode acontecer noutros glaciares atlânticos", afirmou Ochwat, preocupada. Conforme indicado no artigo, à medida que o glaciar avançava sobre uma zona plana do leito marinho conhecida como planície de gelo, a sua base começou a flutuar repentinamente, o que desencadeou o efeito dominó de fracturas internas.DIVISÃO ENTRE OS ESPECIALISTASA magnitude do recuo suscitou certa controvérsia entre investigadores de todo o mundo. Por exemplo, especialistas da Universidade de Leeds e da Universidade de Newcastle afirmam que o glaciar já estava a flutuar parcialmente antes de entrar em colapso, o que tornaria o evento menos excepcional.De qualquer forma, a maioria concorda que Hektoria é a prova mais evidente da extrema fragilidade da camada de geloantárctica face às alterações climáticas e ao aumento das temperaturas na região. Basta dizer que, entre Fevereiro de 2022 e Agosto de 2023, o glaciar perdeu quase metade da sua superfície.Isto significa que, em média, o Hektoria recuou 134 metros por dia durante esse período. No entanto, houve picos de até 800 metros por dia durante o processo. Este ritmo de degelo, nunca antes detectado na Antárctida, seria comparável ao que aconteceu no final da última Idade do Gelo, há mais de 15.000 anos.Em 2024, os investigadores decidiram sobrevoar o glaciar. A própria Ochwat declarou a esse respeito que "não conseguia acreditar na magnitude da área que tinha colapsado". Também enfatizou que o que aconteceu é um aviso sobre o que poderia acontecer a outros glaciares maiores, como o Thwaites, mais conhecido popularmente como o glaciar do juízo final.

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Já nas bancas

Introdução: Embora o comportamento aditivo tenha grande complexidade e seja constituído por factores biológicos, psicológicos e sociais, hoje temos ferramentas cada vez melhores que nos permitem integrar, no mesmo estudo, procedimentos provenientes da neurociência, da genética molecular, da electrofisiologia, da neuroimagem, da imunologia e da psicologia experimental e social para uma abordagem profunda e abrangente dos processos que levam uma pessoa a perseverar irremediavelmente em comportamentos que afectam o seu bem-estar e o dos seus entes queridos.A ciência da dependência: Até recentemente, as drogas, o seu consumo e as dependências eram considerados uma fraqueza moral. Graças aos avanços revolucionários da ciência, sabemos hoje que a dependência é um distúrbio que afecta o cérebro e altera o comportamento, além de constituir um problema de saúde de grandes dimensões.As drogas alteram o cérebro: As evidências científicas acumuladas nos últimos sessenta anos confirmam que as drogas alteram o funcionamento normal da comunicação neuronal. O estudo do processo pelo qual a transmissão realizada pelos neurotransmissores é alterada tornou-se essencial para o desenvolvimento de estratégias terapêuticas.Os efeitos das drogas podem ser tratados: O comportamento dependente é aprendido. Actualmente, dispomos de dados que explicam as respostas fisiológicas e psicológicas dos consumidores de drogas e como essas respostas condicionadas podem ser minimizadas e extintas durante os vários tratamentos psicológicos.Avanços na investigação científica sobre a dependência: As evidências científicas acumuladas nos últimos sessenta anos confirmam que as drogas alteram o funcionamento normal da comunicação neuronal. O estudo do processo pelo qual a transmissão realizada pelos neurotransmissores é alterada tornou-se essencial para o desenvolvimento de estratégias terapêuticas.Leituras recomendadas

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Camaleónica

A cor verde característica que estes ofídios adquirem na idade adulta ajuda-os a passar despercebidos no dossel da floresta. Quando são jovens, apresentam uma cor amarelada ou avermelhada, o que lhes permite camuflar-se nos recantos da floresta em busca de presas pequenas.Caçadoras experientes, podem passar horas numa árvore até detectarem o calor corporal de um mamífero com os seus órgãos termossensíveis nos lábios. Mesmo na escuridão. O seu lado “mais maternal” desenvolve-se durante a incubação, quando enrolam o corpo em torno dos ovos para regular a temperatura da postura, contraindo ou relaxando os músculos.

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Nova Iorque, a cidade das 700 línguas

O seke é uma língua em perigo de extinção, originalmente falada em cinco aldeias do norte do Nepal, mas o seu futuro pode depender de um punhado de aldeias verticais: prédios de apartamentos no meio do Brooklyn, em Nova Iorque.Como é que uma língua pouco documentada, usada apenas oralmente por não mais de 700 pessoas no alto Himalaia, chegou à selva de betão? Rasmina Gurung, na casa dos 20 anos, uma das falantes mais jovens de seke, aprendeu o idioma com a sua avó na aldeia, mas logo se mudou para a capital do país, Katmandu, e eventualmente para Nova Iorque – onde ela estima que pelo menos um quarto do seu povo tenha acabado. Aqui, juntam-se a falantes de dezenas de outras línguas ameaçadas de extinção de todo o Himalaia, todos formando novas comunidades enquanto sobrevivem numa mistura em constante evolução de nepalês, tibetano, inglês e as suas próprias línguas maternas ameaçadas.Porém, Nova Iorque – a cidade com maior diversidade linguística da história do mundo – pode estar a atingir o pico de diversidade. As suas mais de 700 línguas representam mais de 10% do total global. Embora em grande parte invisíveis (e inaudíveis) para quem está de fora, as línguas da cidade são de todas as partes do mundo. Muitos imigrantes chegaram nas últimas décadas de pontos linguísticos importantes, como o Himalaia, a África Ocidental, o sudeste asiático insular e zonas fortemente indígenas da América Latina. Hoje, porém, muitas das forças que uniram as pessoas estão a começar a separá-las.Dada a aceleração da perda de línguas, mesmo nos seus países de origem, as ameaças à imigração e os custos crescentes da vida na cidade, o tempo pode estar a esgotar-se.A notável convergência linguística em Nova Iorque e cidades semelhantes pode desaparecer rapidamente, antes mesmo que haja tempo para documentá-la ou apoiá-la. Essa urgência é o que impulsiona o trabalho da Endangered Language Alliance, a organização que co-dirijo, que começou a mapear esse panorama.Em jogo está um conjunto sem precedentes de possibilidades culturais, científicas, educacionais e até económicas. Nunca antes os linguistas e falantes estiveram tão bem posicionados para documentar idiomas para as quais existem poucos ou nenhum registo, ao mesmo tempo que pressionam pela sua manutenção e revitalização. Igualmente excepcionais são as possibilidades artísticas, musicais e culinárias, à medida que visões de mundo de todo o globo se reúnem e partilham espaço. Irwin Sanchez, um chef e poeta do Queens que fala nahuatl, outrora a língua dos astecas, prepara tacos, moles e tamales, tendo em mente os significados originais das palavras. Husniya Khujamyorova, falante de wakhi do Tajiquistão, cria alguns dos primeiros livros infantis para falantes de seis línguas pamiri – todas agora representadas na Rota da Seda do Brooklyn. Ibrahima Traore, que veio da Guiné para o Lower East Side, ensina N'ko, um sistema de escrita pioneiro da África Ocidental, e promove o seu uso em todas as novas tecnologias. Boris Sandler, um escritor falante de iídiche nascido na Moldávia, contribui à sua maneira, romance após romance, para o renascimento milagroso do iídiche em Nova Iorque.O lenape, a língua original da terra onde a cidade foi construída, também está a ser revivida contra todas as adversidades. A partir do seu último reduto na zona rural de Ontário, onde há apenas um único falante nativo, uma nova geração de activistas está a levar a língua a um público mais amplo. Uma delas era Karen Mosko, que antes de falecer vinha uma vez por mês para ensinar a língua em Manhattan – “o lugar onde recebemos arcos” em lenape.E depois há Rasmina Gurung, a jovem falante de seke. Durante sete anos, ela documentou a língua no Nepal e em Nova Iorque com dezenas de horas de gravações, muitas transcritas e traduzidas, bem como um dicionário em crescimento. Mas agora os mais velhos estão a falecer e a levar a língua com eles. Questões sobre imigração e asilo pairam sobre o futuro da comunidade. A habitação é cada vez mais difícil e a sua coesão semelhante à de uma aldeia pode não durar. Nas últimas décadas, por acaso, o bairro do Brooklyn onde Gurung mora tornou-se um lugar onde pessoas de todo o mundo criaram associações de conterrâneos, instituições religiosas, restaurantes e uma variedade de outros negócios e espaços – formando mundos radicalmente diferentes que agora coexistem lado a lado. A poucos minutos da aldeia vertical seke, é possível ouvir fiéis do Gana a falar twi, barbeiros azeris a comunicar em juhuri e motoristas da Uber reunidos para comer kebabs e beber uísque enquanto conversam em uzbeque. Oficinas mecânicas, vans informais para transporte de passageiros ou “dollar vans”, mesquitas e bares ecoam com os sons de línguas africanas, asiáticas, europeias, caribenhas e latino-americanas.Apesar de todo o potencial não realizado, Babel – não o mito bíblico, mas a realidade contemporânea – tem funcionado em cidades como Nova Iorque de forma extraordinária. Agora é o momento de compreender, apreciar e defendê-la.

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Já nas bancas

EDITORIAL: DE SÃO PEDRO A LEÃO XIVO primeiro papa (Pedro, pescador da Galileia, martirizado por Nero) foi sepultado num túmulo venerado na colina vaticana, onde mais tarde se ergueria uma basílica. Seguiram-se muitos mais, avançando dos tempos imperiais e das perseguições até à consolidação do papado como poder espiritual e temporal na Europa medieval. Essa continuidade, porém, foi perturbada por cismas, exílios, concílios, intrigas, reformas e contra-reformas que moldaram, século após século, o rosto sempre dinâmico da igreja católica.A gravitas manteve-se. A história do Vaticano é, também, a história do Ocidente: na Idade Média, como árbitro entre reinos; na Época Moderna, como defensor da ortodoxia face à Reforma; no século XIX, como Estado minguante após o colapso dos Estados Pontifícios. E, no século XX, como actor fundamental nos conflitos mundiais, durante o Concílio Vaticano II e na reorganização global da Igreja. O papado tornou-se mediático com João Paulo II, teológico com Bento XVI, pastoral com Francisco.Agora, depois da eleição do primeiro papa norte-americano – Leão XIV –, propomos nesta edição especial um percurso por vinte séculos de história vaticana: desde a cátedra de Pedro aos desafios contemporâneos; das catacumbas à diplomacia pontifical; dos concílios do passado aos conclaves do presente. Uma travessia pelo poder, pela fé e pelas transformações da instituição religiosa mais longeva da história.SUMÁRIOCapítulo 1: Do paganismo ao cristianismoCapítulo 2: Entre Latrão e o VaticanoCapítulo 3: Esplendor renascentista e brilho barrocoCapítulo 4: O fim do poder temporal do papadoCapítulo 5: Um novo estado numa era turbulentaCapítulo 6: A abertura ao mundo: o Vaticano, hoje

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China observa um cometa do tipo ‘Halley’ e detecta sinais de rádio incomuns

O cometa 12P/Pons-Brooks pode não ser tão mediático como o 3l/Atlas, mas continua a ser um dos objectos mais enigmáticos de todos os que atravessam o Sistema Solar com certa frequência.Na verdade, voltou a surpreender a comunidade científica. Um grupo de investigadores do Observatório Astronómico de Xangai detectou sinais de rádio invulgares provenientes deste corpo celeste. Especificamente, foram registados pelo radiotelescópio Tianma e revelam uma actividade química muito mais alta do que se supunha.O 12P/Pons-Brooks é um cometa do tipo Halley que completa uma órbita em torno do Sol a cada 71 anos, aproximadamente. Durante a sua última passagem perto da Terra, a equipa de astrónomos detectou um forte sinal do radical hidroxilo (OH), que é uma molécula gerada quando a radiação solar decompõe a água. Este registo permitiu calcular que o cometa liberta mais de cinco toneladas de vapor de água por segundo, o que é um ritmo muito superior ao da maioria dos objectos semelhantes observados até agora.COMO FUNCIONA O RADIOTELESCÓPIO TIANMAPara compreender todas as implicações de uma descoberta como esta, é necessário saber como funciona o radiotelescópio Tianma. Dispositivos como este procuram e capturam ondas de rádio emitidas por objectos na porção do espaço em que se concentram.As moléculas do cometa 12P/Pons-Brooks, ao serem aquecidas pela energia do Sol, emitem radiofrequências num comprimento de onda específico, o que deixa uma marca no espectro. Como a do OH mencionado anteriormente é única, os cientistas chineses puderam detectá-la sem margens para dúvidas. Além disso, a intensidade desse sinal foi o que lhes permitiu calcular a quantidade de água que ele liberta na sua trajectória em torno da nossa estrela. O AMONÍACO COMO CHAVEA análise espectral foi realizada através das bandas L e K, o que permitiu revelar variações importantes na intensidade das emissões. Essas flutuações coincidem com as erupções de brilho típicas desse cometa, que têm sido registadas em todas as suas aproximações da Terra desde que foi descoberto em 1812. A sua alta taxa de actividade também sugere que o seu núcleo é muito rico em compostos voláteis, o que o torna ideal para o estudo dos processos de sublimação no universo.Além da água, Tianma identificou a assinatura espectral do amoníaco (NH3). Por ser um gás muito volátil, os investigadores sustentam que este se sublima com enorme rapidez sob a radiação solar. Um processo que desencadeia violentas erupções de gás e poeira e que explica os aumentos repentinos de brilho que têm sido observados da Terra em inúmeras ocasiões.ÁGUA COMO A DA TERRA?Paralelamente, uma equipa internacional de astrónomos utilizou o radiotelescópio ALMA, no Chile, para estudar o cometa, descobrindo que a água deste possui uma assinatura isotópica quase idêntica à dos oceanos terrestres.Segundo Martin Cordiner, do Centro Goddard da NASA, "este tipo de cometas são relíquias congeladas do nascimento do Sistema Solar", que ocorreu há 4,5 mil milhões de anos. O artigo publicado na Nature que divulga os resultados deste esforço científico reforça a teoria de que a água poderia ter chegado ao nosso planeta graças ao impacto de cometas primitivos.Por sua vez, a investigadora Stefanie Milam, co-autora do estudo, indica que a proporção entre água pesada e água comum detectada no cometa também coincide com a registada na Terra. Algo que indicaria que o líquido não se forma na atmosfera do cometa, mas no interior do seu núcleo. "Os mapas de distribuição destes gases confirmam a sua origem interna", concluiu a este respeito.

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5 artefactos que não encontrará no novo Grande Museu Egípcio

Após mais de duas décadas e muitos percalços ao longo do caminho, o Grande Museu Egípcio – coloquialmente conhecido como GEM – finalmente abriu as suas portas, no Cairo, a 1 de Novembro.Os salões do museu estão repletos de artefactos inestimáveis, como a estátua colossal de Ramsés II, os antigos barcos reais do faraó Khufu e 5.000 tesouros do túmulo de Tutankhamon – que serão exibidos juntos pela primeira vez desde a descoberta do túmulo. No entanto, muitos outros artefactos egípcios de grande importância histórica e arqueológica não estão no GEM. Tenham sido recolhidas por tropas estrangeiras no Egipto, contrabandeadas por funcionários ou reivindicadas sob o sistema de partilha, muitas antiguidades foram levadas em nome das antigas potências coloniais, que agora as exibem nos seus museus em todo o mundo. Eis cinco antiguidades egípcias inestimáveis que não verá no Grande Museu Egípcio – e por que motivos os defensores da repatriação gostariam que elas fossem devolvidas:1. A Pedra de RosetaOnde ver: Museu Britânico, Londres, Reino UnidoQuando os soldados de Napoleão avistaram a Pedra de Roseta em 1799, souberam que tinham encontrado a chave para decifrar os hieróglifos. Na estela de granodiorito do tamanho de uma secretária havia três escritas claras: grego antigo, hieróglifos e demótico. “Tal como a ʽdemocraciaʼ, o demótico era a escrita egípcia do povo comum”, explica o egiptólogo americano Bob Brier, investigador sénior da Universidade de Long Island e autor de mais de dez livros sobre o antigo Egipto.Antes dessa descoberta monumental, muitos estudiosos acreditavam que os hieróglifos eram meros pictogramas. Mas a presença das outras escritas sugeria o contrário.Embora as palavras reais da Pedra de Roseta não sejam particularmente interessantes (são um agradecimento público do sacerdote do templo ao rei por reduzir os impostos), as suas implicações foram enormes.“Levou mais 20 anos para traduzir a pedra e, nesse momento, tudo se revelou”, diz Brier, que considera o artefacto “a descoberta mais importante da história da egiptologia”. No entanto, o Egipto naquela época era “como o Velho Oeste”, diz Brier, “e os aventureiros podiam ir lá e levar o que quisessem”. O general francês Jacques François Menou considerava a pedra sua propriedade pessoal. Os britânicos discordaram e “acabaram por apontar uma arma a Menou e dizer-lhe para lhes entregar a pedra”, diz Brier.Em 1802, a Pedra de Roseta estava em exposição no Museu Britânico, onde os visitantes do século XIX podiam tocar livremente na pedra, que não estava protegida por nenhuma vitrina. Apesar dos esforços contínuos para repatriar a pedra para o Egipto, ela permanece lá até hoje (atrás de um vidro, é claro).2. Obelisco de LuxorOnde ver: Place de la Concorde, Paris, FrançaTal como as Agulhas de Cleópatra, os obeliscos separados que agora se encontram em Nova Iorque e Londres, o Obelisco de Luxor em Paris é metade de um par distinto. “Quase todos os templos do Império Novo tinham um par de obeliscos colocados na frente”, diz Brier. (O Império Novo, que durou de cerca de 1550 a 1070 a.C., foi o período mais poderoso e próspero do antigo Egipto, também conhecido como a Idade de Ouro do Egipto.) O Templo de Luxor ainda se ergue na margem leste do Nilo, onde milhões de turistas anuais não podem deixar de notar uma ausência notável: “Há apenas um obelisco lá, parecendo triste como se estivesse a sentir falta do seu irmão”, diz Brier, que escreveu Cleopatra’s Needles: The Lost Obelisks of Egypt (As Agulhas de Cleópatra: Os Obeliscos Perdidos do Egipto). Os monólitos de granito vermelho com 3.000 anos representavam a vitória para Napoleão, que não precisou saquear os obeliscos, pois o governante de facto Muhammad Ali Pasha ofereceu-os à França em 1829. O problema? “Transportá-los era tão difícil e caro que os franceses decidiram levar apenas um”, explica Brier. A França enviou um presente de agradecimento na forma do Relógio da Cidadela do Cairo, o primeiro relógio público do Egipto, que rapidamente se avariou e não pôde ser consertado durante 175 anos.3. O Zodíaco de DenderaOnde ver: Museu do Louvre, Paris, FrançaDurante dois milénios, os sacerdotes podiam olhar para o tecto do Templo de Hathor para admirar o Zodíaco de Dendera. Dedicado a Osíris e (possivelmente) encomendado por Cleópatra por volta de 50 a.C., o baixo-relevo de 2,4 metros de largura é um dos mapas celestes mais antigos conhecidos e captura uma fascinante fusão de culturas.“É uma amálgama do pensamento grego e egípcio – religião, ciência, tecnologia – na última dinastia do antigo Egipto”, diz Salima Ikram, professora de egiptologia na Universidade Americana do Cairo. Naturalmente, acrescenta ela, “era muito cobiçado por todos que o viam”. Como é que chegou a Paris? Há narrativas contraditórias. A versão oficial é que os franceses o levaram com a permissão das autoridades egípcias em 1821. Outros afirmam que o ladrão de antiguidades Claude Lelorrain viajou até ao templo localizado a 64 km a norte de Luxor com dinamite na mão para remover o Zodíaco.“Um dos templos mais bonitos do Egipto simplesmente explodiu e foi cortado em pedaços”, diz a egiptóloga Laura Ranieri, fundadora da Ancient Egypt Alive, uma organização dedicada a educar os visitantes sobre a complexa história do Egipto.De qualquer forma, os pedaços foram enviados ao rei Luís XVIII, ainda irritado por a França ter perdido a Pedra de Roseta, que pagou a exorbitante quantia de 150.000 francos para instalar o zodíaco na Biblioteca Real. Um século depois, foi transferido para o Louvre, onde Ranieri diz que os seus grupos de turistas ficam sempre impressionados e encantados com os pormenores intricados do monumento de arenito. O Templo de Hathor, por sua vez, instalou uma réplica.4. Sarcófago de Seti IOnde ver: Museu Sir John Soane, Londres, Reino UnidoNa cave escura de três casas geminadas em Londres encontra-se um artefacto que, em 1817, ninguém queria: o sarcófago de Seti I, um importante faraó que morreu em 1279 a.C. e foi enterrado num dos túmulos mais profundos e mais belamente decorados do Vale dos Reis. “O escavador italiano Giovanni Belzoni trouxe-o do Egipto pensando que o Museu Britânico o compraria, mas eles, tolamente, não o fizeram”, diz Ikram. Em vez disso, por um preço irrisório, o sarcófago de 3.200 anos, de valor inestimável, foi vendido ao excêntrico colecionador Sir John Soane, que o guardou na sua adega. Preservada exactamente como estava quando Soane faleceu em 1837, a casa tornou-se um museu repleto de curiosidades ecléticas, embora nenhuma delas ofusque o sarcófago.“É esculpido em alabastro translúcido e decorado com tinta azul”, diz Ikram. “Então, se colocar uma luz dentro, tudo brilha e as figuras azuis parecem estar a mover-se.” Em 1825, 900 visitantes puderam ver o brilho misterioso do sarcófago quando Soane organizou uma festa de três dias para exibi-lo. 5. Busto de Ankh-haf de GizéOnde ver: Museu de Belas Artes, Boston, EUA Ankh-haf era príncipe e vizir (ou primeiro-ministro) da 4.ª dinastia, reverenciado por supervisionar a construção da Grande Pirâmide e da Esfinge.Escavado em 1925 durante a grande expedição de 40 anos da Universidade de Harvard pelo Egipto e Sudão, esta representação de Ankh-haf era “um busto funerário que teria sido colocado no seu túmulo para que a sua alma pudesse ser reanimada”, explica Ikram. Más notícias para a sua alma: o sistema de partilha delegou o busto ao arqueólogo americano George Reisner e, posteriormente, ao Museu de Belas Artes de Boston. O busto de Ankh-haf é significativo pelo seu raro realismo. “É possível ver a linha do cabelo recuada e as bolsas sob os olhos”, diz Ikram. Numa cultura que costumava tomar muitas liberdades para retratar os faraós como deuses de aparência perfeita, Ankh-haf é fascinantemente normal de se ver. “Ele é imediatamente reconhecível como uma pessoa real”, diz Ikram. “Se o vestíssemos com um fato, ele poderia passear pela Quinta Avenida [em Nova Iorque] agora mesmo.”Embora o busto de Ankh-haf tenha sido adquirido legalmente quando foi doado pelo governo egípcio a Reisner em 1927, isso não aconteceu sem uma pitada de política obscura. A leste da Grande Pirâmide, Reisner também descobriu o túmulo de Hetepheres I, que era particularmente notável por ser um túmulo real ainda intacto. Naquela época, a lei proibia a pilhagem de túmulos. Então, o busto de Ankh-haf foi uma espécie de presente de boa vontade, agradecendo por não roubar artefactos alheios.

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"A noite de Guy Fawkes": neste dia, há 420 anos, nasceu uma tradição

Durante a noite de 5 de Novembro de 1605, um jovem chamado Guy Fawkes foi preso – junto com um grupo de homens – com 30 barris de pólvora que haviam reunido com a intenção de explodir o parlamento de Londres, integrado no Palácio de Westminster. Para comemorar esse atentado fracassado, todo o 5 de Novembro, quando o Sol se põe, a Grã-Bretanha enche-se de fogueiras e fogos-de-artifício na chamada Noite das Fogueiras (Bonfire Night) ou Noite da Conspiração.Esta noite é celebrada com enormes fogueiras nas quais se queima um boneco que representa a figura central desta tradição: Guy Fawkes, que a cultura popular identifica como a máscara usada pelo protagonista do filme V de Vingança. Semanas antes da grande noite, os britânicos reúnem o necessário para que a fogueira seja grande e arda o mais alto possível, além de confeccionarem os enormes bonecos que serão pasto das chamas.FESTIVAIS DE LUZES E FOGOS DE ARTIFÍCIOO sonho frustrado de Fawkes tornou-se hoje a desculpa que os britânicos usam para iluminar as cidades com fogos-de-artifício. Na verdade, em cidades como Londres, são organizados festivais pagos, como o do Battersea Park ou o do Alexandra Palace. Noutros locais da capital, como Blackheath e Victoria Park, a entrada é gratuita.Mas o espectáculo vespertino e nocturno não se limita à metrópole. Cidades como Manchester, Liverpool, Leeds, Glasgow e Edimburgo também têm programados vários espectáculos em que o fogo é protagonista.Após a festa de Halloween, a Noite das Fogueiras enche de alegria e cor a maioria das cidades britânicas. As pessoas saem às ruas e, no calor das brasas, são assadas deliciosas batatas assadas e marshmallowse cozido o bolo de gengibre parkin.BARRIS A ARDEREm algumas localidades, esta celebração tem as suas próprias peculiaridades, como em Otery Saint Mary, em Devon, onde, ao longo do dia, os jovens transportam barris de breu em chamas pelas ruas da pequena aldeia, enquanto a multidão se reúne à sua volta. À noite, uma grande fogueira preside à festa.Outra localidade que leva muito a sério esta tradição é Lewes, onde aproveitam esta noite para recordar todos os mártires protestantes que morreram sob a opressão de Maria Tudor entre 1555 e 1557. Na verdade, é normal encontrar bonecos que fazem referência ao Papa, que são maltratados e até queimados. Uma explosão de raiva contida que aproveita esta ocasião para se libertar... e não esquecer.FAWKES E V DE VINGANÇAO aclamado filme V de Vingança, lançado em 2005, baseia-se em parte neste atentado falhado, mas num futuro em que a Inglaterra é governada por um sistema ditatorial. No entanto, serviu para que muitas pessoas no século XXI quisessem saber mais sobre Guy Fawkes e a sua tentativa de assassinar o rei Jaime I quando este planeava visitar o parlamento britânico.Outra produção, menos conhecida, mas interessante para conhecer o contexto histórico, é Gunpowder, de 2017. Esta mini-série da HBO narra os bastidores da conspiração liderada pelo líder católico Robert Catesby (interpretado por Kit Harington, o Jon Snow da Guerra dos Tronos), onde Fawkes (Robert Catesby) foi o único que se atreveu a colocar os barris com explosivos sabendo que não sairia vivo da tentativa.

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O primeiro computador analógico da história?

Em 1901, apanhadores de esponjas detectaram um destroço junto da ilha de Anticítera, no Sul da Grécia. Nos doze meses seguintes, trouxeram à superfície estátuas, moedas, jóias e um amontoado de bronze e madeira corroído por dois mil anos de permanência no fundo do mar.Nos vinte anos seguintes, a amálgama esteve em depósito no Museu Arqueológico de Atenas sem que ninguém lhe prestasse muita atenção, mas tudo isso mudou quando engenheiros modernos começaram a analisar o engenho. O complexo mecanismo de Anticítera tinha capacidade para calcular com rigor a posição do Sol, da Lua e dos cinco planetas conhecidos na Antiguidade. Conseguia determinar as fases da Lua e até prever o alinhamento astronómico nas datas dos Jogos Olímpicos, bem como eclipses lunares e solares.Em 2005, a peça foi sujeita a um minucioso exame de tomografia axial, que revelou minúsculas inserções de caracteres gregos e egípcios, bem como pormenores da engrenagem. Uma equipa da Universidade Aristóteles de Salónica construiu uma réplica transparente maior do que o original, de forma a analisar como funcionaria o interior do mecanismo, mas foi a experiência dos engenheiros Tony Freeth e colegas que, em 2021, revelou o principal segredo: o mecanismo reproduzia o cosmo tal como os antigos gregos o entendiam.

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Carla Pérez alcançou os picos mais altos da Terra. Agora, quer levar outros ao topo.

Carla Pérez consegue sentir a diferença quando atravessa a linha invisível que marca 8.300 metros, ou cerca de 27.000 pés, acima do nível do mar. “Antes dessa barreira, ainda se tem muito controlo sobre o que se pensa e o que se faz”, diz ela. “É como se fosse normal, quase normal.” Mas quando Pérez sobe mais alto, as coisas mudam. “Começas a perder o controlo da tua mente. Não consegues falar muito bem – é como se estivesses bêbado”, explica ela. O seu corpo responde lentamente aos seus comandos: pensamentos e movimentos materializam-se com um atraso agonizante. E não há alívio do frio ou da exaustão profunda. “Isso faz-te sentir muito vulnerável”, diz Pérez. “Na verdade, estás a morrer. Acho que estás muito perto da morte.” É aí que começa o verdadeiro teste. Apenas cinco dos 14 picos de 8.000 metros do mundo ultrapassam os 8.300 metros: Evereste, Godwin-Austen (K2), Makalu, Kanchenjunga e Lhotse. Pérez, uma alpinista pioneira do Equador, já escalou os três primeiros sem o uso de oxigénio suplementar. E planeia completar o conjunto.Carla foi a primeira mulher das Américas a escalar o K2 sem oxigénio suplementar. Foi ainda a primeira a nível mundial a escalar o K2 e o Evereste no mesmo ano e, ao longo do caminho, tornou-se a primeira mulher latino-americana (e apenas a sexta mulher na história) a escalar o Evereste sem oxigénio. Escalar dessa forma, sem o sistema de apoio que ajudou a tornar os picos mais altos do mundo alcançáveis para gerações de alpinistas, é o seu desafio preferido. A escalada atraiu-a desde tenra idade. O pai levava a família para caminhadas de um dia nas terras altas do Equador – ela ainda se lembra do seu primeiro cume, um vulcão com cerca de metade do tamanho das suas conquistas posteriores, aos quatro anos de idade. Ficou logo de olho no que chama de “montanhas brancas”, os picos altos e alvos. “Eu não sabia que as pessoas escalavam isso”, diz ela. “Vinda do Equador, não tínhamos a mesma cultura de escalada, montanhismo ou esqui... Era apenas um ponto de interrogação na minha cabeça.” Aos 18 anos, Carla recebeu uma bolsa de estudos para frequentar a universidade em França – escolheu Grenoble, na borda dos Alpes, e pouco depois de chegar começou a explorar novas montanhas com os seus colegas de turma. “O mundo começou a abrir-se.”De volta ao Equador, após os estudos superiores, foi orientada por Ivan Vallejo, um célebre alpinista equatoriano e uma das poucas pessoas na história a escalar todos os 14 picos de 8.000 metros sem oxigénio suplementar. “Eu tinha certeza absoluta de que fiz a melhor escolha”, diz Vallejo sobre a selecção de Pérez para uma das suas equipas de escalada. “Porque ela ama as montanhas e tem muita coragem... Se eu fosse um professor e Carla fosse minha aluna, é claro que teria muito orgulho.” Ela tornou-se imediatamente guia de montanha certificada e agora trabalha e escala em todo o mundo.Pérez também ajuda outras pessoas a ultrapassar os seus próprios limites através de um projecto de acessibilidade chamado Más Allá de una Cima – Além do Pico. O grupo oferece passeios mensais às montanhas para equatorianos com deficiência, em parte para homenagear um tio que tinha paralisia cerebral, o que limitava as suas oportunidades de desfrutar o ar livre. “Sempre que escalava uma montanha, pensava: ʽMeu Deus, ele adoraria estar aqui!ʼ”, diz ela. Essa alegria acompanha-a desde as alturas mais elevadas de sua terra natal até o Himalaia e além. Além de completar o seu conjunto das cinco montanhas mais altas do mundo sem oxigénio suplementar, Pérez gostaria de explorar algumas das rotas menos conhecidas nos altos picos do Himalaia. E o seu maior e mais ousado sonho é um dia ser pioneira numa nova rota para um desses picos. É uma tarefa difícil, ainda mais difícil se ela quiser alcançá-la da maneira habitual. “É uma exploração do corpo, dos limites, das possibilidades que temos”, diz ela sobre escalar sem ajuda num ar cada vez mais rarefeito. “E uma conexão muito profunda, para mim, com a Mãe Terra.” A primeira coisa que fazemos quando nascemos, ela ressalta, é respirar.

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A regeneração neuronal, mais próxima do que nunca

"Ficámos muito felizes ao verificar que um medicamento que funcionava em células cultivadas também se mostrava eficaz num modelo animal real de lesão medular", afirmou Erna van Niekerk, autora de um estudo recentemente publicado na Nature e cientista adjunta do Departamento de Neurociências da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia. É que passar da teoria à realidade é um passo muito complicado, no qual surgem novas variáveis que não foram tidas em conta. Mas os investigadores tinham tudo bem planeado. "Isso nem sempre acontece no desenvolvimento de novos medicamentos", afirmou.Na verdade, trata-se de uma raridade, pois dos milhares de medicamentos criados por síntese química, apenas alguns conseguem passar nos testes de toxicidade. Embora no laboratório de Niekerk contassem com uma grande vantagem que há dez anos era impensável: o poder da tecnologia actual.Combinando a sequenciação genética, métodos avançados de cultura celular e, acima de tudo, a bioinformática, os investigadores conseguiram identificar uma molécula que permite regenerar os neurónios adultos. Surpreendentemente, a molécula é um antidiarreico chamado Tiorfan, que, se usado em condições muito específicas, pode activar os sistemas de regeneração das neurónios.UMA ESPERANÇAA principal razão pela qual as lesões medulares causam uma incapacidade permanente é que os neurónios são células que raramente se dividem. De facto, durante muito tempo, pensava-se que as neurónios nunca se dividiam no cérebro adulto, embora tenha sido comprovado que algumas regiões apresentam produção de neurónios. Mas, em geral, as poucas divisões que ocorrem significam que, quando uma conexão é quebrada, é muito complexo que o tecido se recupere.Por isso, conseguir activar esses mecanismos representa um pequeno raio de esperança para milhares de pacientes que têm alguns dos seus membros paralisados devido a uma lesão medular.Até ao momento, as experiências realizadas em ratos com lesões deste tipo mostraram resultados muito promissores. Combinando enxertos de células precursoras de neurónios com Tiorfan, estes investigadores conseguiram melhorias significativas na função das mãos. Além disso, detectaram que os neurónios estavam a regenerar-se na área lesionada. Segundo as estimativas, essa terapia combinada poderia proporcionar até 50% mais mobilidade do que a actual, o que pode significar uma enorme diferença para as pessoas que sofrem de paralisia.Por isso, os investigadores estão ansiosos por dar o próximo passo e testar esta tecnologia em ensaios clínicos. "Trata-se de um tratamento potencialmente útil que poderia ter levado décadas a ser desenvolvido antes que estas tecnologias convergentes estivessem disponíveis", explica Niekerk.ÚTIL PARA O LABORATÓRIOA descoberta também pode ter um efeito bola de neve nos laboratórios, o que pode acelerar as investigações futuras. Um dos grandes problemas ao estudar o efeito dos medicamentos nas neurónios é que, para testar a sua toxicidade, é necessário um grande número de células em cultura. Mas, devido à sua falta de divisão, pode ser muito complicado atingir os números pretendidos. Mark H. Tuszynski, principal autor da investigação, também já se pronunciou: "Neste estudo, conseguimos cultivar células cerebrais humanas adultas em grandes quantidades, o que representa uma nova e poderosa ferramenta para a descoberta de tratamentos para distúrbios neurológicos. Não se trata de células estaminais, mas sim de células cerebrais adultas que antes não era possível cultivar. A capacidade de cultivar células cerebrais adultas pode ser útil para testar novos medicamentos ou terapias genéticas para muitas doenças cerebrais".No entanto, é importante esclarecer que esta descoberta não significa que devemos começar a consumir Tiorfan para proteger e regenerar os neurónios. Por enquanto, as concentrações eficazes e seguras para o cérebro humano permanecem desconhecidas. Como indica a Erna van Niekerk, "Estamos agora a trabalhar para optimizar o Tiorfan para futuros ensaios clínicos, uma tarefa que é simplificada pelo facto de o medicamento já ter sido utilizado com segurança em pessoas [como antidiarreico]".Em suma, trata-se de uma investigação muito promissora que tem muitas hipóteses de se tornar uma nova forma de abordar as paralisias que, actualmente, são incuráveis. Um modo de os neurónios voltarem a reunir-se com partes do corpo que ficaram isoladas e de facilitar aos laboratórios o estudo das doenças neurológicas.

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Hubbard Brook, uma floresta-laboratório há seis décadas

Num recanto aparentemente tranquilo das montanhas do nordeste dos Estados Unidos, encontra-se uma floresta que serviu de pano de fundo a alguns dos mais importantes estudos ecológicos globais das últimas seis décadas.Esta é a Floresta Experimental de Hubbard Brook, um ambiente que tem facilitado a investigação sobre os ecossistemas no seu estado natural e tem sido crucial na identificação de problemas ecológicos em todo o mundo, como as chuvas ácidas e os impactos do aquecimento global.UMA FLORESTA, UMA IDEIAEm 1955, no coração das Montanhas Brancas de New Hampshire, nos Estados Unidos, um grupo de cientistas e silvicultores escolheu uma área arborizada aparentemente comum para realizar uma experiência nunca antes vista: a Floresta Experimental de Hubbard Brook. A ideia era muito simples, quase natural, mas não tão fácil de concretizar: estudar todo um ecossistema como se fosse um laboratório natural, medindo com grande precisão o movimento da água, a circulação dos nutrientes e o comportamento do ambiente quando este sofria alguma alteração.Por outras palavras, foi uma das primeiras aplicações do que hoje se designa por “ecologia de bacias hidrográficas”. Em vez de analisarem os organismos e as espécies isoladamente, os cientistas decidiram que era melhor estudar todo o ecossistema. Para facilitar a tarefa, começaram por dividir a floresta em pequenas bacias hidrográficas e começaram a tomar nota de tudo o que acontecia em cada uma delas: quanta água entrava pela chuva, quanta saía pelos cursos de água e que elementos e compostos entravam e saíam com ela.AS EXPERIÊNCIAS QUE ABRIRAM OS OLHOS DO MUNDOMas talvez uma das experiências mais conhecidas de todas as que foram realizadas em Hubbard Brook seja a da desflorestação. É verdade, nos anos 1960, numa das bacias hidrográficas, os cientistas decidiram cortar todas as árvores existentes e aplicar herbicidas para evitar que as espécies vegetais voltassem a crescer. E embora isto possa parecer uma loucura e um disparate, na verdade tinham um objectivo: ver qual seria o impacto no ciclo da água e dos nutrientes.E o resultado foi verdadeiramente inesperado: a água começou a escorrer e a fluir muito mais rapidamente através do solo, provocando a perda de grandes quantidades de azoto, cálcio e outros elementos vitais. Em última análise, o resultado foi um desequilíbrio drástico de todo o ecossistema e uma descoberta completamente inesperada que colocou a floresta no centro do debate ambiental global.Mas havia mais: ao analisarem a composição da água da chuva, os investigadores descobriram também que esta era invulgarmente ácida, algo que parecia não estar relacionado com o abate das florestas. Na verdade, foram precisos anos para descobrirem que a razão desta acidez estava muito longe da floresta: estava directamente relacionada com a poluição atmosférica proveniente de fábricas a centenas de quilómetros de distância. Esta foi a primeira prova concreta do fenómeno da chuva ácida, um problema ambiental que obrigou a repensar a relação entre a indústria e o ambiente.UM LABORATÓRIO VIVOAo longo dos anos, longe de ser esquecido, o valor de Hubbard Brook continuou a crescer. Ao contrário de outros projectos que duram apenas alguns anos, este laboratório natural fornece constantemente dados há mais de meio século. É precisamente graças a esta continuidade na recolha de resultados que os cientistas puderam observar como os ecossistemas respondem a alterações lentas e cumulativas, como o aumento da temperatura, a diminuição da queda de neve ou a alteração dos ciclos sazonais.De facto, hoje em dia, esta floresta continua a ser um ponto de referência mundial para o estudo das alterações climáticas. Monitoriza os níveis de carbono capturados pelas árvores, a migração de aves e insectos e as alterações que podem ocorrer na composição do solo. Foram mesmo efectuadas experiências sobre a forma como as florestas poderiam ajudar a mitigar os efeitos das alterações climáticas e do aquecimento global. Por outras palavras, Hubbard Brook é hoje um modelo da combinação perfeita de ciência, conservação e política ambiental.

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Uma cor como sinal

Este colhereiro-americano (Platalea ajaja) deve o seu nome à forma característica do bico, que move de um lado para o outro na lama para filtrar grande parte do alimento que ingere. Tal como acontece com os flamingos, a cor rosa destas aves deve-se à presença de pigmentos orgânicos chamados carotenóides, que extraem das micro-algas e crustáceos de que se alimentam.Uma vez ingeridos, são metabolizados e depositados nas penas, pele e bico. A intensidade da cor é um indicador do estado nutricional e de saúde. Influencia, inclusive, na selecção sexual.

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Beverly e Dereck Joubert falam sobre aquilo que faz uma grande imagem e como a fotografia mudou

Mais de 40 anos de fotografias captadas pela famosa conservacionista Beverly Joubert foram esmiuçadas até serem reduzidas a poucas centenas das suas imagens mais poderosas para um novo livro, Wild Eye: A Life in Photographs. Um elefante num charco que reluz como ouro martelado, uma manada de gnus a atravessar um rio e paisagens naturais encantadoras – estas são apenas algumas das fotografias que agraciam as suas páginas.Joubert e o seu marido cineasta, Dereck – ambos Exploradores da National Geographic – trabalharam juntos no livro e sentaram-se à conversa com a National Geographic, falando-nos sobre o seu processo, esperanças e receios para o mundo natural – e dando conselhos aos aspirantes a fotógrafos de vida selvagem.National Geographic Portugal: O livro é uma espécie de retrospectiva com fotografias de décadas do vosso trabalho. Por que tiveram vontade de fazer este tipo de obra agora?Dereck Joubert (DJ): Posso responder a isso. Acho que é um ponto intermédio da carreira da Beverly. [Risos] Parece-me o momento apropriado para o pôr cá fora e começar de novo. Não. Na verdade, nós assistimos a algumas mudanças significativas nos ambientes nos quais trabalhamos e quisemos catalogar isso agora. Depois, poderemos revisitá-lo daqui a 20 anos, mais ou menos, e ver se as coisas se recompuseram, que é a versão esperançosa, ou se ficaram na mesma. Digamos que é uma espécie de marco para todos nós.Beverly Joubert (BJ): Se observarmos a nossa jornada ao longo dos últimos 40 anos, tanto na fotografia como em filme, algo que também estivemos a fazer recentemente, podemos ver uma grande mudança. Nas políticas do ambiente – nem sempre para melhor – e no aumento da população que, lentamente, vai circundando estas últimas áreas de vida selvagem, algo que pode ser catastrófico de muitas formas. Por isso, tentámos pôr isto em destaque para nos ajudar a celebrar as últimas zonas selvagens intactas, na esperança de convencer corações e mentes a ajudarem-nos a protegê-las.DJ: Adoraria que falassem sobre o processo. Não consigo imaginar o total de fotografias que tiraram ao longo das vossas vidas. Como escolheram as fotografias que figuram no livro?BJ: Sim, isso foi muito difícil, tenho de admitir. Mas, ao longo de 40 anos, eu fui sempre fazendo alguma edição de imagem. Fui vendo os momentos mais icónicos ou a imagem mais icónica que contivesse algum mistério, que contasse a história toda. Não se trata simplesmente de uma imagem, sabe? A história é o mistério e, através disso e ao longo dos anos, fui sempre mantendo uma selecção. É engraçado que essas não foram necessariamente as imagens escolhidas para o livro. O processo esteve sempre em curso.Eu e o Dereck chegámos à selecção que nos pareceu relevante para aquilo que queríamos contar e que estava bastante ligada aos nossos filmes. Depois apresentámos isso à National Geographic. Eles fizeram mais uma selecção e colaborámos de uma forma maravilhosa e as nossas mentes criativas todas juntas deram origem ao livro. Mas devo dizer que o livro evoluiu de uma forma muito diferente de um livro de fotografias normal. Tivemos sempre um cérebro cinematográfico e não queríamos apenas uma imagem e um contraste com a imagem seguinte se não contasse uma história. Sempre quisemos que a cor e o tom de uma imagem combinassem com a seguinte. Queríamos uma história coesa. E acho que foi isso que aconteceu no livro, que é muito diferente de todos os outros livros que já fizemos.DJ: Parte do processo foi criar capítulos que reflectissem ou fossem simbólicos da nossa jornada, começando com Awe e passando a todas as outras coisas. Por isso, a selecção de imagens assumiu a forma de vários conjuntos e, por vezes, tivemos de fazer escolhas, se aquelas imagens não fossem representativas daquilo que sentíamos naquele momento e naquele espaço das nossas carreiras.NG: Havia algumas imagens particularmente especiais para vocês enquanto montavam o livro?DJ: Todas as que mereceram destaque...BJ: Como é evidente, como pode ver mesmo aqui na parede [aponta em direcção ao poster de leopardo pendurado na parede], temos aqui a capa e vivemos com esta imagem ao longo da COVID. Achámos que ela seria um grande espírito para manter viva a energia da vida selvagem africana. Este leopardo em particular, ao qual chamámos Legadema, que significa luz do céu – demos-lhe este nome por causa de um raio que caiu muito perto dela e de nós. A compaixão presente nos olhos dela, porque já estávamos com ela há quatro anos e, por isso, ela conhecia-nos. Éramos mais um animal da floresta com quem ela tinha uma relação. Na verdade, quase nos sentíamos seus pais substitutos. Acho que a víamos como nossa filha substituta, uma vez que nunca tivemos filhos nossos. Ela foi a fonte de inspiração que nos levou a criar a Big Cats Initiative com a National Geographic. Percebemos que o número de grandes felinos foi diminuindo ao longo da nossa vida e queríamos fazer alguma coisa em relação a isso. Daí o filme que fizemos foi sobre ela: Eye of the Leopard. Ela tornou-se uma fabulosa embaixadora pelo mundo fora. Curiosamente, ao vermos as fotografias dos seus 40 anos, decidimos que ela tinha mesmo de estar na capa.Não queremos animais que assustem as pessoas. Achamos que a única forma de protegermos os animais é através dos seus olhos. Se a alma de um animal estabelecer contacto connosco, vamos apaixonar-nos por ele. E foi por isso que a capa se tornou aquilo a que chamamos olhos de mel.Dereck Joubert: Acho que aquilo que se vê neste livro é a ponta do icebergue. A Beverly anda por aí para tirar 10.000, 20.000 fotografias por mês e eu escolho uma ou duas de cada mês. Não existe uma única imagem neste livro, agora que o folheio, que me faça pensar: “talvez esta não seja tão boa como a outra”. Esta é mesmo “a” selecção destes 40 anos.NG: Existe alguma imagem em particular que ainda queira, à falta de melhor termo, caçar?BJ: Sabe, enquanto amantes dos animais e estudiosos do seu comportamento, andamos sempre atrás do desconhecido. E é impressionante sentirmos que ainda não captámos tudo, porque se assim fosse, poderíamos pendurar as nossas câmaras de filmar e máquinas fotográficas e parar. Mas, para mim, o desconhecido é estar completamente receptiva seja ao que for. E a natureza surpreende-nos, surpreende-me, constantemente. Há pouco, estivemos no Alasca e fiquei de olhos arregalados com a beleza e maravilhada com poder admirar tão de perto baleias-jubarte e ursos pardos. Descobrir novos animais e ter novas interacções é algo que está sempre presente.Por exemplo, quando começámos, na década de 1980, e ao longo da década de 1990, foi uma altura em que houve uma grande mudança, uma grande alteração na nossa zona e tudo secou durante 27 anos. Por isso, aquilo que estamos a ver agora, nenhum cientista viu antes. E suponho que isso nos tenha mantido fascinados e à procura do desconhecido, daquilo que as pessoas nunca viram. E foi assim que nos tornámos os primeiros a fotografar leões a atacar elefantes, desde crias de quatro, cinco anos, até uma fêmea de 21 anos. Por isso sim, estamos sempre receptivos, à espera de algo novo.DJ: Num paralelo cinematográfico, andar atrás de uma fotografia é uma caça aos gambuzinos. É a fotografia que nos encontra, tal como é a oportunidade que nos encontra. Quanto mais andarmos atrás dela, mais distante ela se torna.BJ: Mas, posto isto, não podemos simplesmente esperar que aconteça sem investirmos o nosso tempo. Temos de lá estar a investir o nosso tempo. Temos de ter paciência, 16 a 18 horas por dia, à espera e a observar.NG: Vivemos numa época em que a fotografia é omnipresente. Todos são fotógrafos nas suas redes sociais, a indústria dos safáris está em alta, por isso todos tiram fotografias a leões elefantes, etc. Este tipo de nova era e ambiente digital mudou a forma como encaram a fotografia no vosso trabalho?DJ: Sim, mudou completamente. Quando a Beverly começou, enfiava um rolo de 36 fotografias numa máquina fotográfica e captava a imagem perfeita de vez em quando e ia puxando o rolo. Por isso, o facto de agora podermos captar mil fotogramas em poucos minutos é muito, muito diferente. Os princípios são os mesmos, mas o excesso pode ser avassalador.Mais uma vez, do ponto de vista cinematográfico, é exactamente o excesso daquilo que podemos captar. Podemos deixar ali a câmara o dia inteiro e mudar a bateria de vez em quando. E isso significa que há uma certa desvantagem e que cada imagem se torna menos preciosa. Tornou-se um ofício muito menos artesanal. Podemos ser seduzidos pelo excesso de fast-food da era da fotografia digital, mas, se resistirmos a essa tentação, as recompensas são incríveis, porque temos acesso a momentos que estávamos a perder antes.BJ: Quando trabalhávamos com película, eu tinha de esperar três a seis meses para ver uma imagem. Tínhamos de enviar os rolos para Londres para serem revelados. Mas é claro que ainda estávamos no mato. Demorávamos imenso tempo a editar essas imagens. Não evoluíamos necessariamente no sentido de ver onde tínhamos errado com a luz ou se precisávamos de mais um momento para tentar captar alguma coisa. Se uma hiena e um leão estivessem a lutar, era esse o momento que captávamos. Era bom que o captássemos bem. Senão, estava tudo perdido.Hoje, por outro lado, acho que muitas pessoas programam a máquina para captar o maior número de fotogramas por segundo e limitam-se a tirar mil fotografias de uma mesma cena. Mas será que captam magistralmente o momento mais criativo? E estou a pensar nisso porque a película me dava um padrão que me permitia respirar, fazer uma pausa e tratar a fotografia como uma forma de arte e captá-la com o devido respeito.Acho que o que se passa agora é que toda a gente fotografa com um iPhone. Às vezes vou ao Instagram e penso: “como conseguiram captar aquele momento?” E, frequentemente, foi alguém que estava a fazer uma viagem de três dias e foi pura coincidência. Tiveram muita sorte e nós poderíamos ter estado à espera durante um ano para captar algo semelhante. A nossa arte precisava de tempo. Mas há alturas em que uma pessoa pode simplesmente ter sorte.NG: A fotografia e a cinematografia estão ligadas aos vossos esforços de conservação e ambientalismo. Ao longo dos vossos 40 anos de trabalho, quais as mudanças que consideram mais significativas? E quais as coisas a que estão mais atentos?DJ: Quando nós nascemos, havia ligeiramente menos de mil milhões de pessoas no planeta e hoje existem mais de oito mil milhões. Esse aumento do número de pessoas e das zonas do planeta que estão a ser consumidas por essas pessoas – e consumidas através de produtos alimentares gado, centros comerciais de betão, tudo o que seja consumo. Existem sítios em África onde montávamos acampamento e tudo o que conseguíamos ver durante a noite era escuridão. Se olhar para um mapa da noite, uma imagem global, nós gostamos de viver nesses buracos escuros que existem entre as luzes – e que estão a tornar-se cada vez mais difíceis de encontrar. Nesses mesmos acampamentos, vemos agora ao longe uma cidade inteira de luzes. É assustador. É inevitável e há muito pouco que possamos fazer em relação a isso.O impacto da humanidade teve o seu efeito nestes maravilhosos sistemas naturais. Os números da vida selvagem estão a diminuir. Quando eu e a Beverly nascemos, havia 450.000 leões e hoje há 20.000. E esse declínio de 95 por cento de todo o capital natural, sejam sequóias ou tubarões, leões ou leopardos ou elefantes, que é praticamente a mesma coisa para o nosso estilo de vida, foi um declínio de 95 por cento. E já não é sustentável. Se projectarmos isso para o futuro, poderemos manter estes números durante 15 ou talvez 25 anos, a não que um livro como este, ou um filme que possamos fazer, toque muitas pessoas e pinte uma imagem de quão belos e preciosos são estes locais. E como é importante preservá-los. E é mais ou menos essa a nossa missão de vida. Usar estas imagens para que as pessoas se apaixonem e percebam que temos de trabalhar juntos para salvar isto tudo.BJ: Nós damos muitos livros nossos aos países onde estamos a trabalhar: a funcionários do governo e ao presidente. Para que os responsáveis políticos de cada país sintam o mesmo que nós, que vale a pena salvar estes animais. Temos muita sorte por muitos filmes nossos terem sido mostrados nas Nações Unidas. Agora precisamos de chegar aos responsáveis políticos para conseguirmos mudar as políticas.ng: Podem falar-me um pouco sobre a diferença entre fotografar e filmar vida selvagem e outros tipos de fotografia focados noutras coisas?DJ: Bem, não há qualquer tipo de diferença. Não importa o que está no enquadramento. Quer estejamos a fotografar os bairros de lata de Kibera, nos arredores de Nairobi, ou uma migração de gnus. É o que se passa dentro da imagem, a história dentro da imagem. Todas as grandes fotografias vão para além disso. Não se trata apenas do que está naquela fotografia, mas no que poderia ser a fotografia seguinte. O melhor exemplo disto é fotografar um homem que vai a andar na rua e está prestes a entrar num buraco porque há um bueiro destapado. As pessoas ficam a pensar: “o que irá acontecer a seguir?” É uma grande imagem. Se o virmos cair no buraco, pronto, a história já acabou. É contar uma história através de uma fotografia e não, simplesmente, tirar uma fotografia. É sobre a narrativa captada num dado momento e aquilo que nos transmite sobre o que vai acontecer a seguir.BJ: Quero acrescentar que nós conversamos frequentemente sobre criar uma imagem. Isso não significa que tenhamos de ir para a frente da lente, compor uma imagem e depois captá-la. Temos mesmo de estar receptivos ao mundo natural e a trabalhar com as culturas. Temos de estar receptivos e ficar entusiasmados com o que vemos à nossa frente – temos mesmo de sentir a excitação e a paixão daquele dia. Não podemos estar noutro sítio na nossa cabeça. Temos de estar ali, temos de estar muito presentes. E é impressionante aquilo que vemos e aquilo que conseguimos captar porque há tanto de nós naquela fotografia. Para mim e para o Dereck, eu acho que temos de captar as emoções daquele dia, não só as nossas como as daquele leão ou leopardo ou manada de elefantes. Porque essa é a única forma de mostrarmos uma fotografia às pessoas e elas sentirem a emoção, uma emoção parecida com a que nós sentimos naquela altura. E isso tem de vir daquela imagem.DJ: E acho que um dos grandes perigos da história natural e da fotografia de vida selvagem é que a maioria das pessoas pensam que estamos só a captar imagens. O leão está a andar da esquerda para a direita, por isso temos de captar aquele momento. Mas existem muito mais coisas na caixa de ferramentas da técnica que temos de usar para o captar bem ou mal. Podemos esperar ou talvez mudar ligeiramente de sítio para captar um brilho nos olhos dele, dependendo de onde o Sol estiver, e transformar um momento banal num momento extraordinário. Pode haver uma rajada de vento que lhe abane a juba. Se captarmos esse instante, criámos algo fantástico. Outros exemplos: o leão vem a caminhar na nossa direcção e conseguimos enquadrá-lo do lado esquerdo enquanto o vento sopra a sua ajuda para a direita. E é o vento na juba que capta o nosso olhar. Por isso, não se trata apenas de fotografar. É fazer com que a fotografia trabalhe a nosso favor para contar uma história. E mais uma vez, eu diria isto quer fosse um avião prestes a despenhar-se ou um leão prestes a atacar um elefanteBJ: Temos de estar sempre prontos nesses momentos!Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Neste mês, o Congresso Sun&Blue consolida a sua liderança como fórum internacional do turismo e da economia azul

O evento que decorrerá no Palácio de Exposições e Congressos Cabo de Gata – Cidade de Almeria reunirá especialistas internacionais, instituições públicas, empresas e universidades em torno de quatro grandes eixos temáticos: turismo, energia, água e municípios e territórios azuis, que serão abordados a partir de uma perspectiva transversal de financiamento, digitalização, economia circular, tecnologia e gestão de destinos turísticos sustentáveis.O programa do Congresso Sun&Blue 2025 contará, entre outros oradores de prestígio internacional, com Costas Christ, referência mundial em turismo responsável e ex-consultor do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), bem como com a participação de Melilla como cidade convidada, que demonstrará o seu compromisso com a sustentabilidade e a inovação turística. Serão também realizados eventos temáticos paralelos, o concurso Research e os Prémios Sun&Blue, que irão reconhecer os projectos mais inovadores e comprometidos com a sustentabilidade marítima.PRÉMIOS SUN&BLUE 2025: UMA EDIÇÃO MAIS INTERNACIONALA terceira edição dos Prémios Sun&Blue atinge números recorde e consolida-se como um reconhecimento de referência no âmbito da Economia Azul:45 candidaturas (44% mais do que em 2024); 6 países participantes: Itália, Croácia, Grécia, Argentina, República Dominicana e México; 15 projectos de cooperação; Mais de 25 localidades representadas; Mais de 20 instituições colaboradoras. O salto internacional desta edição marca um avanço na projecção mediterrânica e latino-americana do congresso, com uma participação mais ampla de câmaras municipais, universidades e autoridades portuárias, consolidando o espírito cooperativo e a visão partilhada da economia azul.INOVAÇÃO E CONHECIMENTOOs projectos submetidos a avaliação destacam-se pelo seu carácter inovador em áreas como as energias renováveis, a inteligência artificial, a Internet das Coisas(IoT) ou a gestão avançada da água. O envolvimento académico – com as universidades de Málaga, Alicante, Loyola e Granada entre as mais activas – reforça a ligação entre investigação, sustentabilidade e transformação turística.NETWORKING E EXPERIÊNCIASO congresso promoverá a activação de uma rede de contactos internacional e colaborações público-privadas, com o objectivo de gerar sinergias reais entre os agentes do ecossistema azul. Além disso, incluirá visitas técnicas a projectos inovadores em Almeria, permitindo conhecer in loco casos de sucesso em sustentabilidade e desenvolvimento económico costeiro.Entre as novidades desta edição destacam-se as Business Experiences, visitas guiadas que convidam a fazer parte de um turismo que não só conecta com a beleza natural, mas também oferece a oportunidade de compreender como a tecnologia e as práticas responsáveis estão a transformar a forma como interagimos com o mar.Durante a celebração do Congresso Sun&Blue 2025, terá também lugar o Blue Innovation Challenge, uma iniciativa impulsionada pelo Mecanismo Mediterrânico Multiprogramas Interreg (MMM), pela Universidade de Almeria e pela Câmara Municipal de Almeria, com o objectivo de identificar o talento juvenil em benefício da economia azul do Mediterrâneo.Para encerrar o dia 19, a Blue Party: Conectando em Azul oferecerá uma experiência vibrante, onde a cor azul marcará a agenda e o networking será o coração da noite. Mais do que uma festa, será um ponto de encontro moderno e descontraído para profissionais que buscam ampliar suas conexões no âmbito do  turismo e da economia azul.

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O debate sobre o Nanotyrannus ganha um novo rumo

Um dos problemas mais polémicos da paleontologia é um Tiranossauro rex (T. rex) adolescente com uma crise de identidade. Agora, dois cientistas afirmam ter resolvido o caso.Em 1942, investigadores do Museu de História Natural de Cleveland, nos EUA, encontraram o crânio de um pequeno terópode na Formação Hell Creek, em Montana. Depois de os cientistas o classificarem como uma nova espécie, Nanotyrannus lancensis, em 1988, o crânio desencadeou quatro décadas de aceso debate: esses fósseis de tiranossauros pequenos e esguios representam uma versão adolescente do temível T. rex ou um dinossauro totalmente distinto?Agora, após analisar mais de 200 fósseis de tiranossauros, os autores de um novo estudo, publicado recentemente na Nature, declararam que o Nanotyrannus era um dinossauro ágil e esguio que viveu, lado a lado, com o T. rex no crepúsculo do reinado do tirano. “Não queríamos contribuir para alimentar a discussão. Queríamos encerrá-la”, diz Lindsay Zanno, paleontóloga do Museu de Ciências Naturais da Carolina do Norte e co-autora do artigo. “Decidimos apenas garantir que íamos tirar a limpo essa questão sob todos os ângulos.”Alguns especialistas que não participaram no estudo elogiaram o rigor da investigação, dizendo que ele poderia ser um ponto de inflexão que finalmente encerraria o debate que já dura décadas.“Eles não deixaram pedra sobre pedra, nenhum fóssil sem examinar”, diz Lawrence Witmer, paleontólogo da Universidade de Ohio. “O resultado dos seus estudos cuidadosos é claro e tão definitivo quanto podemos obter em paleontologia: o Nanotyrannus é real.”Outros paleontólogos alertam que a descoberta, embora convincente, pode ser apenas a mais recente reviravolta na saga do Nanotyrannus.“Estas descobertas, tal como os relatórios anteriores, apresentam hipóteses. O que parece ser a resposta num dia pode ser refutado no dia seguinte com novas abordagens ou novos dados”, afirma Holly Woodward Ballard, paleo-histologista da Universidade Estadual de Oklahoma, cujo estudo anterior sobre as taxas de crescimento das patas dos tiranossauros colocou o Nanotyrannus na categoria do T. rex.O dilema dos “Dueling Dinosaurs”Em 2020, o Museu de Ciências Naturais da Carolina do Norte anunciou a aquisição do famoso fóssil de 67 milhões de anos do fóssil “Dueling Dinosaurs”. Há muito tempo em mãos privadas, o espécime primorosamente preservado mostrava um Triceratops e um pequeno tiranossauro aparentemente travando um combate mortal. Alguns cientistas achavam que o tiranossauro era um T. rex jovem que morreu antes de se desenvolver para a forma adulta, enquanto outros acreditavam que era um Nanotyrannus.Esta aquisição levou o fóssil para um museu pela primeira vez, permitindo que paleontólogos como Zanno tivessem um acesso mais directo ao que era essencialmente um esqueleto completo da criatura. A investigadora recrutou James Napoli, paleontólogo da Universidade Stony Brook, em Long Island, que havia estudado o crescimento e o desenvolvimento dos crocodilos, para ajudá-la a estudar o espécime.Quando Zanno e Napoli se sentaram para estudar o fóssil, “ficou rapidamente claro que havia muitos sinais de alerta”, diz Zanno, que também é exploradora da National Geographic. Havia muitas coisas sobre o espécime que “não pareciam encaixar-se nas nossas expectativas de como o T. rex deveria crescer, ou realmente como qualquer animal deveria crescer”.Os braços eram uma pista anatómica crucial de que algo estava errado. Eles já eram muito maiores do que os braços de um T. rex adulto. “Não há como esses braços encolherem durante o crescimento”, diz Napoli.Os cientistas também descobriram que o dinossauro tinha uma cauda mais curta do que a do T. rex, pernas comparativamente mais longas e mais dentes nas mandíbulas. Uma tomografia computadorizada também revelou que os seus nervos cranianos e sistema respiratório pareciam diferentes dos do T. rex. Além disso, ele tinha uma cavidade sinusal extra. Essas características, segundo eles, geralmente são definidas no início do desenvolvimento, o que significa que esse tiranossauro não estava a caminho de se transformar num T. rex adulto antes de morrer.Zanno e Napoli também retiraram secções finas dos ossos para analisar os seus anéis de crescimento, o que ajudou a indicar que tinha cerca de 20 anos e que era adulto, não juvenil.“Não há como defender cientificamente que se trata de um T.rex”, diz Napoli. Em vez disso, a dupla afirma que ele deveria ser rotulado como Nanotyrannus lancensis, a mesma espécie do Nanotyrannus que gerou o debate quando recebeu esse nome em 1988.Woodward Ballard concordou que os dados da investigadora parecem indicar que o espécime está a aproximar-se do tamanho adulto – e isso é um “forte argumento” para chamá-lo de Nanotyrannus, diz ela.Mas e quanto aos outros espécimes?Uma nova imagem de um predador pré-históricoCom base nas evidências do fóssil “Dueling Dinosaurs”, Napoli e Zanno também examinaram tiranossauros mantidos em colecções nos EUA, Canadá e Ásia. No total, eles identificaram alguns espécimes que, segundo eles, são Nanotyrannus, incluindo o controverso Jane, mantido no Burpee Museum, em Illinois, e o espécime do museu de Cleveland, que recebeu esse nome em 1988.“O debate sobre o Nanotyrannus dura há décadas, e acho que a maioria dos cientistas concordou que se tratava de um T. rex juvenil”, diz David Evans, paleontólogo do Museu Real de Ontário. “Este novo estudo vai surpreender muita gente.”As descobertas sugerem que o Nanotyrannus era um predador com cerca de metade do tamanho do T. rex e apenas um décimo da sua massa corporal. Se o T. rex – pesando 8.165 quilogramas e medindo mais de 12 metros – era o leão do final do Cretácico, o Nanotyrannus – medindo cerca de 680 quilogramas e 5,5 metros – pode ter sido uma chita construída para a velocidade, em vez de força bruta.“A partir deste artigo, a nossa área precisa de partir do pressuposto de que o Nanotyrannus é uma espécie válida”, diz Napoli. “Há um grande volume de investigações que precisa de ser completamente reavaliado.”Se confirmada, a descoberta poderá reformular o que os cientistas sabem sobre o predador pré-histórico mais famoso da Terra e fornecer informações sobre outros carnívoros que vagavam pela paisagem do final do Cretácico. Os autores acrescentam que os seus resultados também podem levar a uma reanálise abrangente de como o T. rex cresceu e se desenvolveu. Algumas das principais teorias, dizem eles, foram construídas com base na suposição de que os fósseis de Nanotyrannus representavam o T. rex durante a sua adolescência desajeitada, uma noção que a nova investigação pode derrubar.“Ainda não estou pronto para proclamar que todos os esqueletos menores de tiranossauros são Nanotyrannus. Alguns deles devem ser T. rex juvenis”, diz Steve Brusatte, explorador da National Geographic e paleontólogo da Universidade de Edimburgo, na Escócia, que há muito argumenta que o Nanotyrannus é apenas um T.rex jovem. Mas ele diz que os argumentos a favor da existência do Nanotyrannus são inegavelmente fortes.“É maravilhoso quando novas evidências mostram que algumas das nossas noções apaixonadas – as minhas noções apaixonadas como investigador de tiranossauros – provavelmente estão erradas”, acrescenta. “Isso é ciência, e com fósseis, sempre temos que ser humildes com a realidade de que estamos a lidar com amostras tão pequenas, pistas tão escassas de milhões de anos atrás, e cada nova descoberta tem a possibilidade de derrubar o conhecimento convencional.”

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Porque mataram estes tubarões "inofensivos" um mergulhador em Israel

No passado dia 21 de Abril de 2025, um homem de 40 anos estava a praticar snorkeling perto da localidade de Hadera, em Israel, uma zona conhecida entre os aficionados por mergulho pela presença de tubarões-faqueta (Carcharhinus obscurus). Ciente de que teria a oportunidade de nadar entre os tubarões, a futura vítima levava consigo uma câmara GoPro para filmar o encontro. O que não imaginava este homem era que seria brutalmente atacado e perderia a vida.O acontecimento foi muito badalado na altura porque os tubarões-faqueta, apesar de poderem atingir umcomprimento de 3,2 metros e pesar mais de 150 quilogramas, eram até este episódio considerados inofensivos para os seres humanos. Além disso, estão habituados à presença humana na referida área de Israel devido ao grande número de mergulhadores e a uma fábrica de dessalinização próxima, que liberta água com uma temperatura mais elevada do que o normal na região. Dois factores-chaveA raridade deste evento levou dois biólogos marinhos a procurar respostas para o sucedido. Eric Clua, da Paris Science and Letters Research University, e Kristian Parton, da Universidade de Exeter, apresentaram as suas conclusões num estudo publicado na revista Ethology.A investigação afirma que o ataque mortal começou quando um dos tubarões mordeu, com intenção exploratória, a câmara GoPro que o mergulhador levava consigo. Algo que, segundo eles, foi possível devido ao facto de este animal estar habituado à presença de humanos.Mas não só isso. Os biólogos sustentam que a tentativa de morder a câmara se deveu ao facto de os tubarões-faqueta da zona estarem habituados a serem alimentados artificialmente com o objectivo de os manter na zona e potenciar o ecoturismo.O problema foi que, sem querer, o tubarão feriu o mergulhador, o que fez com que o seu sangue chegasse à água. O estímulo olfactivo que isso provocou nos outros tubarões, juntamente com os gritos de pânico do mergulhador, anulou o seu instinto e motivou o ataque em grupo."O som e os estímulos olfactivos provavelmente desencadearam um frenesi alimentar, o que levou vários tubarões a participar com mordidas predatórias", escrevem os autores no artigo.Testemunhas do incidente afirmaram ter ouvido gritos pedindo ajuda antes que o indivíduo desaparecesse e o mar se tingisse de vermelho, o que corrobora a teoria de Eric Clua e Kristian Parton. A posterior localização dos seus restos mortais permitiu confirmar a identidade da vítima.Um problema que precisa de regulamentaçãoOs cientistas enfatizam que a alimentação artificial de tubarões por humanos em Hadera e noutros lugares do mundo representa um grave risco. Na verdade, eles afirmam que, apesar de o turismo de observação de tubarões ser fundamental para as economias locais, essa prática deveria ser interrompida imediatamente.Se isso fosse feito, o comportamento dos tubarões seria restabelecido e eles voltariam a manter uma distância segura dos mergulhadores. Além disso, alertam que a solução mais prejudicial para o ecossistema seria o abate colectivo dos tubarões que habitam a região.

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O coração físico do país

Integrada na Cordilheira Central Ibérica, a serra da Estrela constitui, no seu prolongamento português, o mais extenso conjunto montanhoso do Ocidente peninsular, erguendo-se como o marco geográfico onde se inicia o forte contraste natural e humano que distingue o Norte do Sul de Portugal. Neste território único, que acolhe a mais alta elevação do continente português (Torre, 1.993m), foi implantado, em 1976, o Parque Natural da Serra da Estrela, uma área protegida com cerca de 90 mil hectares que se apresenta como a mais emblemática do país no que diz respeito aos valores naturais associados à altitude. O Covão da Ametade (na imagem) é um dos locais mais belos do parque, situado no sopé do Cântaro Magro,  pico mais emblemático da Estrela, e nas encostas de São Lourenço, perto da capela com o mesmo nome e onde se criou um dos mais belos bosques de faias de Portugal. Durante a época de Outono, ambos são locais de romaria, provando que a falta de clorofila de bétulas e faias consegue mesmo mover montanhas… de gente.Excerto de artigo publicado na Edição Especial Viagens n.º 60 – Paraísos Naturais de Portugal e Espanha.

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Editorial da National Geographic n.º 296: O latido que nos inspira

Permitam-me que vos conte uma história, mas, para isso, temos de recuar à corte de Carlos I, rei de Inglaterra no século XVII. Em 1641, o monarca soube que o jovem filho do visconde de Montgomery sofrera, anos antes, um dramático acidente de cavalo. Partira várias costelas e a ferida criou um abcesso, que depois se curou sem cicatrizar. Como resultado, o jovem cresceu – próspero e são – com um buraco aberto no peito que permitia aos outros verem o batimento do seu coração sem qualquer filtro. Diz-se que o rei pediu para inserir um dedo no orifício e gentilmente tocou no músculo vibrante.Para muitos, era uma curiosidade anatómica extravagante. Para o médico real William Harvey, foi uma epifania: séculos de tradição anatómica tinham atribuído até então ao coração as funções que hoje sabemos pertencerem ao cérebro. Atribuíam-se-lhe funções sensoriais e pensamentos cuja coordenação a neurologia sabe agora que cabem ao hipocampo e à amígdala. Mas vê-lo a bombear sangue, como um motor circulatório, mudou a percepção do sistema. O coração já não era o maestro da nossa existência.Nesta edição, partimos à descoberta das investigações mais recentes sobre o coração. Visitámos o gabinete de um investigador que despreocupadamente nos mostrou uma réplica virtual – absolutamente rigorosa – de um coração, que permite aos médicos testarem a capacidade de carga do músculo e simularem diferentes estímulos. Estivemos também durante cinco horas numa sala de operações onde o protagonista foi um robot e o cirurgião principal actuava a alguns metros do corpo que operava. Entrevistámos um atleta que compete diariamente com um desfibrilhador subcutâneo implantado e outros cuja performance cardíaca é medida ao centímetro em cada momento de treino ou jogo.Emergimos com um renovado respeito pelo coração. Pode já não ser o maestro de todas as fantasias, mas está no centro de uma gigantesca revolução biomédica que nos afectará a todos.

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Lisboa 1 de Novembro de 1755, o dia em que tudo ruiu

Portugal vive dias de esperança neste ano da graça de 1755. A Casa da Ópera do Tejo foi inaugurada em Abril para saudar um género dramático que, na geração anterior, era apupado em Lisboa. Do Brasil, chegam 125 arrobas de ouro por ano, marcando o auge da exploração do nobre metal brasileiro e restabelecendo o tesouro público que tão desbaratado fora no reinado de Dom João V. No Porto, constrói-se, desde 1754, a Torre dos Clérigos e, em Braga, o Palácio do Raio vai ganhando forma.A Coroa fundou, em Junho, a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, para potenciar a exploração de matérias-primas destes estados brasileiros. Aos 44 anos, Dom José I cumpre o seu quinto ano de reinado. Desde 1750 que o rei conta com o ex-embaixador em Viena e em Londres, Sebastião José de Carvalho e Melo, como secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, cuja opinião cosmopolita preza e valoriza. A rainha-mãe morreu no ano anterior, mas a vida retoma a normalidade em Lisboa. O monarca é melómano e gosta de caçar. Não se lhe conhecem especiais interesses pela governação, mas Portugal está bem posicionado no xadrez da alta política europeia. No início da década, a Casa da Áustria quebrou a ligação à Inglaterra e aproximou-se do bloco franco-hispano. Neste primeiro de Novembro, dia de Todos os Santos, nasce, em Viena, Maria Antonieta, que o imperador austríaco se vai apressar a fazer casar com o futuro Luís XVI de França. Fruto das ligações comerciais que tornam Portugal em tudo dependente de Inglaterra, Dom José mantém-se fiel ao velho aliado, mas respira-se intriga na corte, sobretudo entre os apaniguados do chamado partido francês.Seguramente que a conversa entre o irmão do inglês Joseph Fowke, mercador da Feitoria Britânica, e os portugueses José Alves e Francisco se centrava em temas muito mais mundanos nesta manhã de sábado. Tomaram o pequeno-almoço e estavam agora no escritório do inglês. A manhã estava fria, como é próprio de Novembro, mas não gelada. Os termómetros marcavam 17 graus. Por todo o lado se acendiam velas em antecipação do dia de finados. As igrejas estavam apinhadas de fiéis. Comentava-se, aqui e acolá, que foram vistas novas nascentes de água e, em outras, o fluxo aumentou de intensidade. Os relógios e os sinos assinalavam pouco mais de trinta minutos das nove horas da manhã.Antecedido por um ruído crescente, o solo tremeu sem aviso. Fowke pensou que, na rua, passava uma carruagem de seis cavalos, mas depressa pressentiu que o sismo poderia ser igual ou pior do que aquele que assustara Londres cinco anos antes. Lembrou-se que a casa do irmão continha um maciço arco de pedra. Em passo de corrida, os três amigos fugiram, enquanto as casas pareciam executar uma estranha dança, antes de colapsar com estrondo. Varandas caíram sem aviso. Telhas precipitaram-se dos telhados. Francisco tombou, inerte, sem vida. Os outros dois encontraram abrigo no arco, instantes antes de a casa de Fowke ruir como um castelo de cartas.Aos 26 anos, Thomas Chase preparava-se para festejar mais um aniversário. Estava em casa, num quarto andar da Rua das Pedras Negras, a mesma onde nasceu. Como qualquer um dos cerca de 250 mil habitantes de Lisboa, sentiu o terramoto e temeu pela estabilidade da sua velha casa. Subiu ao eirado da habitação, decisão extemporânea que rapidamente lamentou. O eirado tremeu e pareceu levitar, antes de tombar pesadamente no solo. Thomas acordou parcialmente soterrado por destroços e a boca cheia de terra. Caíra de uma altura elevada e tardou em compreender que deslocara o ombro. O braço direito pendia, inerte. Os joelhos e as pernas estavam repletos de feridas. Apesar das dores, a preocupação do britânico nascido em Lisboa era outra: a queda encurralara-o num espaço de dez pés de comprimento por dois de largura. De cima, telhas e outros detritos continuavam a cair.Quarteirões inteiros desmembraram-se. Concentrados à hora da missa, muitos fiéis foram esmagados pelos escombros das igrejas ou ficaram encurralados por toneladas de entulho.Encostou-se a uma das paredes, mais fina, e descobriu com alívio que ela possuía uma fenda. Passou a cabeça, depois o braço, de seguida todo o corpo. O movimento foi rápido de mais e Thomas precipitou-se a dois pés de altura para o compartimento subjacente. Estava na divisória de outra casa, seguramente vizinha da sua, mas que o terramoto rearranjara com um humor bizarro. Torneou um forno e encontrou, imerso em pensamentos, um português coberto de poeira. “Jesus, Maria e José! Quem é você? De onde vem?”, exclamou o homem, assustado com a aparição. Thomas arrastou-se  penosamente para fora do edifício sinistrado. Subiu uma encosta e dirigiu-se penosamente a casa do alemão Ernest Frog, mercador de Hamburgo, que, naquela hora de aflição, acolhia todos quantos podia no jardim da sua residência. Em boa hora Chase o fez. Deitado numa cama, já na residência do alemão, enquanto procurava restabelecer o fôlego, um novo abalo, quase tão forte como os anteriores, fez cair o estuque da parede e agitou o mobiliário.Os oito minutos de episódios sísmicos tiveram consequências desastrosas em toda a cidade. Quarteirões inteiros desmembraram-se. Concentrados à hora da missa, muitos fiéis foram esmagados pelos escombros das igrejas ou ficaram encurralados debaixo de toneladas de pedra e madeira. Fazendo-se valer do senso comum, muitos populares acorreram de imediato ao rio, procurando os espaços abertos do Terreiro do Paço. Às onze horas, em simultâneo com mais um abalo violento, o comandante de um navio inglês, ancorado em frente ao porto, não queria acreditar quando se apercebeu que o nível da água do Tejo subia assustadoramente. Tendencialmente alagada em períodos de cheia, a Baixa de Lisboa não desconhecia os riscos da inundação, mas, neste primeiro de Novembro, a água não parou de subir. “Por mais de uma vez me ocorreu que a Inquisição, com toda a sua extrema crueldade, não podia ter inventado metade de uma tal variedade de torturas para o espírito, como as que estávamos então a sofrer”, escreveu Chase.Os pilotos de pequenos barcos ancorados foram sacudidos violentamente para a terra, onde se procuravam segurar. No cais da Ribeira das Naus, porto de construção e reparação naval, a água arrancou embarcações a seco e resgatou-as para o mar, como se quisesse de volta o que lhe pertencia. A maré encheu e vazou três vezes, no espaço de quatro ou cinco minutos. O castelo do Bugio ficou parcialmente escondido pelas águas, a tal ponto que a guarnição, aterrorizada, disparou para o ar tiros de socorro. O bairro de São Paulo foi alagado, tal como parte da zona ribeirinha. No cais da Pedra, que Dom João V mandara construir no Terreiro do Paço, cerca de trezentas pessoas acomodavam-se enquanto aguardavam possível transporte para fora do inferno em que a cidade se tornara. Os solos arenosos em que assentava a estrutura sofreram provavelmente liquefacção, colapsando para o fundo do rio, por falta de apoio das fundações, e transportaram consigo os infelizes que nela se equilibravam.Um pouco por toda a cidade, entre os escombros, deflagravam incêndios. O palácio do marquês de Louriçal e a Igreja de São Domingos foram dos primeiros a arder. Em breve, aos alegados ventos subterrâneos dos terramotos e à água impiedosa do maremoto, somar-se-ia o fogo flagelador, um gigantesco incêndio que lavraria nos cinco dias seguintes, consumindo grande parte da cidade, queimando palácios e igrejas, consumindo os armazéns da Casa da Índia e aproximando-se perigosamente do paiol de pólvora do Castelo de São Jorge. Entre o caos, chegaram notícias de actos raros de sobrevivência. Na Igreja da Penha, um homem foi encontrado com vida ao fim de quatro dias. Na Basílica de Santa Maria, outro resistiu sete dias à prisão de entulho. Na Rua dos Canos, uma rapariga ainda estava viva ao fim de nove dias de encarceramento sob os escombros.Lisboa estava – não havia engano – perante uma punição de contornos bíblicos, mas, pela primeira vez na história do país, e com raros exemplos anteriores na Europa, um governo deu início ao esforço de socorro e prestação de cuidados básicos perante uma catástrofe. O advento da protecção civil surgiu em Lisboa.Sentia-se o pânico na cidade à medida que o fogo se propagava e a terra não cessava de tremer. O preço das embarcações aumentava a cada minuto. Os estrangeiros endinheirados mandavam escravos para negociar a sua salvação com os barqueiros. Bandos de malfeitores, alguns fugidos das prisões destruídas nesse dia, vagueavam pela cidade, pilhando, queimando e atacando outros sobreviventes. Algumas horas depois, em resposta directa a estas pilhagens, o rei mandaria instalar seis forcas na cidade, instituindo julgamentos sumários para quem pilhasse. Uma semana depois, viajantes darão conta que os corpos enforcados ainda permaneciam dependurados, em jeito de aviso.Cada vez mais fraco, Thomas Chase sentiu as forças escaparem-se-lhe. Resolveu antecipar a sua sorte e tentou caminhar na direcção de uma ravina para acabar de vez “com as misérias excessivas”. Em vão. Não conseguia caminhar. Por todo o lado, a população parecia convencida de que o dia do juízo final chegara. Pregadores de circunstância anunciavam o desfecho, e Chase deu conta de que, a cada tremor, os populares “bradavam ‘Misericórdia!’ todos de joelhos, nos tons de voz mais dolorosos que se possam imaginar.” Gabriel Malagrida era um jesuíta italiano, de 66 anos, conhecido pelos seus dotes oratórios. No reinado de Dom João V, obtivera licença para fundar uma missão em Pará, e o prestígio granjeado levara a corte a escolhê-lo para acompanhar o rei no último sopro de vida em 1750. No início do reinado de Dom José, voltou para o estrangeiro, mas foi requisitado em 1754 para assistir a morte da rainha-mãe. Confidente da família Távora e jesuíta obstinado, Malagrida tinha os condimentos para esbarrar com Sebastião de Carvalho e Melo. O terramoto acelerou o desfecho.Em sermões públicos, nos dias seguintes ao fatídico primeiro de Novembro, Malagrida apressou-se a condenar a opulenta vida contemporânea como causa directa para a fúria de Deus. Para Sebastião de Melo, o empenho nos trabalhos de reconstrução dependia da aceitação das causas naturais do fenómeno. Cada sermão de Malagrida, pregador convincente, cujas míticas barbas brancas despertavam devoção, colocava em causa a autoridade do rei e do ministro. “Nem o próprio Diabo poderia inventar uma falsa ideia tão passível de nos conduzir à ruína irreparável”, pregava Malagrida sobre as alegadas causas naturais do fenómeno. Nos seus múltiplos sermões, o padre sugeria que os teatros, a música, as danças luxuosas, as comédias obscenas, as touradas e demais preocupações de lazer constituíam os pecados de que os lisboetas se deviam arrepender. Para o historiador T. D. Kendrick, neste cenário, “não havia nenhum compromisso possível entre os homens de acção e os homens de Deus”. No Outono de 1756, a distribuição de um panfleto de acusação intitulado “Juízo da Verdadeira Causa do Terramoto” proporcionou a ocasião para afastar o jesuíta. Sebastião de Carvalho e Melo convenceu o núncio papal a enviar Malagrida para Setúbal. Mas mesmo em Setúbal Malagrida não cessou de pregar contra o governante e a reconstrução.A 3 de Setembro de 1758, o secretário de Estado desfez uma aparente trama que visava assassinar o rei e tomar o poder. Vários membros de famílias nobres foram executados. Malagrida foi associado aos conspiradores, sobretudo porque avisara, em sermão, que um grande mal se abateria sobre o monarca. Aprisionado, não foi executado em 1759, juntamente com os Távoras, mas foi entregue à Inquisição, então já dirigida pelo irmão de Sebastião de Carvalho e Melo. Em Setembro de 1761, foi estrangulado e depois queimado no Rossio, num dos últimos autos-de-fé da história de Lisboa. Tinha 72 anos.Naquela manhã de desgraça, o rei fora protegido pela fortuna, que o induzira a dormir nas Reais Casas de Campo de Belém. A família real sobreviveu incólume, mas o seu papel na tragédia e nos anos que se seguiram é ainda objecto de debate. Na manhã de dia 5, Abraham Castres, enviado especial de Inglaterra desde 1749, conseguiu finalmente visitar Dom José I. Encontrou-o abalado, mas mais sereno do que o embaixador esperara. Agradecia à providência a sua salvação e a da rainha, que escapara por pouco de ser esmagada. Chamfort, cronista da época, sugeriu que a calma derivava tão-somente do desconhecimento: “Falaram-lhe primeiro de algumas casas caídas, depois de algumas igrejas”, escreveu. “E, como nunca mais tornou a Lisboa, pode dizer-se que foi o único homem na Europa que não fez uma verdadeira ideia do desastre acontecido a uma légua da sua pessoa.”Encontro-me com José Sarmento Matos no Largo do Carmo, a escassos metros do convento parcialmente destruído pelo terramoto de 1755. Eminente olisipógrafo, Sarmento Matos é a autoridade a quem se recorre para resolver uma disputa intelectual sobre datas de um reinado ou linhagens europeias unidas por matrimónios sucessivos. Com respostas na ponta da língua, o meu interlocutor não concorda com a imagem discreta que a história reservou a Dom José I e muito menos com a sua subalternidade perante o secretário de Estado. “Não há o menor indício de que o rei tenha vacilado durante o seu reinado. É falsa a ideia do rei tolinho e manipulado pelo futuro marquês de Pombal”, defende, contrariado. “O rei depositou confiança política naquele secretário de Estado e apoiou-o sempre. Poderia tê-lo sacrificado na crise política de 1756. Ou em 1761. Mas manteve-o no seu posto.” Apesar dos importantes blocos políticos, sempre ligados à corrente francesa, o “rei nunca lhe tirou o tapete. Ele era o monarca. Com uma só ordem, poderia afastar Sebastião de Carvalho e Melo, mas nunca a deu.” Em boa hora. Estivesse o monarca activo ou autista, o governo reagiu, expedito, à tragédia que, durante aquele mês de Novembro, ceifou a vida de cerca de dez mil lisboetas, pelas estimativas mais fiáveis. Os decretos régios sucederam-se e é, pela sua consulta, que se torna possível tomar o pulso à determinada resposta governativa. A 29 de Novembro, exigiu-se uma inventariação e medição dos prédios e ruas destruídas. Três dias depois, proibiram-se construções fora dos limites da cidade. No dia seguinte, Manuel da Maia entregou ao duque de Lafões, o regedor de Justiça, a primeira de três dissertações sobre a reconstrução. Manuel da Maia era o mestre-de-campo-general, a segunda patente do exército. Em 1755, tinha 78 anos, mas conhecia a cidade e as suas obras públicas como a palma das mãos. Na década de 1730, catalogara o arquivo da Torre do Tombo, facilidade que lhe permitiu indicar à coroa cinco hipóteses imediatas de acção: reconstruir a cidade tal qual ela fora; corrigir a cidade antiga, alargando as ruas; corrigir a cidade antiga, impondo novas regras de edificação; reconstruir os bairros da zona baixa com uma nova planificação; ou abandonar os escombros e projectar uma nova cidade, entre Alcântara e Pedrouços, aproveitando também os amplos terrenos que Dom João V ali comprara.Em Maia, a cidade encontrou a capacidade teórica indispensável para, perante a catástrofe, balizar modelos arquitectónicos, técnicas de construção, modelos de segurança urbana, higiene e saúde pública. Para José-Augusto França, o historiador nascido em Tomar que analisou, pela primeira vez, a reconstrução de Lisboa como uma manifestação urbanística da corrente iluminista europeia, “a improvisação foi circunstancial e óbvia, na pragmática necessidade de respostas urgentes e económicas. Mas, por detrás dela, estão as reflexões de Manuel da Maia, baseadas na sua experiência antiga da cidade”, escreveu o autor em nota enviada por escrito de Jarzé, a localidade francesa onde habita [NR: José-Augusto França morreu entretanto, em 2021, precisamente em Jarzé].Os decretos sucederam-se, enquanto Maia foi apresentando à coroa as suas minuciosas propostas e o projecto de reconfiguração da Baixa lisboeta, à luz de uma nova concepção de arruamentos e edifícios. Decidiu elevar-se a zona baixa, utilizando os escombros como entulho e estacas de pinho verde para compactar o solo. Foi nessa base que se procedeu ao projecto da Baixa. Definiram-se princípios de protecção civil ainda hoje válidos: a largura e altura dos edifícios não podiam ser superiores à largura das ruas. Estimaram-se cotas máximas para os novos imóveis. As ruas, entre o Terreiro do Paço e o Rossio, foram projectadas de raiz, criando uma malha reticular, de perpendiculares e paralelas em tudo semelhantes ao que se vinha fazendo em Washington ou São Petersburgo. Segundo a investigação de José-Augusto França, o estímulo à produção em série e à estandardização de elementos construtivos impediu a especulação de preços dos indispensáveis materiais de construção e optimizou os trabalhos de reconstrução.O edifício pombalino de rendimento, constituído por uma loja no piso térreo e alguns pisos superiores de tipologia esquerdo/direito, tornou-se a referência urbanística. Desenhados por Eugénio dos Santos, arquitecto do Senado da cidade, e pelo austro-húngaro Carlos Mardel, os prédios sucederam-se por quarteirões uniformes e fachadas muito iguais. As preocupações anti-sísmicas caminharam de mãos dadas com uma nova noção social.“Esse foi precisamente o problema”, sugere Sarmento Matos. “Há um conceito implícito de uniformidade social na Baixa que é contrário à estrutura social vigente. A Baixa é uma utopia.” Pressupõe que todos vivem da mesma maneira, numa sociedade de extremos, onde os mais abastados necessitam de palácios não de casas de três ou quatro assoalhadas – para albergar a legião de criados e serviçais, e a massa popular não tem meios para construir ali casa.Os edifícios pombalinos também morrem. E quando perecem, fazem-no de pé, como as árvores. Essa é pelo menos a prerrogativa do arquitecto Jorge Mascarenhas, investigador da Escola Superior de Tecnologia de Tomar e um dos mais diligentes apaixonados pela Baixa lisboeta. Como todas as histórias de paixão, esta começou por ser uma aspiração inatingível. Nascido em Angola, Jorge Mascarenhas estudou na Escola Superior de Belas-Artes, paredes-meias com a Baixa que Sebastião de Carvalho e Melo idealizou. Diariamente, viu prédios e fachadas, janelas e cantarias. Aos poucos, formulou o desejo de conhecer a arquitectura pombalina como nunca ninguém a conhecera – por dentro.No âmbito do seu doutoramento, e já colocado em Tomar como docente, Jorge Mascarenhas tomava o comboio das seis horas da manhã e, nos meses de Agosto e Setembro, vinha documentar a anatomia dos edifícios, mal sabia que um prédio da Baixa estava agendado para destruição. Aprendeu intimamente que a Baixa, apesar de uniforme à superfície, comporta diferentes fases de progressão e relação com os materiais. Como um médico legista de edifícios, Jorge Mascarenhas assistiu a quase duas dezenas de “desembalsamamentos” – a fase progressiva de destruição de um prédio, camada a camada, até chegar ao esqueleto final. Na presença destas “múmias” urbanas, Mascarenhas documentou tudo o que viu – das gaiolas de madeira até à arrumação das assoalhadas, da escadaria ou das janelas.“É preciso ter muita paixão ou muita loucura para fazer o que eu fiz”, diz, com uma gargalhada. O resultado prático da investigação conduzida entre 1988 e 1997, que levou o arquitecto a dissecar 53 quarteirões e mais de 400 edifícios, foi a conclusão empírica de que a reconstrução foi faseada e demorada. Aliás, na primeira década do século XIX, na sequência das invasões francesas, a mulher do comandante Junot ainda lamentava os traços visíveis do “ano amaldiçoado”. A reconstrução foi lenta e problemática, e Jorge Mascarenhas propôs diferentes tipologias para os edifícios por si identificados – dos mais primários aos mais tardios.Entre os milhares de desenhos que fez – fiel ao espírito empírico do trabalho, preferiu o desenho à fotografia –, compreendeu que a percepção do terramoto foi mudando. “Ela está visível no esqueleto dos prédios”, diz. “Os prédios iniciais, construídos cinco ou dez anos depois da catástrofe, possuem a gaiola anti-sísmica orientada a norte-sul e este-oeste. Foram projectados para suportar abalos e resistir, da mesma forma que houve cuidado com todos os elementos salientes que, em caso de sismo, pudessem ruir para a rua.” A partir do momento em que a memória da tragédia foi escoando, a engenharia simplificou-se. “Os prédios tardios possuem toda a armação em tabique. São menos resistentes, porque foram feitos 50 anos depois, quando a geração que sofrera o terramoto já não existia.”O entusiasmo da descoberta levou Jorge Mascarenhas ao obscuro arquivo da Décima da Cidade de Lisboa, no Tribunal de Contas. Se o leitor julga que o trabalho de um contabilista pode ser enfadonho, imagine a consulta mecanizada do arquivo da contribuição autárquica paga por uma rua inteira, por todos os prédios, por todos os inquilinos, entre 1760 e 1800. Jorge Mascarenhas escolheu a Rua Augusta e lançou-se ao trabalho. Número a número, compilou a relação de proprietários e confirmou a sua percepção empírica, depois dos “desembalsamamentos”. “À data da morte de Dom José I, em 1777, a Baixa estava praticamente toda por fazer. Havia poucos prédios construídos e ainda menos inquilinos já instalados.” O processo de reedificação entrou pelo século XIX adentro, ampliando o impacte do terramoto de 1755 na economia e na vida da própria cidade por quase sete décadas (o próprio Rossio só foi terminado em 1840).No Regimento de Sapadores Bombeiros de Lisboa, na zona ocidental da cidade, os prédios de rendimento da Baixa são analisados com outra lente, menos apaixonada e muito mais prática. Duas réplicas da estrutura da gaiola pombalina de cerca de um metro de altura são utilizadas na recruta como demonstração dos perigos que este tipo de edifício coloca aos bombeiros. “Chamamos-lhe ninho de bruxas”, atira um dos bombeiros. “O fogo propaga-se pela estrutura com rapidez. Já chegámos a dar incêndios como extintos antes de verificarmos reacendimentos num piso diferente, por força das paredes ocas que podem comunicar o fogo de um lado para o outro.” O subchefe principal Craveiro fala com admiração destas construções. Homem curtido por mil batalhas, esteve no grande incêndio do Chiado em 1988 e conhece bem o tipo de edifício que ainda povoa a Baixa. Em voz baixa, como se falasse só para si, enumera os artifícios técnicos que a maqueta representa. “São prédios rijos, bem feitos, mas a introdução de canalização de água e gás afectou a sua resistência”, lembra. Aos recrutas gosta de lembrar que as cadeias são os elementos principais a ter em conta num incêndio nestes edifícios. Sustentáculos de cada piso, é nelas que o bombeiro deve primeiro concentrar a sua atenção. “Apodrecidas ou comprometidas pelo fogo, vão provocar provavelmente a queda do piso.” A Jorge Mascarenhas, num dia aziago, uma cadeia podre provocou de facto a sua queda para o piso de baixo. “Riscos do ofício”, brinca. “Um pequeno preço a pagar para quem, como eu, sentiu que os prédios iniciais da Baixa estavam a ser destruídos desde a década de 1980 e que mereciam ser protegidos.”Normalmente, um sismólogo desvaloriza os testemunhos orais dos efeitos de um sismo moderno, remetendo-os para o domínio da etnografia. João Duarte Fonseca, investigador do Núcleo de Engenharia Sísmica e Sismologia do Instituto Superior Técnico, faz precisamente o contrário. Na sua mesa de trabalho, amontoam-se evocações do terramoto de 1755, livros, publicações científicas, tratados. Para quem não teve o privilégio de chegar ao local da catástrofe atempadamente, a melhor opção é estudar minuciosamente os relatos de quem lá esteve. João Duarte Fonseca catalogou praticamente todas as descrições contemporâneas dos fenómenos iniciados em 1 de Novembro de 1755 e prolongados nos meses seguintes. Até Outubro do ano seguinte, segundo as contas do padre Manuel Portal, a tremeu mais 500 vezes.Ainda hoje, o epicentro do terramoto de 1755 é debatido pela comunidade sismológica. Já foram propostos quase uma dezena de locais, quase todos ao largo da costa portuguesa, para sul ou sudoeste. A chave, porém, reside numa escala cronológica e não no fundo do mar. A maioria dos relatos contemporâneos estima que o maremoto (depois da sequência de oito minutos de abalos) tardou 75 a 90 minutos a fazer-se sentir em Lisboa e ocorreu simultaneamente com um novo sismo. É essa hora e meia que tem permitido estimar a distância à costa da região epicentral.Durante anos, pensou-se que o banco submarino de Gorringe seria a solução perfeita, em termos de distância de Lisboa e de capacidade para induzir um sismo de 8,5 de magnitude de momento. Mas a análise sistemática dos documentos de época revelou também uma esmagadora diferença entre os efeitos devastadores do sismo em Lisboa e no Algarve e os danos menores provocados na região alentejana intermédia. “E há toda uma região no vale do Tejo, que não deveria ter sofrido um impacte tão forte”, conta. Em Benavente, a forma do Tejo alterou-se e há relatos intrigantes de barcos que flutuavam e que, depois do terramoto, estavam a seco porque a terra tinha subido. “Isto é difícil de explicar com base num sismo a 300km de proximidade”, interroga João Duarte Fonseca.Para a sismologia anterior à década de 1990, a proposta de uma ruptura secundária causada à distância por um terramoto seria encarada da mesma forma que um físico reagiria perante a proposta impossível de que, em determinadas situações, a maçã que atingiu Isaac Newton poderia subir em vez de descer! O sismo norte-americano de Landers em 1992, provocado pela falha de Santo André, encarregou-se de tornar possível a ruptura secundária. E João Duarte Fonseca adoptou-a para a explicação do sismo de 1755. Uma falha geológica pode afectar suficientemente a tensão no interior da crosta, num raio considerável, de modo a causar a ruptura de outra falha independente, que já estivesse em situação crítica. Em resposta à ruptura, ocorreria um sismo... por simpatia. “Algo semelhante se poderia ter passado em Lisboa, na zona do vale do Tejo, uma fonte sísmica já conhecida e documentada”. Ao sismo gerado a sul da costa, poderia ter correspondido uma ruptura no vale do Tejo oito minutos depois, suficientemente forte para provocar estranhos fenómenos em Benavente. No final do século XVIII, o consagrado hidrologista Estêvão Cabral admitiu que não conseguia explicar o declive retrógrado das ribeiras da margem norte do Tejo (Ota e Alenquer). “Ele diz que o que ali se está a passar é contrário às leis da hidráulica, mas hoje sabemos que, depois de um terramoto, o fluxo nas redes de drenagem pode ser afectado próximo do epicentro. A superfície deforma-se com o sismo e podem induzir-se anomalias nas redes de drenagem.”A tese enunciada teve o condão de recuperar o sismo de 1755 para o centro da polémica. Historicamente, a controvérsia pode ajudar a explicar a inusitada força do tsunami em Lisboa, cidade protegida por um estuário que teoricamente deveria ter provocado o abrandamento das águas. Mas há consequências bem mais palpáveis se este modelo teórico estiver correcto: toda a previsão de risco sísmico para Lisboa pode ter partido de pressupostos incertos.O governo reagiu, expedito, à tragédia que, durante aquele mês de Novembro, ceifou a vida de cerca de dez mil lisboetas.Para o marquês de Pombal, o terramoto foi, acima de tudo, um evento legitimador, uma oportunidade de ouro para tomar as rédeas do governo e fazer pender para o seu lado a intensa batalha política que agitava os pró-franceses e os pró-ingleses na corte portuguesa. Em 1756, uma conspiração para matar o rei Dom José I serviu de pretexto para os primeiros acertos de contas. José Sarmento Matos chama ao período de 1755 a 1761 “o processo revolucionário em curso do século XVIII”, uma chalaça associada ao PREC depois da revolução de Abril de 1974. Pombal impôs então as regras e definiu claramente a política de alianças com Inglaterra, cortando (literalmente) as cabeças visíveis do lobby francês em Lisboa e privilegiando uma nova classe de burgueses a quem entregou monopólios colossais. Até 1777, data da morte do rei, exerceu a sua pasta com competência e autoridade. Refundou a indústria portuguesa enquanto a reconstrução do reino se processava com lentidão. Como escreveu José-Augusto França, a morte do rei foi-lhe fatal. “‘Já nada ali tinha que fazer’, ter-lhe-á dito o cardeal da Cunha, seu antigo apaniguado, ainda estava quente o corpo do rei.” Com a ascensão de Dona Maria I, Pombal foi condenado e só escapou dos açoites públicos devido à sua avançada idade. Morreria em 1782.O trio de engenheiros que a história imortalizou teve destinos diferentes. Manuel da Maia, que o terramoto tornou útil aos 78 anos, morreu apenas em 1768, ainda a tempo de ver o fruto da sua reflexão ganhar forma diariamente. Tinha então 99 anos. Eugénio dos Santos, engenheiro competente, descendente de uma família simples de mestres-pedreiros, morreu cinco anos depois do terramoto. A ele coube o sonho de qualquer engenheiro: redesenhar livremente toda a zona baixa da cidade. Projectou centenas de edifícios, mas, no leito da morte, arrependeu-se dos danos que provocara às igrejas da Baixa, reduzindo-as ou eliminando-as das suas cartas. Morreu aos 49 anos, certo de que não tinha salvação possível. Carlos Mardel, nascido Karoly Mardell, tinha 60 anos à data do terramoto. Preferido do marquês de Pombal e de sua esposa (também ela austro-húngara), realizou importantes obras públicas no século XVIII. A ele se deve a elegância do projecto pombalino, contraponto da monotonia estilística de Eugénio dos Santos. Morreu em 1763, aos 68 anos.O enviado especial da coroa inglesa a Portugal, Abraham Castres, manteve-se em Lisboa até à sua morte. Do irmão de Joseph Fowke, pouco mais se sabe. Provavelmente, terá embarcado de regresso a Inglaterra. Thomas Chase, apesar dos numerosos ferimentos sofridos e da epopeia vivida no Primeiro de Novembro de 1755, sobreviveu e embarcou para Inglaterra a 30 de Novembro. Viria a morrer em Lisboa aos 59 anos. Na Igreja de Bromley, Kent, um monumento em sua honra resume a história deste homem extraordinário: “Sagrado à memória do Ilmo. Sr. Thomas Chase, antigo paroquiano; nascido na cidade de Lisboa, no Primeiro de Novembro, 1729, e sepultado sob as ruínas da mesma casa em que viu a luz pela primeira vez, no sempre memorável e terrível terramoto que aconteceu àquela cidade, no Primeiro de Novembro, 1755, quando, depois de uma salvação extraordinária, ele, a pouco e pouco, recuperou de uma condição muito deplorável, e viveu até 20 de Novembro, 1788.”

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Gabriele Malagrida, o homem que morreu duas vezes

Gabriele Malagrida e Sebastião José de Carvalho e Melo chegaram a Lisboa no mesmo ano, mas só um tinha fama de santidade e não fazia ideia de que iria ser morto pelo outro. Era 1750. Os dois homens tinham já ambos mais de meio século, com dez anos de diferença entre eles, Malagrida nascido em 1689 em Itália, perto do lago Como e do cantão suíço do Ticino, Sebastião José de Carvalho e Melo em Lisboa no ano de 1699.Em 1711 Malagrida entrara para os jesuítas em Itália; em 1721, fora para o Maranhão, como se chamava então a toda a região norte do Brasil, praticamente um estado à parte entre os domínios imperiais da coroa portuguesa, chamado sucessivamente de Maranhão e Grão-Pará, e também Grão Pará e Maranhão, incluindo toda a região amazónica e tendo por cidades mais importantes São Luís do Maranhão (onde pregara o padre António Vieira) e Belém do Pará.Sebastião José de Carvalho e Melo permaneceu na esfera da pequena nobreza portuguesa. Casou, enviuvou, cuidou do património rural da sua família, escreveu para a Real Academia de História e, finalmente, foi nomeado para embaixador em Londres  sob influência de um tio seu, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. De Londres, partiu como diplomata para Viena, onde ganharia proximidade com a grande corte imperial católica e voltou a casar com uma senhora da grande nobreza austríaca.Entretanto, em Belém do Pará, o ano de 1748 foi marcado por uma grande epidemia de sarampo, e aparentemente também de outras doenças como papeira, que se acreditava ter chegado através dos navios cheios de pessoas escravizadas, amontoadas em condições desumanas, que eram trazidos pelos portugueses de África. Muitas pessoas morreram, tanto entre os africanos como entre os europeus e os ameríndios, principalmente do povo tapuía. Os cuidados médicos eram incipientes e sobretudo ineficazes. As autoridades eclesiásticas promoveram missas, romarias e novenas para tentar persuadir Deus a aplacar a doença, e chamaram para pregar em “três dias de Missão” o padre “Gabriel Malagrida “cujas letras, e virtudes são públicas”, como diz uma “Notícia Verdadeira do Terrível Contágio… que tem reduzido a notável consternação todos os certões, terras, e Cidade de Belém, e Grão Pará”.A epidemia não cessou por completo, mas amainara um pouco quando o relato dela foi escrito e enviado para Lisboa, onde foi impresso em 1749 num folheto de oito páginas vendido “nos papelistas do Terreiro do Paço”.Rota de colisãoQuando Malagrida chegou a Lisboa em 1750, o seu nome era então já conhecido dos lisboetas que apreciavam folhinhas impressas com conteúdos devotos. Tanto nas classes mais baixas como nas elites, tanto entre homens como entre as senhoras nobres, tanto entre letrados como entre os analfabetos, que as ouviam ler em voz alta, ninguém lhe ficou indiferente. Se notaram a menção ao padre de chamativo nome italiano, ficaram com impressão de que era um homem santo com capacidade oratória para mover os humanos e até interceder junto do divino para operar em favor destes. Se ainda aí não memorizavam o nome de Malagrida, em breve se habituariam a ouvir falar dele em Lisboa, tanto nos palácios onde ele pedia apoio para a fundação de casas religiosas no Maranhão, como entre os lisboetas que se reuniam para escutar as suas prédicas.Ao mesmo tempo, Sebastião José de Carvalho e Melo frequentava os mesmos palácios. Agora prestigiado pelo seu trabalho como diplomata e chamando a atenção da rainha Dona Maria Ana, austríaca como a mulher do futuro marquês de Pombal, Sebastião José entra para o serviço do rei como secretário de Estado, um dos três de que era composto o governo, e o mais jovem de todos, apesar de já ter 50 anos.O primeiro acontecimento que mudou a vida de ambos os homens, e os pôs na trajectória que haveria de os levar à colisão, foi a morte de Dom João V, em 1750. E em ambos a preponderância foi devedora da influência da rainha viúva, que os favoreceu nos seus projectos distintos, políticos e religiosos, que por sua vez lhes deram projecção nos primeiros anos de reinado de Dom José I. Malagrida regressa em seguida ao Maranhão, mas em 1754 é chamado de volta para Lisboa pela própria rainha, que falece pouco depois.O segundo acontecimento que mudou a vida de muitos lisboetas e recentrou o curso do debate filosófico, com sérias consequências políticas na Europa e no mundo, foi o terramoto de Lisboa de 1 de Novembro de 1755. Antes do sismo, um destes homens tinha algum poder e fama. Depois do sismo, ambos tiveram muito mais poder e muito mais fama, até ao ponto em que só sobraria espaço para um deles.Esta é a história de como Sebastião José de Carvalho e Melo ganhou a Gabriele Malagrida e de como o padre jesuíta teve de morrer duas vezes, não só em corpo mas também pelas ideias, para dar lugar a um mundo novo que talvez nem Sebastião José conseguisse imaginar semanas antes do terramoto de 1755.O terramoto e o pecadoA terra tremeu por largos minutos e com uma intensidade nunca vista na manhã de 1 de Novembro de 1755, quando grande parte da população de Lisboa assistia às missas do Dia de Todos os Santos.Ao fim da manhã, grande parte do centro da cidade estava destruída por um tipo de onda sísmica que alguns relatos da época descrevem como uma autêntica onda em terra, ou seja, sendo perceptível a oscilação do terreno como se este fosse um líquido. Muitos prédios tinham caído de imediato e até ruas inteiras ficaram irreconhecíveis. A seguir, veio uma onda real, oceânica, mas de uma escala nunca vista. O cruzamento de documentos da época e modelos actuais dão como estimativa que esse tsunami terá tido mais de 12 metros na costa ocidental do país, à altura de Cascais, diminuindo com a entrada na barra do Tejo, mas ainda assim chegando a Lisboa com uma altura de pelo menos seis metros, e uma força que arrastou pessoas e empurrou muito do entulho, e em particular das madeiras que tinham ficado a juncar as ruas da cidade.Esse material inflamável foi depois pasto das chamas nos incêndios que lavraram em Lisboa durante pelo menos os cinco dias seguintes. Esta sucessão de eventos é conhecida. Trata-se do dia, ou para ser mais rigoroso, dos dias da tripla catástrofe que se abateu sobre Lisboa — grande terramoto, tsunami e incêndios — para não falar das réplicas sísmicas nas semanas e meses futuros, das doenças que se disseminaram entre a população sobrevivente, das habitações precárias de tabique e pano em que os lisboetas tiveram de viver durante o Inverno e, a bem dizer, nos anos seguintes – e um longuíssimo et cetera de desgraças e calamidades que rapidamente se tornaram famosas na Europa e no mundo através de cartas, folhetos, gazetas e livros, e que se consolidaram na memória colectiva até hoje. É nesse ambiente do imediato pós-sismo que os dois caminhos de Gabriele Malagrida e de Sebastião José de Carvalho e Melo se separam, com consequências que sobrevivem connosco ainda hoje. Nos dias e semanas seguintes, Gabriele Malagrida não descansou, entre missas, sermões e a direcção de “exercícios espirituais” como tinham sido propostos por Inácio de Loiola, fundador dos jesuítas, na primeira metade do século XVI. A sua fama foi crescendo, em particular entre as elites nobiliárquicas, onde especialmente as senhoras da alta nobreza requisitavam a sua presença para que as orientasse nos exercícios espirituais ou se deslocassem às missas que ele dava.Um dos exemplos mais importantes é o da condessa de Atouguia, filha da Casa de Távora, que, depois de ser mãe de seis filhos, decidiu dedicar-se cada vez mais à vida espiritual, numa relação de grande admiração (e alguns diriam dependência) em relação a Gabriele Malagrida. Essa ligação estreita entre Malagrida e os Távora acabou por ser aproveitada para a repressão que Dom José I e o seu ministro, futuro conde de Oeiras e marquês de Pombal, lhes moveram a partir de 1759.Inevitavelmente, Malagrida fez do terramoto um tema central dos seus sermões, e fê-lo de uma forma banal para a época, ligando os acontecimentos naturais à vontade divina. Era uma banalidade então dizer-se que o terramoto teria de ter sido, naturalmente, um castigo de Deus. Essa era uma naturalidade que não contava, curiosamente, com a própria natureza, assim reconduzida a um papel de mera “caixa de mensagens” entre o divino e o humano.O Livro de JonasDesde a Antiguidade, ainda antes do monoteísmo e do cristianismo, que os deuses estão associados a fenómenos físicos – Zeus é o deus do trovão, Posídon chama os ventos eólicos para provocar tempestades no mar… Entre as religiões do livro – judaísmo, cristianismo e islamismo — os exemplos de castigos divinos através de catástrofes naturais são inúmeros. No Livro de Jonas, do Antigo Testamento, o profeta do mesmo nome é intimado por Deus a ir a Nínive forçar os habitantes da cidade ao arrependimento pelos seus comportamentos pecaminosos ou, em alternativa, ao enfrentamento da ira de Deus que se materializará na destruição da sua cidade. Jonas recusa-se a profetizar porque tem medo de que, se os ninivitas mudarem de comportamento, a não-destruição da cidade culmine na sua descredibilização enquanto profeta. Depois de fugir à sua missão, Jonas é engolido por uma baleia e devolvido a terra. Vai a Nínive e os ninivitas arrependem-se, evitando a destruição da cidade. Jonas senta-se à sombra de uma árvore, descontente com todo o episódio, e zangado com Deus, que para lhe ensinar uma lição, envia um golpe de calor que mata a árvore sob cuja sombra Jonas repousava.É neste quadro mental que viviam ainda religiosos europeus como Malagrida em meados do século XVIII — um mundo no qual a destruição de uma cidade, o comportamento de uma baleia, um golpe de calor e a destruição de uma árvore específica estavam, em última análise, dependentes da vontade de Deus.Quando ocorre o terramoto de Lisboa, em 1755, portanto, não é a destruição como consequência da vontade divina que oferece dúvida. É preciso decidir quais foram os pecados dos lisboetas que deram a Deus razão de agir.Os filhos do terramotoA essa questão não foi apenas Malagrida que procurou responder. Exilado em Londres, um português convertido ao protestantismo, o Cavaleiro de Oliveira, também não teve dúvidas de que o terramoto ocorrera porque Deus decidira castigar os lisboetas – o problema, porém, era os lisboetas serem católicos a mais e não a menos. Fora o excesso de devoção a imagens, santinhos e crendices que incentivara a cólera de Deus. Para Malagrida, o problema era exactamente o contrário: os lisboetas não levavam suficientemente a sério o seu catolicismo e com isso teriam provocado a ira divina.Quando justificou esse tese, no livro Juízo da Verdadeira Causa do Terramoto, que Malagrida fez publicar com a súmula dos seus sermões, os únicos pecados reais que o padre encontrou é a vaidade dos jovens que se apresentam nas missas mais para serem vistos do que para ouvirem e o envio de “bilhetes amatórios” por parte dos mais apaixonados destes — ou seja, recadinhos de namorados. E era preciso destruir uma cidade por isso?Essa tese, por outro lado, gerou um problema político. Para o futuro marquês de Pombal, o argumento de que os lisboetas e os portugueses seriam maus católicos equivaleria a dizer que Dom José era mau rei — e isto era inaceitável. Foi essa circunstância que levou à perseguição movida por parte da Inquisição, na altura dirigida na prática por Paulo de Carvalho, um dos irmãos de Pombal — o outro era Francisco de Xavier Mendonça e Furtado, que foi governador do Grão-Pará e Maranhão e também tinha informações pouco abonatórias do tempo de Malagrida na província.Gabriele Malagrida foi preso em 1759, no meio da repressão geral que levou ao massacre dos Távora e à expulsão dos jesuítas. A sua condenação à morte pela fogueira foi levada a cabo no dia 21 de Setembro de 1761, no qual o Cavaleiro de Oliveira também foi queimado, mas em efígie. Mesmo assim não bastou a Sebastião José, que ganharia o título de conde de Oeiras na sequência dessas repressões, e depois o de marquês de Pombal em 1770. Onze anos depois da morte de Malagrida, o seu livro subiu à Real Mesa Censória – instituição de censura régia criada para substituir a Inquisição na sua função de examinar, permitir e proibir livros – que se referirá a Malagrida já defunto nos termos mais duros: “que monstro foi o Heresiarca Gabriele Malagrida; qual sua falsa Religião; quaes suas preversas, maliciosas, e sempre temporaes intenções.”Tal como o autor morreu queimado, também o seu “infame, malicioso, temerário, e herético papel” foi condenado a ser queimado publicamente, medida apesar de tudo relativamente rara na época. Foi assim queimado o homem e queimado o seu livro, numa espécie de dupla morte do homem e das ideias, em nome de uma explicação na qual o terramoto passou oficialmente a ser um acontecimento “natural, de causas naturais, naturalmente provocadas”. Com Pombal, Portugal tornou-se o primeiro país no qual a explicação naturalista para os terramotos (ainda ignorada na sua especificidade, uma vez que se desconhecia a existência das placas tectónicas) passou a ser oficial e vinculativa, por decisão do poder político.Mas tal como no mundo físico não há causas sem consequências, também isso sucedeu a Pombal. Se Deus não enviava terramotos para castigar os humanos, faria sentido que enviasse reis e rainhas para reinar sobre eles? Foi essa a resposta dada pela geração a que podemos chamar de filhos do terramoto.Artigo publicado originalmente na edição nº 18 da National Geographic História.

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O grande bazar nocturno do Bangladesh

Este bazar, onde se vendem desde peixe a produtos de higiene pessoal, está aberto da meia-noite às cinco da manhã, dispondo de 1.255 bancas para percorrer com os olhos e a carteira. Se o atravessar de ponta a ponta, poderá deparar-se com 2.500 comerciantes.As pequenas lojas do mercado do Bangladesh e dos seus arredores recebem as suas mercadorias em camiões, por vezes provenientes do estrangeiro. As compras são depois frequentemente transportadas em carrinhas ou carrinhos de mão para as moradas dos clientes.Rakibul Alam Khan, o fotógrafo profissional desta imagem, explica que "os comerciantes exportam legumes, peixe e outros produtos agrícolas não só para diferentes mercados médios e pequenos da cidade de Dhaka, no Bangladesh, ou para os subúrbios, mas também para diferentes mercados estrangeiros, especialmente no Médio Oriente".

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Seguir pegadas de dinossauros num trilho ciclável? “Check”.

Vemos a primeira escarpa de manhã. O sol de Verão nasce lentamente e o índigo profundo do céu desvanece-se gradualmente num tom suave de pêssego. O mundo continua a dormir e quebramos o silêncio com a nossa respiração ofegante e o som dos nossos pneus a esmagar a gravilha da estrada.Lá ao fundo, os Alpes brilham – mas estamos a atravessar a Jura, uma cordilheira pouco conhecida que separa o noroeste da Suíça de França. As Montanhas Jura são mais baixas e mais suaves do que os Alpes e encontram-se maioritariamente cobertas de floresta. As suas rochas também são mais antigas do que as dos Alpes, contendo segredos antigos enterrados nas profundezas das suas formações calcárias.Eu e Fritjof Hilgenfeldt, um fotógrafo meu amigo, iniciámos a nossa viagem em Grenchen, rodeados por uma escuridão total. Às 6h, os dínamos das nossas bicicletas são a única coisa que nos conduz através da reserva florestal de Bettlachstock-Hasenmatt, uma grande e antiga floresta de bétulas designada Património Mundial da UNESCO em 2021.Encontrando trilhos de dinossaurosEspalhados pela pequena aldeia de Lommiswil, há uma série de buracos grandes na vertente rochosa. À primeira vista, parecem o resultado de ferramentas de escavação ou erosão. No entanto, os especialistas descobriram uma história diferente. As depressões da escarpa são pegadas deixadas por gigantes com 30 metros de comprimento que deambulavam sobre a Terra há mais de 150 milhões de anos. São as pegadas de dinossauro de Lommiswil.Os vestígios foram descobertos em 1987, durante uma escavação na pedreira local. Foram descobertas aproximadamente 450 pegadas, algumas com 1,5 metros de diâmetro. Devido ao seu tamanho e padrões, os especialistas acham que foram deixadas no solo por um saurópode, um herbívoro de pescoço comprido com cerca de 24 a 30 metros de comprimento que pesava o equivalente a seis elefantes.“Não podemos afirmar ao certo qual foi a espécie que deixou uma pegada. Mas podemos ter palpites muito informados”, diz Stephen Brusatte, paleontólogo na Universidade de Edimburgo e assessor científico da marca Jurassic World. “Funcionamos um pouco como o príncipe da Cinderela, mas, em vez de um sapato de cristal tentamos encontrar correspondências entre as pegadas e os pés dos esqueletos de dinossauros. Por vezes é simples. Se encontrarmos uma série de marcas do tamanho de uma banheira, sabemos que foi um saurópode.”É difícil imaginar, mas as florestas de Jura que atravessamos hoje costumavam ser lagoas costeiras de baixa profundidade, planícies intertidais e zonas lamacentas – o palco perfeito para a magia da fossilização.“Um animal caminha na areia ou na lama e deixa algumas pegadas”, explica Brusatte. “Se estas cozerem ao sol e endurecerem e depois forem cobertas e seladas, as pegadas podem petrificar e transformar-se em fósseis. Não consigo imaginar as probabilidades de uma só pegada se tornar um fóssil, mas deve ser uma em milhões.”Ao longo de milhões de anos (os dinossauros dominaram a Terra durante 150 milhões de anos), e milhares de milhões de animais caminharem no mesmo sítio e deixarem as suas pegadas, por vezes, um milagre acontece. Mas depois é necessário ainda mais tempo, forças tectónicas, erosão e sorte para levantar e expor aquilo que foi, em tempos, uma orla costeira e transformá-la na vertente rochosa que vemos hoje.Lommiswil revelou-se uma descoberta inovadora para a região. Achados subsequentes puseram a nu uma ligação entre as pegadas e um mega-sítio chamado “auto-estrada dos dinossauros”. Uma vez que muitos sítios não se encontram perto da estrada, vamos visitar o máximo de pegadas possível numa bicicleta todo-o-terreno e interligá-las, reconstituindo o trajecto gigante.O segundo conjunto de pegadasA partir de Lommiswil, começamos a subir o Hasenmatt. A estrada sobe gradualmente de 480 metros para 1.445 metros de altitude. É uma subida longa e bonita, inteiramente ao longo de uma estrada de gravilha e sempre à sombra de uma floresta de bétulas, abetos e espruces. Passada mais de uma hora, chegamos ao topo da portela e entramos no cantão de Jura. Absorvemos o Sol quente no Bergrestaurant Althüsli, antes de nos dirigirmos à vertente norte, escura e fria da montanha.Em Moutier, avistamos o segundo conjunto de pegadas. A quase dois quilómetros do centro, gravadas noutra encosta, ficam as pegadas de dinossauro de Moutier – descobertas em 2017 durante as escavações de outra pedreira local.Foram encontradas cerca de 25 pegadas neste local e os estudos confirmam, uma vez mais, que pertenciam a um saurópode que viveu há cerca de 150 milhões de anos.Museus e sítios com dinossaurosDepois de Moutiers, subimos mais cinco quilómetros até descermos para uma zona bonita e isolada a caminho da aldeia de Courfaivre. Após quatro horas no selim, é altura de fazer uma pausa na padaria Jubin Confiseur, onde descobrimos os petits pains en banderilles, uma série de mini-rolos de pão unidos por um pau de espetada comprido que apelidamos de “kebab de pão”. Também reabastecemos com expressos duplos e cappuccinos no Bar 19 L’Hôtâ, onde as diversas fotografias de ciclistas penduradas nas paredes parecem um bom augúrio.O pronto intermédio da nossa viagem é Porrentruy. Aqui, reencontramos o nosso saurópode, salvo seja. Ao sairmos do centro da cidade, fazemos uma paragem na Dinoteca Jurássica, onde foram descobertas mais de uma centena de pegadas em 2007 durante a renovação do centro educativo. Hoje em dia, as pegadas de saurópodes e terópodes (provavelmente um Allosaurus) estão expostas no pátio das instalações e protegidas por enormes painéis de vidro.A Dinoteca é uma sucursal do Museu Jurassica, em Porrentruy, o museu de história natural da cidade. Infelizmente, encontra-se fechado para obras até 2027, mas o seu jardim botânico permanece aberto e merece uma visita.Antes de prosseguirmos a nossa aventura, comemos um cordon bleu – um bife suíço panado, recheado com queijo e fiambre num restaurante local.Pouco depois de sairmos de Porrentruy, damos por nós num trilho muito íngreme e temos de empurrar a bicicleta montanha acima durante meia hora. No caminho de regresso a casa, vemos tabuletas indicando o Prehisto Parc, em Réclère, um trilho florestal com 45 réplicas de dinossauro em tamanho real escondidas no meio das árvores. Decido adiar essa visita para outro dia. A minha filha de 4 anos ficaria aborrecida se eu fosse sem ela.No regresso a casaAs últimas pegadas do dia são as de La Heutte, descobertas entre 1992 e 1996. As pegadas ficam mesmo ao lado do trilho e foram atribuídas aos saurópodes e terópodes que viveram no final do período Jurássico. Estima-se que existam, no total, cerca de 14.000 pegadas na plataforma carbonatada de Jura. Esta área inclui mais sítios do que aquele que visitámos hoje e nem todos são do período jurássico.Por volta das 20h, quatorze horas depois de termos começado, acendemos as luzes das nossas bicicletas. Resta apenas uma subida, mas são 13 quilómetros e pedalamos os últimos três numa escuridão total – tão escuro que Fritjof é atingido por um morcego. Quando paramos, estamos ambos exaustos, mas ainda excitados por termos visto fósseis de dinossauros antigos.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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As histórias de fantasmas de Roma antiga – das arrepiantes às absurdas

Acreditas em fantasmas? Foi o que o proeminente advogado e estadista romano Plínio o Jovem perguntou ao seu amigo numa carta por volta do ano 100 d.C.“Gostaria muito de saber se acha que existe tal coisa como fantasmas”, escreveu Plínio, “e se eles têm as suas próprias formas e alguma existência divina ou se são imagens irreais que assumem as formas das nossas próprias ansiedades”.Plínio estava a escrever ao seu amigo Sura, um senador romano. Para dar a Sura algo em que pensar, Plínio contou-lhe três histórias assustadorasque ouvira. A primeira foi sobre um homem que viu uma aparição prevendo o seu sucesso político – bem com a sua morte. A segunda foi sobre um cavalo e o fantasma acorrentado que o assombrava. A terceira foi sobre incidentes que, supostamente, aconteceram na casa do próprio Plínio – mas voltaremos a isto mais tarde.Existem histórias de fantasmas em vários textos da Roma antiga. Contudo, ao contrário dos mistérios da actualidade, costumam resumir-se a poucas linhas. Por exemplo: no relato da vida de um general ateniense, o historiador romano Plutarco menciona brevemente uma casa de banhos grega que ficou assombrada depois de um homicídio. “Depois de continuarem a ver-se aparições e a ouvir-se gemidos naquele local, contaram-nos os nossos pais, foram mandados construir portões nos banhos”, escreveu Plutarco. “E, ainda hoje, as pessoas que vivem naquele bairro acham que, por vezes, vêem espectros e ouvem sons alarmantes.”Mas o que pensavam os antigos romanos sobre os fantasmas? Procurámos pistas examinando os tipos de histórias de fantasmas que circulavam na Roma antiga.Casas assombradasAs cartas de Plínio contêm “uma história maravilhosa sobre uma casa assombrada que é persistente ao longo da antiguidade”, diz Daniel Ogden, professor de história antiga na Universidade de Exeter, em Inglaterra, e autor de Magic, Witchcraft and Ghosts in the Greek and Roman Worlds.Na carta que escreveu a Sura, Plínio diz que ouviu uma história sobre uma casa em Atenas assombrada por um espectro que usava correntesque faziam um barulho assustador. A casa ficou abandonada até que, um dia, um filósofo decidiu habitá-la.À noite, enquanto escrevia à luz da lamparina, o filósofo ouvia as correntes do fantasma a aproximarem-se cada vez mais, até o espírito parecer estar no quarto com ele.Ogden acha que a história da casa assombrada das cartas de Plínio faz parte de uma tradição popular que remonta à Grécia antiga e que permaneceu após a queda do Império Romano do Ocidente, por volta de 476 d.C. As histórias sobre casas assombradas desta tradição partilhavam frequentemente características como uma figura heróica (nas histórias pagãs, como no caso de Plínio, o herói é um filósofo; numa versão cristã de finais do século V, o herói é um bispo.)A história de casas assombradas romana mais antiga é Mostellaria, ou A Casa Assombrada, uma comédia escrita pelo dramaturgo Plauto por volta de 200 a.C. A peça parece ter sido baseada numa comédia grega perdida chamada Phasma, escrita no final do século IV ou início do século III, sugerindo que as histórias de casas assombradas remontam, pelo menos, a essa época.Em Mostellaria, um homem escravizado tenta convencer o seu dono supersticioso, que acaba de regressar de uma longa viagem, que não deve entrar em casa porque há fantasmas. Na verdade, ele está a mentir para encobrir o filho do dono, que esteve a dar uma festa na ausência do pai.Enterros inapropriadosEmbora a história do homem escravizado sobre o fantasma seja comicamente contraditória, realça outro tema recorrente nas histórias de fantasmas da Roma antiga: enterros inapropriados.“Era extremamente importante ser enterrado da forma apropriada”, diz Debbie Felton, professora de clássicas na Universidade de Massachusetts Amherst e autora de Haunted Greece and Rome: Ghost Stories from Classical Antiquity. Nas histórias de fantasmas da Roma antiga, “não ser enterrado ou ser enterrado de forma inapropriada, era a causa mais provável para provocar uma assombração”.Portanto, a história da casa assombrada de Plínio também envolve um enterro inapropriado. Em vez de lhe virar costas com medo, o filósofo permite ao fantasma conduzi-lo até o um local no exterior, onde o fantasma desaparece. Na manhã seguinte, o filósofo pede aos magistrados locais que estavam naquele local e eles descobrem restos humanos envoltos em correntes. Depois de os restos mortais serem enterrados apropriadamente, as assombrações acabam.Intervenção semi-divinaMesmo que uma pessoa não estivesse a ser assombrada, as histórias da Roma antiga sugerem que era boa ideia providenciar um enterro apropriado a qualquer cadáver que encontrasse – porque o seu fantasma poderia ajudá-lo mais tarde. Cícero, o orador e estadista romano, incluiu uma história antiga de fantasmas no seu género de folclore “mortos gratos” por volta de 44 a.C.No diálogo de Cícero De Divinatione, ou Sobre a Adivinhação, um poeta chamado Simónides encontra o cadáver de um homem e proporciona-lhe um enterro apropriado. Mais tarde, o fantasma do homem recompensa Simónides, avisando-o que não deve ir numa viagem porque o navio vai naufragar. Ele segue o conselho do fantasma e evita a morte – pelo menos a sua. (“Infelizmente, Simónides não avisou os outros passageiros”, comenta Felton no seu livro.)Nem todas as figuras espectrais são fantasmas dos mortos. Os romanos também escreveram histórias sobre aparições semi-divinas. O historiador romano Suetónio escreveu que Júlio César viu uma aparição deste género antes de atravessar o rio Rubicão no início da guerra civil. E a carta de Plínio a Sura começa com uma história sobre uma aparição que previu, correctamente, a ascensão política de um homem.Ambas as histórias enquadram os sucessos das pessoas que viram as aparições como fruto do destino, fazendo-as parecer mais políticas do que histórias assustadoras.Afinal, em que é que os romanos acreditavam? Tal como hoje, os romanos antigos tinham diferentes crenças pessoais, fosse sobre a vida após a morte ou a possibilidade de o fantasma de uma pessoa morta (ou qualquer outro espírito) poder aparecer aos vivos.No entanto, os estudiosos destacam que, das três principais histórias sobre casas assombradas, duas são cómicas ou satíricas. Ao troçar das histórias de casas assombradas, estas histórias presumem que o leitor já conhece o conceito das casas assombradas, provavelmente através de relatos orais. Além disso, o seu tom sugere que nem todos acreditavam nessas histórias.Por exemplo, a última grande história de casas assombradas romana aparece num diálogo escrito por Luciano, um sátiro da Síria romana do século II. Numa parte do diálogo, conhecido como Philopseudes, ou O Amante das Mentiras, um filósofo conta a um ouvinte que encontrou uma casa assombrada em Corinto. Tal como o herói de Plínio, o filósofo de Luciano diz ter posto fim à assombração encontrando os restos mortais do espírito e proporcionando-lhe um enterro apropriado. No entanto, o ouvinte céptico não acredita nele – talvez convidando os leitores a questionarem as histórias de fantasmas que ouvirem.E no acreditaria Plínio? Podemos procurar pistas na última “história de fantasmas” da sua carta, aquela que aconteceu em sua casa. Plínio escreveu que duas pessoas da sua casa – um rapaz escravizado e o irmão de um servo – acordaram em dias diferentes, descobrindo que alguém lhes cortara o cabelo enquanto dormiam. O cabelo cortado ainda estava ao seu lado e ambos afirmaram ter visto figuras misteriosas durante a noite.Plínio terminou a carta que enviou ao seu amigo Sura pedindo-lhe que lhe desse uma resposta directa sobre se achava que os fantasmas eram reais, “para não ficar preso no suspense e na incerteza, uma vez que estou a consultá-lo para pôr fim às minhas dúvidas”. Nunca saberemos o que aconteceu em casa de Plínio (nem como Sura lhe respondeu), mas Felton tem uma teoria.“Acho que alguém estava a pregar uma partida a Plínio”, diz ela, “e ele não percebeu”.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Halloween: Factos, factóides e fatiotas

Festas, partidas e negócios. O que hoje conhecemos como Halloween está muito longe das suas origens. Ao longo dos séculos, a celebração sofreu várias alterações e nós resumimo-las aqui para si.ASCENDÊNCIA PagãAs origens do Halloween remontam a mais de 2.000 anos. Naquele que consideramos o dia 1 de Novembro, os povos celtas da Europa celebravam o seu Dia de Ano Novo, chamado Samhain (SAH-win).Na véspera de Samhain – um festival que esteve na origem do Halloween – acreditava-se que os espíritos, vivos, andavam pela Terra depois da morte física. Também se dizia que as fadas, os demónios e outras criaturas andavam à solta. Trajes celtasPara além de sacrificarem animais aos deuses e de se reunirem à volta de fogueiras, os celtas usavam frequentemente trajes – provavelmente peles de animais – para confundir os espíritos, talvez para evitar serem possuídos, de acordo com o American Folklife Center da Biblioteca do Congresso dos EUA.Usando máscaras ou escurecendo o rosto, acredita-se que os celtas também se faziam passar por ancestrais mortos. Os jovens podem ter-se vestido de mulher e vice-versa, marcando uma ruptura temporária das divisões sociais normativas.Numa forma precursora da tradição "doces ou travessuras" (trick or treat, em inglês), acredita-se ainda que os celtas, disfarçados de espíritos, iam de casa em casa fazendo actos disparatados em troca de comida e bebida – uma prática inspirada talvez por um hábito anterior de deixar comida e bebida ao ar livre como oferendas a seres sobrenaturais. MUNDUS PATET, O DIA ROMANO DOS MORTOSA expressão mundus patet significa "mundo aberto" e refere-se ao Mundus Cereris, um dos edifícios mais antigos de Roma, que marcava o centro exacto da cidade e o elo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, de modo que a sua entrada permanecia selada e só era aberta em três ocasiões por ano: 24 de Agosto, 5 de Outubro e 8 de Novembro, quando as almas falecidas regressavam à terra.No submundo romano existiam espíritos malignos que têm uma razoável semelhança com o imaginário desenvolvido no Halloween. As fontes escritas falam, por exemplo, das larvas, espíritos "que se alimentam da vida dos mortais" e das maniae, seres que tinham a aparência de "esqueletos horríveis que provocam a loucura nos vivos".Influência cristã no Dia das BruxasO Samhain transformou-se mais tarde quando os líderes cristãos cooptaram os feriados pagãos. No século VII, o Papa Bonifácio IV decretou o dia 1 de Novembro como o Dia de Todos os Santos. A noite anterior ao Samhain continuou a ser celebrada com fogueiras, disfarces e desfiles, embora com um novo nome: Véspera de Todos os Santos – mais tarde "Halloween".DIA DE TODOS OS SANTOSA festa de Todos os Santos tem a sua origem na crença do cristianismo primitivo de que os mártires mereciam um dia para recordar o seu sacrifício, o que levou o Papa Bonifácio IV a estabelecer, no século VII, um dia para a comemoração de todos os mártires da Cristandade, a 13 de Maio. Um século mais tarde, o Papa Gregório III alargou esta celebração a todos os santos da Igreja Católica e transferiu-a para a data actual, 1 de Novembro.Parece claro que a escolha desta data estaria relacionada com a tentativa de suplantar as festas pagãs dos mortos, como o Samhain celta ou o mundus patet romano, em cujos territórios a Igreja se tinha espalhado, adaptando os seus ritos às crenças anteriores. Assim, por volta de 1 de Novembro, surgiram outras celebrações, como o Halloween, na véspera, ou o Dia dos Finados (ou Dia dos Fiéis Defuntos), no dia seguinte, que acabaram por se fundir com a celebração original.HALLOWEEN, VÉSPERA DE TODOS OS SANTOSNa Inglaterra medieval, a palavra hallow, que hoje em dia designa algo sagrado, era utilizada como sinónimo de santo, e o feriado era conhecido como All Hallows. A véspera desse dia tornou-se uma celebração de direito próprio, a Véspera de Todos os Santos, que no final da Idade Média se fundiu com o dia santo. A Reforma Protestante pôs fim ao Dia de Todos os Santos entre os protestantes – basicamente as igrejas reformadas aboliram a figura católica do santo – mas na Grã-Bretanha o Halloween continuou a ser celebrado como um feriado secular.O Halloween chega à AméricaOs imigrantes europeus levaram o Halloween (Halloween vem da expressão "All Hallow Eve") para os Estados Unidos, e a celebração ganhou força nos anos 1800, quando a imigração irlandesa-americana explodiu.Anoka, Minnesota, pode ser o lar da mais antiga celebração oficial de Halloween dos Estados Unidos. A partir de 1920, a cidade começou a organizar um desfile e uma fogueira.Os historiadores de Anoka afirmam que os habitantes da cidade queriam travar as partidas do Dia das Bruxas que soltavam vacas na Main Street e derrubavam casas de banho.Lendas urbanas do Dia das BruxasAlgumas histórias de Halloween não morrem – mesmo que a sua veracidade seja bastante duvidosa. Por exemplo, diz-se que os cultos satânicos – muito mais comuns na ficção do que na realidade – sacrificam gatos pretos no Dia das Bruxas. Porém, os especialistas dizem que há poucas provas e que os poucos incidentes isolados que envolveram gatos pretos maltratados foram obra de pessoas perturbadas – muitas vezes adolescentes.Os doces contaminados por venenos, agulhas ou lâminas de barbear são outro pesadelo do Dia das Bruxas. No entanto, o sociólogo Joel Best disse em 2010 que os rumores sobre doces perigosos podem ser manifestações de medos e ansiedades sobre o futuro. Num mundo em que tantas ameaças – terrorismo, queda das bolsas de valores – parecem incontroláveis, pode ser reconfortante para os pais concentrarem-se em calamidades evitáveis, como uma criança que morde uma maçã com um pico, disse Best, da Universidade de Delaware.Best realizou um estudo sobre alegados incidentes com doces de Halloween contaminados. "Não consegui encontrar um relatório fundamentado de uma criança que tenha sido morta ou gravemente ferida por um doce contaminado apanhado no decurso de uma partida de doces ou travessuras", escreveu.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Cientistas revelam o segredo por trás da mudança de cor nestes sapos

Quando as primeiras chuvas monçónicas começam a cair na Índia e no sudeste asiático, um tipo de sapo passa por uma mudança quase radical na sua aparência. Uma mudança temporária de cor, induzida por hormonas, transforma os sapos-comuns-asiáticos machos (Duttaphrynus melanostictus) de uma cor castanha chocolate para um amarelo vivo em questão de minutos.Enquanto a pele das fêmeas continua castanha, os machos sofrem uma mudança na paleta de cores para se prepararem para uma ronda relâmpago de encontros rápidos. Os cientistas sabem há muito tempo que a mudança de cor coincide com um frenético evento anual de acasalamento com duração de dois dias, mas só recentemente confirmaram a função específica que desempenha.Para investigar, os investigadores do jardim zoológico de Schönbrunn, em Viena, imprimiram em 3D sapos, alguns castanhos e outros amarelos, e colocaram-nos entre sapos reais que se reuniam para acasalar. Descobriram que os sapos machos ignoravam em grande parte os modelos amarelos, mas tentavam acasalar frequentemente com os castanhos, que correspondiam à cor que esperavam das fêmeas. Os investigadores tentaram variar outros factores, como peso, tamanho e saturação da cor dos modelos de sapos, mas nada mais parecia afectar os modelos que mais atraíam os sapos machos.Os cientistas afirmam que isso sugere claramente que os sapos são codificados por cores naturalmente para evitar qualquer caso de confusão de identidade. Enquanto os machos de outras espécies costumam exibir cores brilhantes para atrair as fêmeas, estes sapos parecem ficar amarelos como um semáforo para enviar um sinal que repele outros machos."Em espécies de reprodução explosiva, os acasalamentos errados são comuns", afirma Susanne Stückler, investigadora associada do zoológico de Schönbrunn que liderou o estudo. Como o período de reprodução é tão curto, os sapos precisam encontrar um parceiro muito rapidamente. A competição é acirrada, principalmente porque as fêmeas são escassas.Stückler afirma que os machos podem tentar acasalar com outros machos, com espécies erradas de sapos, com peixes ou até mesmo com objectos inanimados. "Isso sugere que identificar o parceiro adequado pode ser difícil em condições de densidade e stress", afirma Stückler. "A coloração parece ser uma solução evolutiva para esse problema".Este tipo de investigação pode mudar a forma como os cientistas concebem a evolução da cor na vida animal, afirma Rayna Bell, conservadora de herpetologia da Academia de Ciências da Califórnia, que não participou no estudo."Este não é o primeiro estudo que mostra este tipo de sinalização em sapos, mas o que acho realmente interessante é que pode alterar a forma como interpretamos os sinais de cor, mesmo em grupos que pensamos já compreender, incluindo exemplos mais carismáticos como aves ou borboletas", afirmou Bell. "Prestar atenção a animais menos estudados pode oferecer novas ideias que nos levem a reavaliar o que pensávamos saber sobre os processos de sinalização em geral."Ao contrário de outros animais, como polvos e camaleões, que podem mudar de cor numa questão de segundos, os sapos machos levam cerca de 10 minutos para ficarem amarelos. Isso ocorre porque o processo é impulsionado por hormonas, em vez de células cutâneas controladas directamente pelos nervos. O tom amarelo dura até dois dias antes de desaparecer e a ser substituído pelo castanho original.Como é que se transformam?Por baixo da pele dos sapos existem camadas de células especializadas chamadas cromatóforos. Algumas contêm pigmentos escuros, outras pigmentos amarelos e vermelhos, e um terceiro tipo reflecte a luz como pequenos espelhos. As hormonas do stress, como a adrenalina, parecem fazer com que o corpo dos sapos reorganize os pigmentos e incline essas placas reflectoras.A mudança de cor pode parecer um caso excepcional de cooperação na natureza. Mas os sapos continuam a competir entre si. "Eles lutam, dão 'patadas' e tentam afastar outros machos" que já estão a tentar acasalar, disse Stückler. "Às vezes, vários machos tentam [acasalar simultaneamente com] a mesma fêmea, formando bolas de acasalamento", o que pode até mesmo fazer com que a fêmea se afogue.As alterações climáticas podem tornar ainda mais tenso um evento já agitado e com uma sincronização precisa. Embora a estação das monções dure vários meses, os sapos-comuns-asiáticos, juntamente com muitos outros anfíbios, reproduzem-se durante um período específico de um ou dois dias no início. Isto porque os filhotes precisam de eclodir e desenvolver-se o máximo possível antes do Inverno para terem mais probabilidades de sobreviver. Quando as chuvas chegam e começam a formar poças, os sapos acasalam-se rapidamente e os girinos têm tempo de se transformar em rãs antes que seu habitat seque novamente.Mas as mudanças nos padrões climáticos estão a alterar tanto o momento como a intensidade da estação das monções, o que pode perturbar a já estreita margem de oportunidade de muitas espécies. Se os sapos puserem ovos durante um breve período de chuvas antes de uma longa temporada de dias ensolarados, "todos os ovos secariam e a população seria reduzida nos anos seguintes", afirma K. V. Gururaja, especialista em anfíbios do Instituto Srishti Manipal de Arte, Design e Tecnologia da Índia, co-autor do estudo. A sobrevivência de espécies de reprodução explosiva, como o sapo-comum-asiático, pode depender da sua capacidade de se adaptar às mudanças no fluxo das monções.

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Esta experiência com IA permitiu desbloquear as memórias de infância

Um grupo de cientistas da Universidade Anglia Ruskin fez uma descoberta muito curiosa: a inteligência artificial (IA) pode desempenhar um papel fundamental na reactivação de memórias da infância que, uma vez que nos tornamos adultos, permanecem inacessíveis na memória. Conforme explicam os investigadores, modificar brevemente a percepção do próprio corpo através de ferramentas baseadas nessa tecnologia pode ser a chave que abre essa porta do cérebro.O estudo, publicado na revista Nature Scientific Reports, foi dirigido por Utkarsh Gupta, especialista em neurociência cognitiva da Universidade de Dakota do Norte. Participaram 50 voluntários adultos a quem, através de um ecrã, foi mostrada uma versão modificada do seu rosto utilizando um filtro criado com IA. O objectivo era que eles se vissem novamente como quando eram bebés ou crianças, conforme o caso.Durante o teste, o sistema replicava os movimentos da cabeça e as expressões dos participantes em tempo real, provocando neles uma sensação de reconhecimento físico e emocional. Esse fenómeno é conhecido como ilusão óptica de distorção facial e foi fundamental para criar a impressão de que o rosto infantil exibido na tela era o deles próprios.MEMÓRIAS MAIS VÍVIDAS E PRECISASApós a exposição a essa ilusão corporal, os participantes foram submetidos a uma entrevista autobiográfica na qual deveriam relembrar acontecimentos que ocorreram durante a infância. Os resultados foram claros: aqueles que visualizaram a sua versão infantil no ecrã foram capazes de lembrar muito mais detalhes das suas experiências passadas do que os membros do grupo de controlo, que viram apenas os seus rostos adultos.“Descobrimos que as mudanças temporárias na percepção corporal podem melhorar significativamente o acesso às memórias da infância se o rosto for substituído por uma versão infantil”, explicou Gupta. Depois, acrescentou que isso se deve ao facto de “o cérebro guardar informações sobre o corpo juntamente com as memórias dos eventos, pelo que reintroduzir sinais semelhantes pode facilitar a sua recuperação, mesmo décadas depois”.APLICAÇÕES TERAPÊUTICAS POTENCIAISOs cientistas que participaram na experiência estão convencidos de que a sua descoberta pode ajudar a compreender melhor a amnésia infantil, um fenómeno que impede praticamente todos os seres humanos de se lembrarem de acontecimentos anteriores aos três anos de idade.“Quando as nossas memórias da infância se formaram, os nossos corpos eram diferentes. Ao recriar a mesma sensação física daqueles momentos, ajudamos o cérebro a aceder a essas experiências”, esclareceu Gupta.Por sua vez, a investigação abre novos caminhos de estudo na área da neurociência aplicada. A razão é que os seus autores acreditam que este tipo de ilusões corporais poderia ser integrado em terapias assistidas por IA que servem para tratar distúrbios de memória e deterioração cognitiva. A realidade virtual poderia ir um passo além, recriando ambientes completos da infância, como a casa da infância.

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Uma alvorada preguiçosa

"No horizonte, as nuvens apresentavam um magnífico colorido. O planeamento prévio indicava que o Sol iria surgir por cima do troço elevado da ponte Vasco da Gama, junto à margem esquerda do rio Tejo", conta-nos o autor da fotografia.Fernando Sousa optou por uma longa exposição de 20 segundos para "adicionar um ligeiro efeito de fluidez às nuvens e à água do rio, [vergado na altura a uma] corrente rápida da maré vazante". Para obter o efeito pretendido, o fotógrafo usou ainda um filtro de densidade neutra em frente à objectiva, "como se dotasse a objectiva de uns óculos de sol muito escuros".

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Um corpo baloiçando no vento da manhã

Londres, 17 de Julho de 1982. Eram sete e meia da manhã e Anthony Huntley percorria a sua habitual rota postal quando, num relance, lhe pareceu ver algo pendurado na ponte Blackfriars.Era a sombra de um homem, balouçando na brisa da manhã, escravo de uma longa corda laranja que lhe nivelava a água pelos tornozelos. De início, Huntley pensou que alucinava. Num segundo relance, confirmou. O abalo da visão foi tão grande que regressou ao seu posto dos correios, tremendo, pálido. Quando explicou a um colega o que vira, este chamou a polícia da City, responsável pelos crimes na zona onde ficava a ponte. John Palmer foi o primeiro detective a chegar ao local. O corpo encontrava-se pendurado por um nó feito com duas cordas, uma delas típica dos barcos do Tamisa. O homem, de meia idade, calvo, desgrenhado, com um fato amarrotado, parecia um sem abrigo. No bolsos do casaco, encontraram algumas pedras e meio tijolo. A outra metade foi encontrada no interior das calças, na zona genital. Num bolso interior do casaco, foram encontradas 7.370 libras, em várias divisas monetárias. O desconhecido era, afinal, alguém de posses.O corpo foi retirado com brusquidão, levado para Milton Court, onde se realizou a autópsia. Palmer recolheu as impressões digitais e uma rápida análise da roupa e do corpo não apontou feridas visíveis. No entanto, o detective encontrou uma estranha substância nas calças, mais tarde identificada com um tipo de óleo que é muito comum em barcaças fluviais londrinas. O patologista, um eminente professor chamado Keith Simpson, fez uma breve autópsia e concluiu, de forma basilar, que a causa da morte fora asfixia e que nada apontava para qualquer acção de outros indivíduos. Portanto, suicídio. Palmer já lhe dera a entender que era essa a sua opinião.ROBERTO CALVI: O HOMEM NO CENTRO DE TODOS OS MISTÉRIOSA identificação do homem chegou. Tratava-se de um Gian Roberto Calvini. A roupa enrugada era, afinal, um caríssimo fato de marca e dois dados começaram a não casar: porque alguém de claras posses escolhera aquela ponte, em obras nessas altura, para um suicídio? Porquê algo tão público, acrobático, excessivo? Só dois dias depois o mistério começou a ganhar as suas primeiras pistas. Um telefonema recebido em Londres por parte da Procuradora Especial em Roma levantou a hipótese de aquele homem ser um banqueiro desaparecido chamado Roberto Calvi. O seu paradeiro era desconhecido desde a sua fuga de casa, sete dias antes e, mais ou menos na mesma altura, um jornal italiano recebeu uma denúncia anónima com a mesma informação, de uma mulher com sotaque milanês. Na verdade, como se soube mais tarde, a polícia da City poderia ter concluído isto logo quando a autópsia foi feita: etiquetas na parte de dentro do casaco mostravam este nome de forma evidente. Quando a verdadeira identidade foi confirmada, investigadores italianos voaram para Londres e rapidamente se verificou um choque entre ambas as forças policiais. Os britânicos insistiam que tinha sido suicídio; os italianos, pelo contrário, queriam confirmar se afinal Calvi não fora assassinado. Não o faziam por birra. Calvi era, afinal, uma das figuras centrais da finança italiana, que até há uma semana fora o dono e fundador do Banco Ambrosiano, uma das maiores instituições financeiras do seu país e com ligações ao governo e ao Vaticano.A Itália das décadas de 1970 e 1980 era um país de faca na boca, uma sucessão de conspirações, ligações obscuras e casos sórdidos. Os nomes de Calvi e do Banco Ambrosiano surgiam sempre associados a toda esta intriga. Calvi viera de origens humildes, construindo a sua fortuna de raiz, mas andava constantemente obcecado por aquilo que designava de poderes secretos. A sua mulher, Clara, lembrou isso ao jornalista Philip Willan em várias entrevistas e até morrer acreditou que esses mesmos poderes haviam sido responsáveis pela morte do marido.Que poderes secretos eram esses? Na Itália desse período, o difícil era escolher: o Vaticano, que via rebentar no início dos anos 1980 uma série de escândalos financeiros no banco homónimo, gerido pela Santa Sé, mas cujas operações estavam associadas ao banco Ambrosiano; o Partido Democrata Cristão Italiano, também com ligações à Santa Sé, que governou Itália desde o fim da Segunda Guerra Mundial até ao ano anterior de 1981 e de quem o Banco Ambrosiano era um dos principais financiadores; a máfia, com operações financeiras efectuadas dentro do Banco Ambrosiano e, especulava-se na altura, com o próprio Banco do Vaticano; a loja maçónica Propaganda Due (P2), à qual pertenciam Calvi e a esmagadora maioria das grandes figuras da política e da economia do país, incluindo Licio Gelli, indivíduo que parece sempre conhecer tudo e todos; e toda uma corrente de grupos terroristas e organizações de espionagem envolvidas em tráfico de armas e naquilo que ficou conhecido como "Operação Gladio". Esta última fazia parte de um plano que a NATO organizou e estabeleceu desde o final da década de 1940 para evitar que a União Soviética se infiltrasse nas democracias ocidentais através de partidos comunistas nacionais.PROBLEMAS NA INVESTIGAÇÃO… E A CAPA OBSCURA DO SILÊNCIOA polícia italiana estava interessada em responder a várias perguntas. Como é que Calvi foi para Londres, quando no dia 10 de Junho havia um mandato de captura em seu nome? Quem o ajudou? Porquê a capital inglesa, que interesses tinha ele aí? O que acontecera com uma mala que Calvi trazia sempre consigo e que, contava-se, possuía uma série de documentos sensíveis, que o banqueiro estaria a usar para fazer chantagem e conseguir assim vantagens pessoais?Calvi teria sido… “suicidado”? A polícia da City dizia que não; mas havia vários aspectos estranhos na cena do crime. Em primeiro lugar, o tijolo nos genitais. Em segundo, o detective responsável pela investigação supôs de imediato que fora suicídio. O manuseamento da cena do crime e o corpo foram ao encontro desta ideia, logo importantes pistas perderam-se e dados não foram tidos em conta.O nó da corda que enforcou Calvi, útil para se entender se era raro e apenas podendo ser feito por alguém com conhecimentos especiais, não foi sequer preservado. Robert Clarke, o advogado encarregue pela família Calvi de tratar da viagem de Roberto para Londres, ligou à polícia da City para informar como é que Calvi chegara à capital inglesa. O inspector que atendeu o telefonema disse-lhe que estava demasiado ocupado e desligou. E isto acerca de alguém que fora encontrado enforcado numa ponte. Quando White finalmente falou com Clarke e este quis oferecer mais informação, White não pareceu muito interessado. Era como se a conclusão do suicídio fosse agradável a todos e não se quisesse falar mais do assunto. A polícia italiana teve exactamente essa impressão quando se deslocou a Londres para saber o que se tinha passado. Era como se os ingleses não estivessem interessados em que se falasse mais do assunto. Em contrapartida, os italianos nunca mencionaram as ligações obscuras de Calvi à máfia, por exemplo, ou a homens como Flavio Carboni ou Sergio Vaccari, que, soube-se mais tarde, estiveram com o banqueiro nos dias anteriores à sua morte e que eram conhecidos criminosos e traficantes de droga. Vaccari, que comentara a sua participação na fuga de Calvi com alguns amigos, foi mais tarde encontrado morto de forma bárbara: fuzilado.Em 2002, quando o caso foi re-examinado a pedido da família de Calvi, um inspector inglês, Trevor Smith, da Polícia Metropolitana, acrescentou ainda mais negligências da polícia da City. Não buscou impressões digitais em qualquer um dos objectos encontrados com Calvi; não investigou as contas bancárias ligadas ao banqueiro; o corpo não foi fotografado na sua cena do crime original; e suspendeu a investigação durante um mês até chegarem os resultados do inquérito inicial. Para se ter uma ideia, os registos de aluguer de barcos do Tamisa nessa manhã só foi feito em 1992, e por detectives privados. E ninguém verificou os alibis daqueles com quem Calvi esteve em Londres. Ao todo, Smith elencou 20 erros, alguns dando a entender que uma protecção especial foram aplicada a todos os envolvidos no caso. Houve julgamentos décadas depois, com todos os acusados a serem absolvidos, mas só devido à iniciativa da família Calvi, que nunca acreditou na tese do suicídio. Os acusados, todos com ligações à máfia, contaram histórias contraditórias, com múltiplos culpados impossíveis. BIBLIOGRAFIA“The Vatican at war”, de Philip Willan“Puppetmasters”, de Philip Willan“In God’s name”, de David Yallop

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O James Webb aponta para o espaço profundo e encontra algo que não esperava

O Telescópio Espacial James Webb focou numa das regiões mais distantes do universo. Nela, conseguiu capturar um objecto de grande luminosidade cuja verdadeira natureza representa um desafio para os modelos cosmológicos actuais. Os investigadores decidiram chamá-lo de Capotauro e, num estudo preliminar já disponível na plataforma arXiv, consideram duas opções.A primeira é que se trata da galáxia mais antiga conhecida, que teria se formado apenas 100 milhões de anos após o Big Bang. A outra sugere que Capotauro é, na verdade, uma anã castanha ultra-fria que reside na borda exterior da nossa galáxia. A confirmação de qualquer uma das duas hipóteses obrigaria a repensar os processos iniciais de formação de estruturas no universo primitivo.A IDENTIDADE ENIGMÁTICA DE CAPOTAUROSe for confirmado que se trata de uma galáxia, a sua formação superaria em aproximadamente 200 milhões de anos a mais antiga identificada até agora (JADES-GS-z14-0). Além disso, as estimativas iniciais sugerem que Capotauro possui uma massa superior a 1.000 milhões de sóis, o que indicaria uma taxa de crescimento estelar surpreendentemente alta numa fase tão precoce do cosmo.Por outro lado, se for comprovado que se trata de uma anã castanha, Capotauro seria o exemplar mais frio e distante da sua classe dentro da nossa galáxia. Mais concretamente, estaria a uma distância de cerca de sete anos-luz. Os investigadores afirmam que a sua temperatura superficial seria de apenas 27 °C.Segundo Giovanni Gandolfi, um dos autores do estudo, “ambos os cenários são muito emocionantes porque desafiariam o que pensávamos saber sobre a nossa própria galáxia e como as galáxias se formam e evoluem em geral”. As câmaras infravermelhas do James Webb tornaram possível a detecção deste objecto localizado numa posição tão remota da Via Láctea.E AGORA, O QUE FAZEMOS?Para discernir a verdadeira natureza de Capotauro, serão necessárias novas observações. A razão pela qual não foi possível determiná-la tem a ver com as imagens captadas pela câmara de infravermelho próximo (NIRCam) do James Webb, que opera em sete bandas de comprimento de onda.Nas imagens captadas, Capotauro só foi detectado nas duas comprimentos de onda infravermelhos mais amplos, o que complicou a sua correcta classificação. Por sua vez, o espectrógrafo de infravermelho próximo (NIRSpec) ajudou a determinar a idade e a temperatura da estrutura.A combinação dos dois dispositivos não foi suficiente para elucidar a natureza exacta de Capotauro. De qualquer forma, como indicou o astrofísico Muhammad Latif, “não importa a forma como os resultados são interpretados, em ambos os casos eles levam os limites do nosso conhecimento ao extremo”.

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Nas bancas

A nova ciência do coração: As doenças cardiovasculares continuam a ser a principal causa de morte em todo o mundo, mas os avanços no campo da cardiologia estão a revolucionar os tratamentos e os métodos de detecção. A investigação genética, os gémeos digitais do coração, a cirurgia robótica, as intervenções minimamente invasivas ou os desfibrilhadores implantáveis são alguns exemplos desta nova era.O comboio do futuro do México avança com polémica: O Comboio Maia foi construído para ligar sítios arqueológicos e cidades modernas do Iucatão, mas tem um custo ambiental.O curioso caso dos tigres negros de Similipal: A recuperação dos tigres na Índia é um motivo de esperança, mas o isolamento das reservas e a endogamia criaram um gigantesco problema de conservação.Uma nova maneira de ver o nosso planeta: O fotógrafo Babak Tafreshi e o astronauta Don Pettit retrataram alguns dos lugares mais notáveis da Terra.O navio do Cais do Sodré: Há 30 anos, durante as obras do metropolitano, emergiu um navio abandonado na lama e no lodo do Cais do Sodré. Um arqueólogo retomou a investigação dessa curiosa embarcação seiscentista.

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Coração de pedra

As terras altas que integram o Altiplano boliviano estendem-se por quase 1.000 quilómetros entre o Peru e a Bolívia. A paisagem é constituída por uma série de bacias que se encontram a cerca de 3.500 metros acima do nível do mar, formando a maior área de planalto da Terra fora do Tibete.Esta área em particular é uma transição entre o deserto a oeste e a floresta tropical a leste. A formação em forma de coração foi moldada por várias camadas de diferentes formações geológicas ao longo do tempo. Os numerosos riachos e rios visíveis também contribuíram para moldar a paisagem tal como a vemos atualmente.Sucre, a capital do departamento de Chuquisaca, é visível na parte superior da imagem a cinzento. Classificada como Património Mundial pela UNESCO, a cidade situa-se a uma altitude de 2.800 metros acima do nível do mar. À esquerda de Sucre, encontra-se a cratera de Maragua, um destino popular para caminhadas.Satélites como o Sentinel-2 permitem-nos captar belas imagens como estas a partir do espaço, mas também monitorizar locais em mudança na Terra. Voando a uma altitude de 800 quilómetros, os satélites tomam o pulso ao nosso planeta, captando imagens e medindo sistematicamente as mudanças que ocorrem, o que é especialmente importante em regiões como estas que, de outra forma, seriam de difícil acesso. Esta ferramenta pode contribuir para a tomada de decisões mais informadas com vista a proteger o nosso mundo para as gerações futuras e para todos os cidadãos que habitam a nossa querida Terra.

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Lutando pela salvação da ave mais tenaz do deserto

A caixa de cartão para transporte de animais foi pousada sobre um pedaço de erva no deserto e tapada com uma toalha enquanto Eric Murray se acocora sobre um bloco de cimento e ajusta as luvas grossas para proceder à extracção. Em seguida, num único movimento rápido, introduz a mão na caixa e retira do interior o pequeno mocho com penas salpicadas de castanho e branco.Embora adulto, o mocho tem apenas cerca de 23 centímetros de altura e patas longas e esguias com garras afiadas. Os seus grandes olhos amarelos abrem-se enquanto roda lentamente a cabeça, num ângulo invulgar, para examinar o espaço à sua volta.Neste dia quente de Primavera, Eric e cerca de uma dezena de voluntários equipados com luvas e chapéus juntaram-se em Martin Farm, uma parcela de pradaria com 97 hectares a noroeste de Tucson, no estado do Arizona, a fim de participarem numa experiência única de libertação de aves. Depois de abrir cuidadosamente as asas de uma das corujas para mostrar que se tratava de uma fêmea, confirmando que “as listas vão mesmo até baixo”, Eric virou na direcção de um abrigo temporário montado recentemente, uma pequena tenda de malha negra translúcida. Levantou um dos cantos da cobertura e atirou delicadamente a criatura para o interior.A ave olhou em redor e voou, batendo com a cabeça numa parede de tecido e caindo num pedaço de terra acabado de escavar. Sacudiu-se, para recuperar, mas voltou a repetir o processo.“Pobrecita”, disse um dos voluntários. “No sabe”, não percebe.Depois, os voluntários acrescentaram outra coruja ao abrigo. Ambas as aves continuaram a esvoaçar, agitadas. Embora fosse difícil de assistir, este processo seria repetido centenas de vezes ao longo do ano. Em Martin Farm, havia 25 tendas como esta, montadas em intervalos regulares na propriedade. Nos últimos anos, a Wild At Heart, a organização de resgate de animais responsável por estas operações, convenceu a cidade de Tucson a reservar o terreno para a conservação. O grupo tem sete locais activos em terrenos públicos e privados no estado norte-americano do Arizona.O grupo acalentava esperanças de que, no espaço de um mês, a tenda pudesse ser removida e as aves tivessem nidificado no terreno – ou, melhor dizendo, debaixo dele. É isso que os mochos-buraqueiros fazem porque esta espécie cada vez mais ameaçada evoluiu de modo a nidificar no subsolo. Outrora o mocho mais abundante do continente, sofreu um declínio acentuado nos últimos 150 anos. A população representa agora uma fracção do efectivo anterior. É considerado ameaçado no Canadá, raro no México e na Florida e com diferentes estatutos de protecção em grande parte do Oeste Americano. Os culpados são sobretudo o desenvolvimento urbano e a agricultura comercial, que reviraram as terras onde os animais costumavam nidificar. Em nenhum outro local dos Estados Unidos esta progressão desastrosa é tão evidente como no Arizona, sobretudo na área metropolitana de Phoenix, uma das cidades em mais rápido crescimento do país. As operações industriais e os parques solares estão a surgir rapidamente e isso tem repercussões.O mocho-buraqueiro evoluiu de modo a ocupar tocas abandonadas, tipicamente de texugos, cães-da-pradaria e esquilos. No Oeste, as populações de muitas das criaturas das quais dependeram outrora diminuíram devido à seca e às campanhas de extermínio. No Arizona, porém, a Wild At Heart conseguiu provar que pode salvar estes animais, mesmo cometendo erros ao longo do processo.Tudo começa com uma rede de tocas construídas artificialmente e instaladas no subsolo. Em cada tenda, tubos de PVC criam passagens com 15 centímetros até ao ninho artificial. O túnel tem cerca de cinco metros de comprimento e desce a um metro de profundidade, assegurando que os ninhos se mantêm frescos quando as temperaturas exteriores aumentam. O túnel liga-se a um ninho principal criado através do corte de um contentor de plástico, de modo a simular o tamanho de um ninho natural.Durante 30 dias, as duas aves no interior de cada tenda são alimentadas com uma dieta diária constituída por três ratos congelados, que devem partilhar entre si. Quando as tendas são desmontadas, os voluntários regressam ao local durante uma semana para lhes darem mais petiscos, enquanto os animais se habituam ao novo território de caça.A ideia de pôr em prática este projecto começou há mais de três décadas, quando o conservacionista Bob Fox e a sua mulher Sam, entretanto falecida, estavam a trabalhar como voluntários, ajudando animais feridos numa sucursal regional do Departamento de Caça e Pescas do Arizona. Em 1991, Bob recebeu autorização oficial para criar uma coruja-das-torres bebé chamada Chia e o casal construiu um pequeno aviário no seu quintal. Quando Chia atingiu a idade de adulta, o casal ficou surpreendido ao vê-la adoptar entusiasticamente pintos deslocados.A continuação da monitorização exigiu uma licença do Serviço de Pescas e Vida Selvagem do Arizona e dos EUA, o que incentivou a família Fox a abrir o seu próprio centro de reabilitação – instalações na região suburbana de Cave Creek, em Phoenix, que acolhem aves de rapina como corujas-das-torres, águias-pesqueiras e falcões. “Era inevitável que se transformasse numa paixão porque o trabalho é muito envolvente”, diz Bob.O telefone fixo dos Fox tornou-se uma espécie de linha de apoio que funcionava 24 horas por dia, recebendo chamadas de pessoas que tinham descoberto aves feridas. No Arizona, os mochos-buraqueiros são espécies que despertam preocupação e o Departamento Estadual de Caça e Pesca tornou-se proactivo, recomendando que os locais de construção fossem examinados antes do início de qualquer obra, para que os mochos pudessem ser removidos. Ao longo dos últimos 20 anos, a Wild At Heart cresceu, contando agora com alguns funcionários e um número maior de voluntários que presta assistência aos pedidos, cada vez mais frequentes, de captura e realojamento.O ninho artificial foi uma ideia de Sam Fox. “Não existia um mecanismo para os realojamentos”, recorda o marido. “Por isso, quando estavam prontas para serem libertadas, Sam dizia: ‘Não podemos limitar-nos a atirá-las para qualquer lado; temos de construir um sítio para as aves’.”O grupo de resgate acabou por projectar ninhos de fabrico barato e fáceis de instalar. No entanto, os conservacionistas enfrentaram uma curva difícil de aprendizagem. Certo ano, um único texugo desfez cinco dezenas de ninhos em busca de uma refeição fácil.  Noutro ano, uma chuvada forte provocou cheias, tornando os ninhos inabitáveis. Os ninhos contam agora com uma rede de malha metálica por baixo do contentor, que os protege de criaturas escavadoras. A maior parte dos tubos de entrada foram ligeiramente levantados e rodeados por rochas, mantendo-se elevados em caso de cheias. A equipa também acrescentou poleiros feitos de estacas de madeira para os mochos poderem observar predadores acima do solo.No entanto, o verdadeiro desafio aconteceu quando as tendas foram desmontadas. “Tínhamos um quebra-cabeças para resolver”, explica Greg Clark, coordenador de habitats da organização. “Os mochos punham muitos ovos nas tendas e todos acharam que isso era maravilhoso. Só que alguns ovos estavam a ser abandonados. E ninguém percebia porquê.”Há vários anos, o Serviço de Pescas e Vida Selvagem teve dúvidas em relação aos esforços que envolviam simulação de habitats. Em 2017, um estudo realizado pela agência sobre as práticas da Wild At Heart comparou sítios com 122 ninhos, alguns dos quais deslocados, com outros localizados em áreas não perturbadas, que não necessitavam de realojamento. Nos dois anos que se seguiram, a Wild At Heart trabalhou com uma equipa independente integrada por Martha Desmond, professora de Ecologia na Universidade Estadual do Novo México, e David H. Johnson, fundador do Projecto Global das Corujas, que desenvolve estratégias comprovadas para facilitar o realojamento das corujas.Aparentemente, a Wild At Heart estava a juntar demasiados mochos: seis a dez em cada recinto. “Isso parecia causar um forte stress a todos os mochos e prejudicava o bom acompanhamento dos ovos”, diz Greg.O realojamento dos machos durante a época de acasalamento, entre Março e Agosto, era outro problema. Os machos não tinham experiência de caça na região e, quando as tendas eram desmontadas, os ratos fáceis desapareciam. As fêmeas abandonavam com frequência os ninhos em busca de parceiros melhores. “Tudo se desmoronava”, diz David Johnson.Tudo isto provocou um número elevado de mortes. Ao fixarem transmissores de rádio em 43 mochos deslocados e 42 residentes, os investigadores conseguiram acompanhar as consequências, sabendo que as aves deslocadas sofrem sempre taxas de mortalidade mais elevadas. Neste caso, a mortalidade entre as aves recentemente deslocadas era mais do dobro, com 24 mochos deslocados mortos em comparação com 11 residentes. “A situação não era boa”, diz Martha.No entanto, os novos dados inspiraram mudanças. A Wild At Heart utiliza agora tendas mais pequenas e mais espaçadas entre si, instalando apenas casais de mochos no interior. Estes passos e o horário de alimentação contínuo exigem muito dos voluntários. Para encontrar sítios protegidos do alastramento urbano e próximos de boas fontes de alimento, Greg Clark centra a sua procura fora dos grandes centros populacionais, o que dificulta o recrutamento de voluntários dispostos a deslocar-se a grandes distâncias. O facto de as libertações estarem limitadas a determinadas estações do ano também é um desafio porque a Wild At Heart não consegue controlar a quantidade de mochos que recebe. David, que conduz uma investigação sobre deslocações de animais com organizações de todo o mundo, diz que a Wild At Heart se destaca pelo número de mochos que recebe. Num ano típico, tem cerca de 200 animais necessitados de realojamento. Nos anos em que a construção imobiliária atinge picos, a média sobe acima de 250. Ultimamente, as energias renováveis têm contribuído para as pressões exercidas – mais de cem mochos foram realojados nos últimos dois anos devido a projectos solares.Muitos locais de realojamento apenas conseguem acolher cerca de cinquenta aves. Se esses locais estiverem cheios, os mochos afastados da natureza podem ser obrigados a permanecer mais tempo nos aviários, onde podem perder a sua forma física, o que pode afectar a sua sobrevivência quando forem libertados.Em busca de soluções, a equipa começou a criar relações com algumas empresas de energia solar que estão a transferir-se para o território dos mochos. A Longroad Energy, uma empresa que trabalha em cerca de quatro mil hectares na região, concordou recentemente em deixar centenas de hectares por explorar, desenvolvendo igualmente trabalho conjunto com a organização sem fins lucrativos para construir novos ninhos em terras reservadas para o efeito.“Os mochos são adaptáveis”, comenta David Johnson. “Podemos ser bem-sucedidos. Só temos de pensar mais nos nossos métodos. É isso que está a mudar agora.”Dois meses depois de as tendas de Martin Farm serem desmontadas, Jenohn Wrieden, uma bióloga também ligada à Wild At Heart, atravessou de carro a pradaria poeirenta, serpenteando entre os ninhos, bastante espaçados entre si e sinalizados pelas estacas que servem de poleiros. Por esta altura, as aves realojadas já deveriam ter partido ou nidificado e, abaixo do solo, os pintos estariam prontos para a mudança da pena.Jenohn reparou num vulto lá ao fundo e interrompeu a marcha do veículo. Pegou no binóculo para apreciar melhor a cena. Através das lentes, conseguiu avistar uma família de mochos, com crias ansiosas, esticando as asas para os primeiros testes de voo. “Com cinco semanas, não têm necessariamente de partir, mas já voam bem”, diz Jenohn. “E, se souberem caçar, serão independentes.”Em cima do ninho, um mocho juvenil esticava as asas enquanto outro se adiantava e levantava voo, completando uma pequena volta antes de regressar ao solo. Como os pintos não estavam anilhados, era difícil dizer se seriam descendentes dos mochos deslocados ou se viriam de outros locais na região.Numa libertação típica, cerca de um quarto dos mochos deslocados poderá permanecer na mesma região e acasalar ali. Costumam fazer posturas de cerca de seis ovos, mas nem todos os pintos sobrevivem. Em média, uma nova família pode criar dois juvenis, o que significa que esta família avistada por Jenohn é uma das mais afortunadas. Inevitavelmente, alguns mochos mudam-se para ninhos naturais que lhes agradam mais. Mas isso faz parte da razão pela qual as pradarias áridas de Martin Farm foram escolhidas. A zona tem uma boa proximidade de criaturas construtoras de tocas naturais, como texugos e esquilos-terrestres – que ainda povoam  os campos por explorar em redor. O mais importante é que nenhum desses mochos poderá regressar aos terrenos de origem, uma vez que estes foram transformados em locais de construção para edifícios residenciais ou em parques solares. Jenohn viu um gavião de Cooper a voar em círculos, bastante acima dos pequenos mochos. Era um potencial predador perigoso, mas ela não se mostrou preocupada, pois a família poderia retirar-se para o subsolo ou enfrentar os riscos. Dar-lhe essa oportunidade parecia um sucesso por si só.Artigo publicado originalmente na edição de Outubro de 2025 da revista National Geographic.

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O rio que une dois países e múltiplas vidas

É impossível falar do Douro Internacional sem evocar o Douro Vinhateiro, esse território de socalcos onde a vinha conquista montanhas e gera uma das mais antigas regiões demarcadas do mundo.Aqui, o ciclo do ano é marcado pela poda, pela floração e pela vindima. Cada cesto de uvas transportado à mão e cada barco rabelo que descia o rio carregado de pipas marcaram o compasso de uma economia e de uma cultura moldadas pelo vinho.O Porto, em garrafa, é mais do que um produto: é a materialização líquida de séculos de trabalho humano em harmonia com a terra. Mas o Douro não é apenas vinho. É também água em abundância. O curso internacional, que acompanha a fronteira luso-espanhola por mais de uma centena de quilómetros, beneficia de um microclima único: verões quentes e secos, invernos rigorosos, mas equilibrados pelo regime do próprio rio. Esta combinação cria condições ideais tanto para a vinha como para uma notável biodiversidade.As escarpas, esculpidas pelo Douro ao longo de milénios, desenham um cenário dramático de arribas abruptas e vales encaixados. São muralhas de pedra que encantam os visitantes e sustentam uma teia ecológica delicada. Nas alturas, os grifos voam em bandos, aproveitando as correntes ascendentes. Com envergaduras impressionantes, desenham círculos lentos sobre as arribas, como sentinelas do tempo. Mais rara, e por isso ainda mais valiosa, é a presença do abutre do Egipto. Pequeno, ágil e de bico amarelo, é uma das aves mais ameaçadas da Europa, mas encontra nestas paredes vertiginosas condições para se reproduzir.Também a águia de Bonelli, de voo rápido e preciso, faz destas encostas território, caçando entre desfiladeiros e cumes rochosos. Cada ninho e cada voo são sinais de que o Douro Internacional se mantém como um dos últimos redutos verdadeiramente selvagens da Península Ibérica.A vida animal, porém, não se limita às aves de rapina. Nas planícies adjacentes ao rio, a criação de raças autóctones de ovinos e bovinos continua a desempenhar um papel essencial, tanto cultural como ecológico. Rebanhos de ovelhas merinas e manadas de vacas mirandesas pastam em regime extensivo, numa relação que ecoa séculos de tradição pastoril. Estes animais não são apenas sustento das comunidades humanas: as suas carcaças, deixadas no campo de forma controlada, alimentam as aves necrófagas, fechando um ciclo natural indispensável. Grifos e abutres dependem, em grande parte, desta prática ancestral que alia produção local à manutenção da biodiversidade. É uma simbiose rara em que economia e ecologia se reforçam mutuamente.Este mosaico natural e cultural não conhece fronteiras. O Douro Internacional é, por definição, partilhado. Portugal e Espanha dividem as suas margens, mas unem esforços na sua preservação. A criação do Parque Natural do Douro Internacional, em território português, e do Parque Natural das Arribas do Douro, em território espanhol, foi um gesto simbólico e prático, reconhecendo que a conservação da biodiversidade não pode ser conduzida numa só margem.A cooperação transfronteiriça é hoje essencial, tanto para a monitorização das populações de aves como para a gestão de habitats ou para o incentivo ao turismo de natureza. O visitante que percorre um trilho em Miranda do Douro ou observa aves em Fermoselle experimenta o mesmo rio, a mesma paisagem, a mesma herança partilhada. E o turismo é, de facto, uma das mais fortes apostas desta região. Os cruzeiros fluviais permitem ver as arribas em toda a sua imponência, enquanto os miradouros, como os de São João das Arribas ou o de Picote, oferecem panorâmicas de cortar o fôlego. Uma caminhada por estes trilhos sentindo o silêncio interrompido pelo vento é uma experiência transformadora. Aqui, o Douro mostra-se em estado puro, intocado, longe da pressa das cidades.No final, o Douro Internacional é um espaço de síntese. É vinho e é rio, é fronteira e é união, é cultura e é vida selvagem. É a prova de que a tradição pode alimentar a modernidade sem perder a sua essência, e de que a cooperação entre povos é o único caminho para proteger aquilo que nenhum país pode reclamar para si: a herança da natureza. Nas arribas que se erguem sobre as águas, está inscrita a memória de milénios; nas vinhas e nos rebanhos, a continuidade do humano; e nos voos das aves, o futuro de um território que resiste em ser eterno.Artigo publicado originalmente na Edição Especial Viagens n.º 60 – Paraísos Naturais de Portugal e Espanha.

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Porque é que o futuro da moda é ‘da terra para o armário’ e vice-versa

Numa manhã húmida de Dezembro, no distrito montanhoso de Ambarawa, na região central de Java, uma mulher vestindo um colete sem mangas preto e uma saia franzida, equilibra-se numa moto que a transporta através de uma pequena aldeia, passando por casas enfeitadas com plantas tropicais e gaiolas com pássaros, e entrando numa floresta.Esta terra, cerca de 500 quilómetros a leste de Jacarta, a capital da Indonésia, está coberta de arbustos e árvores de uma variedade de culturas, incluindo mandioca e café. No entanto, foi o solo da floresta que trouxe Denica Riadini-Flesch, de 34 anos, até este canto do seu país natal. À sombra das bananeiras, papaeiras e coqueiros, ela está a tentar semear uma revolução – sob a forma de centenas de plantas vibrantes de índigo, que criam uma virescência brilhante sobre o solo.Riadini-Flesch é a fundadora da SukkhaCitta, uma marca de roupa com parcerias com centenas de agricultores e artesãs indonésios em Java e nas ilhas vizinhas de Bali, Flores, e Timor Ocidental. E foi a sua empresa que inspirou o sucesso desta cultura em ascendência. Existem muitas variedades de índigo, mas uma comummente utilizada em Ambarawa precisa de luz solar em abundância. Riadini-Flesch apercebeu-se de que teria de cortar árvores para aumentar o seu crescimento. Em vez disso, propôs uma alternativa aos agricultores: uma variedade resistente chamada índigo Assam, que floresce à sombra. Actualmente, a floresta está coberta de índigo que proporciona um rendimento vital à comunidade, fornecendo simultaneamente um caleidoscópio de tintas coloridas para as peças de roupa fabricadas pela SukkhaCitta.Isto inclui as próprias peças usadas por Riadini-Flesch, que adquiriram o seu tom negro botânico depois de serem mergulhadas em folhas de índigo fermentadas 30 vezes. Este processo meticuloso está no cerne do modo de funcionamento ético e ambientalmente sustentável da SukkhaCitta. O colete kebaya Kapas que ela tem vestido custa aproximadamente 280 euros e o kain Angkasa Constellation, um tecido que ela usa como sarong, custa cerca de 440 euros – valores que reflectem o trabalho artesanal de cada peça. Em pé, no meio das árvores, Riadini-Flesch emana um sentimento de admiração que espera transmitir aos seus clientes. “Isto”, diz, entusiasmada”, “é uma floresta de moda”.A fundadora da SukkhaCitta propôs uma alternativa aos agricultores: uma variedade resistente chamada índigo Assam, que floresce à sombra.O índigo é apenas um dos ingredientes da cadeia de fornecimento radicalmente transparente da SukkhaCitta. Cada tecido da colecção da-terra-para-o-armário é 100 por cento fabricado com plantas, desde fibras naturais rastreáveis a tinturas vegetais cultivadas seguindo os preceitos da agricultura regenerativa. As fibras de algodão são fiadas à mão e tecidas em teares manuais. Os tecidos são decorados por artesãs nativas que praticam uma requintada técnica desenhada a mão chamada batikantes de os mergulharem em tinas de cor, para, em seguida, os secarem ao sol e, por fim, cortarem-nos, para fazer a roupa.O processo inteiro, desde a semente até à peça de roupa, demora entre 60 e 180 dias. Uma vez concluídas, as peças são enviadas para a loja principal da SukkhaCitta, em Jakarta, comercializadas online ou vendidas em boutiques selectas em Singapura e Nova Iorque, onde os clientes estão cada vez mais inclinados a gastar o seu dinheiro num vestido ou num par de calças elegante, desenhados por marcas que priorizem o seu impacto social e ambiental no mundo.Os tecidos são decorados por artesãs nativas que praticam uma requintada técnica desenhada a mão chamada batik antes de os mergulharem em tinas de cor, para, em seguida, os secarem ao sol e, por fim, cortarem-nos, para fazer a roupa.O dito movimento damoda lenta (slow fashion) surgiu de uma oposição directa aos valores da moda rápida (fast fashion), o processo prevalecente, liderado pela indústria, que está repleto de excessos e desperdício. Muitos dos actuais fabricantes de roupa contribuem para uma indústria no valor de cerca de 90 mil milhões de euros composta por t-shirts de poliéster baratas e leggings de spandex, à custa de exploração de trabalhadores e do ambiente. Na Indonésia, o rio Citarum, uma das principais fontes de água potável e de irrigação, está contaminado por químicos tóxicos, descarregados na via fluvial pelas fábricas de têxteis que revestem as suas margens. E o impacto global tem um alcance ainda maior: desde o deserto do Atacama, no norte do Chile, até um aterro nos arredores de Accra, a capital do Gana, montanhas de roupas descartadas crescem a cada ano que passa.Riadini-Flesch acha que empoderar os consumidores com conhecimento sobre a forma como a roupa é fabricada – seja sobre as plantas utilizadas para tingir as peças ou as artesãs que as cosem – permitirá criar uma relação mais profunda com aquilo que vestem, maior apreço pelo artesanato e pelo produto e a percepção de que as escolhas que fazemos enquanto consumidores afectam directamente as pessoas e o planeta.Ela já conquistou um elenco impressionante de apoiantes influentes. O músico Chris Martin, dos Coldplay, a Exploradora da National Geographic e oceanógrafa Sylvia Earle e a famosa violoncelista Yo-Yo Ma já foram vistos com peças da SukkhaCitta. “O percurso da Denica é prova do melhor tipo de pensamento cultural, diz Yo-Yo Ma, que se manteve em contacto com a fundadora, “alimentado pela vontade de trabalhar arduamente com a cabeça, o coração e as mãos”.A SukkhaCitta não é a primeira marca a oferecer um modelo alternativo à forma como a roupa é fabricada. E enfrentou, desde o início, uma verdade fundamental: as roupas feitas com cuidado e um propósito vão ser relativamente mais caras do que as alternativas. No entanto, Riadini-Flesch acha que os clientes compreendem o valor daquilo que estão a pagar, apercebem-se de que as roupas mais baratas, na verdade, saem muito mais caras. “A roupa não vai mudar o mundo, mas as pessoas que a vestem, vão”, diz ela. A sua missão começou por pensar como poderia usar o seu conhecimento de modo a criar uma ponte que motivasse os outros a restaurarem o planeta.Embora a Indonésia já tenha feito avanços na diminuição da pobreza, 9 por cento da população continua a ter dificuldades em ganhar o seu sustento. São cerca de 24 milhões de pessoas, muitas das quais vivem em aldeias rurais. Tendo crescido em Jacarta, Riadini-Flesch conhece bem os problemas profundos do país em matéria de desigualdade e estudou economia do desenvolvimento na universidade. Depois de ter trabalhado no Banco Mundial, adquiriu um sóbrio conhecimento da verdade quando começou a viajar pela zona rural da Indonésia em 2013.Na Indonésia, 9 por cento da população continua a ter dificuldades em ganhar o seu sustento. Riadini-Flesch nada sabia sobre moda, mas um dia conheceu três artesãs de batik numa aldeia situada nos arredores de Tuban, na zona oriental de um Java. As mulheres disseram-lhe que tinham aprendido a arte ancestral com as suas mães, que utilizavam pigmentos naturais para tingir os seus tecidos. No entanto, a sua tradição estava em risco. Com recursos limitados, as artesãs começaram a utilizar pigmentos químicos mais baratos e mais disponíveis, que queimavam os seus pulmões, mas, mesmo assim, não conseguiram competir com a velocidade dos têxteis impressos em fábricas. Todas eram mães, ou ibus, que se preocupavam com alimentar as suas famílias.Até então, Riadini-Flesch nunca pensara na forma como a roupa era fabricada. “Aquilo fez-me perceber que, sem saber, eu fazia parte do problema”, disse.Nos meses que se seguiram, Riadini-Flesch identificou outros problemas na cadeia de fornecimento da moda, que afectavam não só os artesãos como os agricultores, que tinham abandonado o algodão em prol de monoculturas como o milho, degradando consequentemente a saúde do solo, das plantas e da vida selvagem, que prosperavam graças à diversidade agrícola. Ambas as práticas ancestrais, o artesanato e a agricultura, estavam profundamente enraizadas na vida da aldeia. Precisavam apenas de ser recuperadas. A moda lenta, apercebeu-se ela, poderia ser um veículo para a mudança.Riadini-Flesch conheceu três artesãs de batik que lhe disseram que tinham aprendido a arte ancestral, em vias de extinção, com as suas mães. Fez-se luz. No início, as ibus desconfiaram de Riadini-Flesch devido à forte divisão entre classes da sociedade indonésia. Embora ela só tivesse 1.760 euros para investir, usou esse dinheiro para pagar um salário justo às artesãs de batik, o que lhe permitiu criar a sua primeira amostra: uma bandana à qual chamou Kupu, ou borboleta. Em 2019, três anos após a sua criação, a empresa atraíra interesse suficiente entre os residentes dos arredores de Tuban para abrir a sua primeira escola de artesanato: a Fundação Rumah SukkhaCitta, que é financiada pelos lucros da empresa, donativos, subsídios e prémios de empreendedorismo atribuídos por organizações sem fins lucrativos e grupos de ajuda humanitária.As ibus desconfiaram de Riadini-Flesch devido à forte divisão entre classes da sociedade indonésia.As escolas organizam workshops onde as artesãs podem ensinar batik às gerações mais novas e os agricultores podem aprender técnicas regenerativas para plantar algodão.Os aldeães estão a utilizar uma técnica nativa conhecida localmente como tumpang sari, que prioriza o cultivo de diversas plantas em conjunto, permitindo que se nutram mutuamente. O algodão é plantado ao lado do milho, que lhe fornece sombra. A malagueta ajuda a controlar as pragas. E o amendoim acrescenta nitrogénio ao solo. Esta abordagem permite aos indonésios rurais cultivar algodão para a SukkhaCitta, enquanto colhem mais alimentos para as suas famílias e legumes ou frutos secos adicionais que podem vender para suplementar os seus rendimentos.O algodão é plantado ao lado do milho, que lhe fornece sombra. A malagueta ajuda a controlar as pragas. E o amendoim acrescenta nitrogénio ao solo.Agora, Riadini-Flesch e as ibus abraçam-se como se fossem família. Numa visita recente, ela conversou com as mulheres enquanto elas mergulhavam as suas ferramentas, ou tjantings, em tigelas com cera quente e desenhavam motivos nos tecidos. Um sentimento de confiança envolveu o grupo. Reivindicarem a sua arte permitiu às mulheres recuperarem a sua identidade. “Não é sangue que corre nas nossas veias”, disse certa vez uma das ibus a Riadini-Flesch. “É cera quente.”Desde o início que a SukkhaCitta trabalha para melhorar as condições de vida dos habitantes das aldeias com quem fez parcerias. Isso inclui utilizar parte dos lucros para criar subsídios para os aldeães interessados em comprar terrenos agrícolas. As mulheres também são ensinadas a revaliar o valor social e monetário do seu trabalho. Em vez de negociarem o pagamento depois de o trabalho estar pronto, como muitas faziam no passado, aprendem a contabilizar o tempo que demoram a concluir uma peça ou até uma colheita de algodão. A SukkhaCitta baseia-se nesse valor para calcular um salário mais alto, aumentando significativamente os seus rendimentos.Os aldeães estão a utilizar uma técnica nativa conhecida como tumpang sari, que prioriza o cultivo de diversas plantas em conjunto, permitindo que se nutram mutuamente.Iniciativas como estas transformaram Riadini-Flesch num modelo para outros empreendedores e contribuíram para aumentar os seguidores da marca nas redes sociais. As peças da SukkhaCitta já apareceram na edição de Singapura da Vogue e as vendas estão a aumentar 30 a 40 porcento anualmente, diz ela, permitindo à empresa proporcionar oportunidades económicas aos aldeães. Linna Setyowati, de 32 anos, recebeu um subsídio da SukkhaCitta para comprar um hectare de terreno, restaurando-lhe a saúde depois de a terra ter sido degradada por herbicidas e adubos químicos. Agora está a aplicar os princípios da tumpang sari enquanto espera que as suas bolas de algodão estejam prontas para colher. “A terra está mais nova”, diz ela. “Está saudável”.E, e o mais importante, é dela.Em todo o mundo, outros empreendedores estão a desenvolver as suas próprias empresas de moda lenta. As ofertas variam desde camisolas de alpaca de origem ética, fabricadas no Peru, a cabedal vegano derivado de cactos e laranjas sicilianas. Angelina Jolie abriu recentemente um atelier em Manhattan, onde os clientes podem transformar as suas próprias peças em designs novos e exclusivos. Riadini-Flesch admira a marca francesa Veja, que fabrica sapatilhas de algodão orgânico e borracha amazónica. À semelhança da Veja, que transformou o frenesim de compras da Black Friday na “Repair Friday”, a SukkhaCitta incentiva os clientes a devolverem as suas peças para serem arranjadas ou tingidas novamente e a marca oferece uma garantia de arranjos vitalícia.Do ponto de vista de Riadini-Flesch, este tipo de negócios proporciona novas formas de as pessoas perceberem que existe uma alternativa à moda extractiva. “Nunca penso que temos concorrentes”, diz ela. “Trata-se de mudar o paradigma.”Um dos seus últimos esforços materializou-se em Novembro de 2024, quando a SukkhaCitta abriu uma boutiquepop-up num centro comercial de luxo, a sua segunda loja em Jacarta. Embora as peças disponíveis para venda variem desde uma camisa índigo decorada com estrelas geométricas a um vestido amarelo, cuja cor deriva de um fruto dourado chamado jelawe que cresce em Java, um dos principais objectivos da loja é ser uma exposição itinerante da cadeia de fornecimento da SukkhaCitta. Frascos de vidro contêm solo das quintas dos aldeães. É possível ver o ciclo de vida de uma planta de algodão.E há um vídeo que mostra entrevistas com as ibus, mostrando o amor e o trabalho invisível por detrás de cada produto. Uma das apresentações mais impressionantes mostra como as peças da marca foram feitas especificamente de modo a regressarem à terra, em vez de acabarem em aterros sanitários: uma montra cheia de solo mostra um pedaço de algodão da SukkhaCitta degradar-se progressivamente ao longo de seis semanas, acabando por se transformar em fragmentos minúsculos que podem ser utilizados como composto vegetal. Riadini-Flesch espera levar a exposição ao estrangeiro, partilhando-a noutras lojas pop-up.Com o objectivo parcial de inspirar outras marcas, ela também está a acompanhar o funcionamento das suas práticas, adquirindo certificações de grupos de vigilância que monitorizam o trabalho justo e o impacto ambiental com a Nest, uma organização sem fins lucrativos que verifica normas de trabalho éticas, e a Science Based Targets, uma organização de acção climática que mede as emissões de gás com efeito de estufa. Recentemente, a SukkhaCitta tornou-se a primeira marca de moda indonésia a obter a certificação B Corp, atribuída a empresas empenhadas na transparência e na responsabilidade.A abordagem da marca assinala uma mistura notável de acuidade empresarial e propósito social, ambicionando crescer não só ao nível do lucro, como ao nível do “impacto”, diz Sarah Schwimmer, responsável pela B Lab Global, a organização sem fins lucrativos que atribui a certificação. “Ela está a mostrar um novo caminho de seguir em frente”, diz Schwimmer.Ao longo dos últimos quatro anos, a marca abriu mais quatro escolas de artesanato e lançou uma plataforma de materiais, para que outras pessoas possam utilizar os materiais de agricultura regenerativa da SukkhaCitta, e fez parcerias com onze aldeias. A empresa planeia ficar-se por aí, em vez de aumentar este número, preferindo aumentar os recursos que oferece a cada aldeia. Até à data, SukkhaCitta já ajudou as comunidades a transformarem cerca de 48 hectares de antigos terrenos industriais, com um impacto directo em mais de 1.500 vidas. Até 2030, espera alcançar uma área superior a 970 hectares e até 10.000 pessoas.Ao longo dos últimos quatro anos, a marca abriu mais quatro escolas de artesanato e lançou uma plataforma de materiais. Uma das coisas que a SukkhaCitta não vai fazer é seguir os calendários de moda sazonal tradicionais ou sobrecarregar as artesãs ou a terra que gere. Se a procura por determinado produto aumentar muito e os elementos não o permitirem, este será simplesmente considerado esgotado.“Não podemos ter um crescimento infinito num planeta finito”, diz Riadini-Flesch.É uma sabedoria partilhada pelas ibus, que também ensinaram a Riadini-Flesch uma filosofia que a inspira todos os dias: “Urip Iku Urup”. Nós vivemos para dar luz.Artigo publicado originalmente na edição de Outubro de 2025 da revista National Geographic.

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O que diz a ciência sobre o uso da testosterona por mulheres

Outrora considerada uma hormona exclusivamente para homens, a utilização de testosterona por mulheres tem vindo a tornar-se, discretamente,um dos tópicos mais discutidos da saúde feminina. “Ninguém falava em testosterona para mulheres até há meia dúzia de anos”, diz Susan Davis, líder na investigação sobre testosterona e saúde feminina e professora na Universidade de Monash. “Agora está em todo o lado.”À medida que mais mulheres procuram formas de lidar com os sintomas da menopausa – desde afrontamentos a nevoeiro cerebral e falta de libido – a testosterona está a ser aclamada como um remédio moderno para a energia, o humor e a concentração. No entanto, isso preocupa investigadores como Davis. “A maioria da comunidade médica não está a acompanhar a explosão da testosterona nas redes sociais”, diz ela. “Algumas pessoas serão prescrevê-la sem a conhecerem em profundidade.”No que diz respeito às mulheres, a dosagem, a segurança, os efeitos a longo prazo e os potenciais casos de utilização carecem de estudos mais aprofundados. O que faz ao certo a testosterona? Saiba que a ciência diz.Por que a testosterona pode ajudar algumas mulheresA testosterona pode ser mais conhecida pelo papel que desempenha na saúde masculina, mas também é fundamental para as mulheres. Produzida pelos ovários e pelas glândulas adrenais, ajuda a regular a libido, participa na manutenção da saúde dos ossos e dos músculos e contribui para o humor e a energia. “A testosterona tem sido a última hormona que estamos a tentar compreender um pouco melhor” [nas mulheres], diz Nora Lansen, médica de cuidados primários certificada em menopausa e directora clínica da Elektra Health.Após um grande estudo realizado no início da década de 2000 ter associado algumas terapias hormonais de substituição (THS) a um risco acrescido de desenvolver cancro da mama, AVCs e coágulos sanguíneos, o interesse nas THS caiu a pique e médicos e pacientes ficaram receosos – mesmo depois de serem reveladas falhas no estudo, diz Davis.Neste momento, a única utilização comprovável da testosterona nas mulheres é tratar a diminuição da libido após a menopausa, uma condição conhecida como perturbação do desejo sexual hipoactivo (DSH). “Todos os estudos, independentemente da sua dimensão, mostram benefícios face aos placebos”, diz Davis.Apesar disso, muitas mulheres que sentiram diminuição da libido não estão a receber o tratamento de que precisam. “Vão ao médico e dizem-lhes: habitue-se. Tem 60 anos. Estava à espera de quê? Isto é normal para a sua idade”, diz Davis. Se já tiver passado pela menopausa e a libido baixa estiver a causar-lhe insatisfação pessoal, ou na sua relação, vale a pena ponderar tratamento e a testosterona é uma das opções disponíveis, diz Lansen.Posto isto, a libido é complexa. Nem todas as mulheres beneficiariam do tratamento. Cerca de 60 por cento, sente alívio dos sintomas, diz Davis. O desejo também pode ser influenciado por outros factores – como o stress, as dinâmicas da relação, medicação e condição física em geral – que podem dificultar isolar as hormonas como possível causa. Para outras mulheres, a libido baixa não é um problema. “É uma experiência muito pessoal”, diz Lansen.Por enquanto, não existem dados suficientes para recomendar a utilização de testosterona para tratar a libido baixa nas mulheres antes da menopausa.O que a testosterona não pode fazer pelas mulheres (pelo menos, não por enquanto)Uma pesquisa rápida na Internet devolve-nos afirmações segundo as quais a terapia com testosterona pode aumentar a energia, fortalecer os ossos e ajudar a conservar o músculo, mas a ciência não suporta a maioria destas afirmações –pelo menos, não por enquanto.“Acho que existem pessoas às quais está a ser prescrita testosterona porque lhes foi dito que que vão sentir-se melhor e vão ficar com energia, vitalidade e melhor humor”, diz Davis. “Mas não dispomos de dados suficientes neste sentido.”Alguns estudos mostram melhorias ligeiras do humor nas mulheres submetidas a terapia com testosterona, mas Davis diz que não existem provas de que seja mais eficaz do que um placebo. Num estudo que monitorizou as alterações de humor, tanto as utilizadoras de testosterona como de placebo relataram efeitos semelhantes. Estudos recentes mostram que não existem riscos de declínio cognitivo nas mulheres com níveis baixos de testosterona no sangue.Quanto à densidade óssea, que diminui mais depressa após a menopausa, o papel da testosterona ainda não foi averiguado. Alguns estudos preliminares mostram uma associação positiva entre níveis adequados de testosterona e a densidade mineral óssea, mas isso não significa que o tratamento com testosterona melhore esses níveis. Davis está a trabalhar num estudo que observa o impacto directo da terapia com testosterona na densidade óssea. Os resultados só serão publicados em 2026 e, por enquanto, não existem provas suficientes para recomendar a sua prescrição para esse fim, diz ela.“Anunciar que a testosterona vai resolver todas essas coisas é muito prematuro e exagerado”, diz Lansen. “É inapropriado por enquanto porque não conhecemos a história verdadeira, por assim dizer.”Porque o tratamento com testosterona continua a ser uma zona cinzenta Embora a testosterona pareça ser promissora para algumas mulheres, transformar essa ciência num tratamento seguro não é linear. O principal desafio: não existe um protocolo especificamente feminino para prescrever a sua utilização.Embora a Austrália tenha uma fórmula para mulheres disponível há 20 anos, Portugal não dispõe de qualquer tratamento à base de testosterona direccionado para mulheres aprovado. Quando os médicos a prescrevem, é off-label – uma dose pequena da fórmula prescrita aos homens.“Tentámos calcular o que seria uma dose apropriada para uma mulher – cerca de um décimo de dose de um homem, porque sabemos que os homens têm cerca de 10 a 20 vezes mais testosterona no seu sistema do que as mulheres”, Lansen. “Tem sido esse o melhor palpite. E partimos daí.” Mas as suposições acarretam riscos. Se a dose for demasiado elevada, os efeitos secundários incluem pele oleosa, crescimento de pêlos corporais, acne e perda de cabelo. “Já vi pessoas seriamente afectadas por tratamentos com doses demasiado elevadas”, diz Davis.Os testes não facilitam as coisas. A testosterona funciona de maneira diferente nos homens e nas mulheres. Os médicos podem tratar os homens com baixa testosterona baixa medindo o nível da hormona no sangue, mas os níveis de testosterona nas mulheres flutuam naturalmente e não existe um limite definido para a “deficiência de testosterona”.“Muitas mulheres com baixa testosterona no sangue não têm quaisquer sintomas”, diz Davis. “E muitas mulheres com níveis ditos normais de testosterona no sangue e libido baixa ainda podem sentir os seus benefícios.”Além disso, sem qualquer supervisão institucional, a segurança das opções de tratamento varia. Davis diz que os géis e os adesivos são mais seguros, enquanto as formas orais e injectáveis acarretam maiores riscos, incluindo alterações no metabolismo do colesterol e potencial tensão cardiovascular.Como abordar a terapia de testosterona de forma seguraSe estiver a ponderar terapia de testosterona, os especialistas dizem que só pode fazê-lo sob a orientação de um médico – de confiança, de preferência. “É muito importante não fazer auto-diagnósticos ou tomar uma decisão com base em troca de informações com alguém na Internet sem qualquer tipo de acompanhamento”, diz Lansen.Existem muitas vias diferentes para o bem-estar sexual e a testosterona é apenas uma das facetas do tratamento. Outros tratamentos para a libido baixa e os sintomas da menopausa podem incluir terapia com estrogénio, ajustes ao estilo de vida, como redução de stress ou a prática de exercício físico e até medicamentos não hormonais. “Existem muitas opções e temos aprendido muito nos últimos anos e continuamos a aprender cada vez mais”, diz Lansen. “É excelente que esta conversa esteja a receber atenção e que haja tantas pessoas a falar nisto.”Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Lembra-se de “Uma casa na pradaria”? Hoje, falamos-lhe de um bioma mítico.

As pradarias são um dos biomas mais extensos e essenciais do planeta. Embora muitas vezes passem despercebidas em comparação com ecossistemas mais chamativos, como as florestas tropicais ou os recifes de coral, elas desempenhamfunções ecológicas vitais, desde armazenar carbono até alimentar milhares de espécies graças aos seus solos férteis.O QUE É UMA PRADARIA?Trata-se de um ecossistema dominado por gramíneas e poucas ou nenhuma espécie arbórea de grande porte. As pradarias desenvolveram-se há milhões de anos como resultado de mudanças climáticas que favoreceram ambientes mais secos e abertos e hoje em dia encontram-se em quase todos os continentes, excepto na Antártida. Cerca de um quarto da superfície continental da Terra é coberta por pradarias, mas muitas delas foram convertidas em campos de cultivo.E a verdade é que têm muitos nomes. Mudam de designação consoante a geografia: são chamadas de "prairies" no centro-oeste dos Estados Unidos, "pampas" na América do Sul, "estepes" na planície euro-asiática e "savanas" em África. O que as define e une é a erva como vegetação dominante; são essas paisagens intermédias onde as precipitações não são suficientes para manter uma floresta, mas impedem que o terreno se transforme em deserto.TIPOS DE PRADARIAS: TROPICAIS E TEMPERADASExistem dois tipos principais de pradarias: tropicais (savana) e temperadas. As pradarias tropicais estão localizadas em zonas próximas ao equador, como África, Austrália, Índia e América do Sul. Caracterizam-se por um clima quente durante todo o ano, com uma estação seca e outra chuvosa bem definidas. As savanas podem ter árvores dispersas e a sua vegetação está adaptada para suportar secas prolongadas. Neste ambiente, a fauna mais característica é composta por elefantes, girafas, leões, zebras, antílopes e hienas.No caso das pradarias temperadas, localizam-se em latitudes médias, principalmente na América do Norte, Eurásia, América do Sul, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia. Têm invernos frios, verões quentes e chuvas moderadas. A fauna mais emblemática deste ambiente é composta por bisontes, veados, raposas, cães da pradaria, corujas e coiotes.CLIMA E SOLOS: CHAVES PARA A VIDA NA PRADARIAAs pradarias apresentam chuvas sazonais, entre 20 e 90 cm anuais, dependendo do tipo. As temperaturas variam pouco nas tropicais, mas são extremas nas temperadas, com verões quentes e invernos gelados. O mais marcante destes solos é que são ricos em nutrientes; as raízes profundas e extensas das gramíneas impedem a erosão, armazenam carbono e filtram a água. Nas pradarias temperadas, o solo é preto e fértil (chernozem, o solo mais prolífico do planeta), enquanto nas tropicais é mais poroso e pobre em húmus.BIODIVERSIDADEEstas paisagens abrigam uma grande diversidade de espécies adaptadas a um ambiente aberto (talvez monótono), com pouco abrigo e condições climáticas variáveis. Nas pradarias tropicais, a fauna evoluiu para se mover entre ervas altas. Por isso, os seus grandes herbívoros e predadores coexistem num equilíbrio delicado. Nas pradarias temperadas, a biodiversidade manifesta-se numa incrível variedade de insectos, aves migratórias e pequenos mamíferos subterrâneos.AMEAÇASInfelizmente, as pradarias estão entre os ecossistemas mais ameaçados do planeta. Estima-se que mais de 70% das pradarias da América do Norte tenham sido convertidas em terras agrícolas, sem ir mais longe. As suas principais ameaças são a expansão agrícola e pecuária intensiva, a urbanização, o sobrepastoreio, os incêndios mal geridos, a introdução de espécies invasoras ou as alterações climáticas e a desertificação que enfraquecem estes ecossistemas.COMO PODEMOS PROTEGER AS PRADARIAS?Nenhum outro habitat é tão útil para o ser humano, do ponto de vista da agricultura, como as pradarias. Por isso, a sua conservação é uma questão realmente urgente. É então fulcral reintroduzir espécies nativas e eliminar as invasoras, evitar o uso excessivo de pesticidas e fazer a rotação de culturas, evitar o sobrepastoreio e respeitar os ciclos naturais, aumentar a consciência pública sobre os benefícios das pradarias e proteger áreas naturais, criar reservas e promover incentivos para a conservação, ao mesmo tempo que se sensibiliza a população.

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Centum Cellas: a sombra e o segredo

A velha torre fazia sombra à junta de bois que lavrava os terrenos que a envolviam. Subitamente, o arado susteve-se em algo que quebrou. Surpreendido, o agricultor observou o interior de uma enorme talha repleta de ossos e carvões.Estávamos em 1951 e a notícia do achado chegou a Lisboa, à Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), através de um ofício enviado pelo então presidente da câmara de Belmonte. A Guarda Nacional Republicana tomou conta da ocorrência e guardou os ossos. A talha terá sido oferecida a Adriano Vasco Rodrigues que registou que “por falta de espaço e de interesse do Museu Regional da Guarda, ao qual se destinava, porque não o podia ter em casa, pois não me cabia na porta, foi transportado para o Seminário Maior do Porto”.  Não era o início mais promissor para um achado que daria que falar.A antiguidade e o mistério deste lugar eram, há muito, reconhecidos pelas populações da vizinha povoação de Colmeal da Torre, que, ao longo dos tempos, foram tecendo um imaginário rico em lendas. Contava-se, por exemplo, que a torre teria sido erguida por uma mulher carregando o filho às costas, que nas suas entranhas se ocultaria um bezerro de ouro ou ainda que, em tempos remotos, a sombra de Centum Cellas se projectava tão alta e imponente que alcançava a serra da Estrela.Na memória da comunidade, ainda estavam os trabalhos realizados em 1943 pela DGEMN que implicaram a “escavação cuidadosa para desaterro da torre, incluindo a remoção de terras e a consolidação de paredes de cantaria existentes”. Para estudar esses achados e estudar o misterioso monumento, classificado como Monumento Nacional em 1927, foi chamado Aurélio Ricardo Belo, médico militar e arqueólogo amador, nascido no Fundão e residente em Torres Vedras.Uma das lendas em torno do Centum Cellas dizia que nas entranhas da torre se ocultaria um bezerro de ouro. AS INTERPRETAÇÕESEm Setembro de 1958, Ricardo Belo conduziu algumas “prospecções, abrindo uma vala a 14 metros da face oriental da Torre, em direcção perpendicular à parede, com o objectivo de chegar ao local onde há anos foi encontrada uma grande talha de barro contendo alguns ossos, terra negra e vários objectos”. Os trabalhos de Ricardo Belo colocaram, assim, a descoberto alguns muros e permitiram obter espólio arqueológico que revelou a importância deste monumento.O investigador concluiu que estas seriam as ruínas de uma mansio, ou seja, uma estação de repouso e de descanso de viajantes civis e militares que circulavam na via que ligava a grande capital da Lusitânia, Emerita Augusta (Mérida) a Bracara Augusta (Braga). Esta é uma das muitas interpretações que, ao longo dos tempos, têm sido aplicadas a estas ruínas e que transformam este sítio num dos mais intrigantes mistérios da arqueologia portuguesa. Mas há outras.O fascínio hipnotizador das ruínas leva os investigadores a defenderem acerrimamente as suas interpretações. Enquanto Pinho Leal, autor de Portugal Antigo e Moderno, as interpretou como uma atalaia, para Adriano Vasco Rodrigues, arqueólogo recentemente desaparecido, elas eram o que restava de um pretorio (quartel-general) de um acampamento militar. Para o general João de Almeida, uma prisão com cem celas e, para Virgílio Correia, um santuário isolado, uma torre com cem céus. Em 1974, Manuel João Calais publicou A Geometria de Centum Cellas, defendendo que a torre se distinguia das construções romanas habituais por revelar proporções de inspiração grega e egípcia, fundadas na proporção áurea e em traçados geométricos ausentes do cânone vitruviano.Mais recentemente, Amílcar Guerra, professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Thomas G. Schattner, investigador do Instituto Arqueológico Alemão de Madrid, têm defendido que Centum Cellas corresponde ao fórum de uma cidade romana, possivelmente Lancia Oppidana, sendo a torre interpretada como o templo que presidia ao espaço cívico.Inquestionável é que foi com os trabalhos efectuados entre 1993 e 1998 pela arqueóloga Helena Frade que estas ruínas ganharam projecção. Como resultado desses anos de investigação, a arqueóloga defendeu a ideia de que Centum Cellas foi uma villa de prestígio, com funções administrativas e de gestão de recursos e essa teoria foi defendida também por Jorge de Alarcão, uma das mais eloquentes autoridades sobre a época romana em Portugal.Apostada na musealização deste conjunto monumental, a autarquia de Belmonte promoveu entre 2018 e 2024 novos trabalhos arqueológicos, mas também de limpeza, restauro e consolidação das ruínas, criando um circuito de visita e um centro de interpretação da autoria da arquitecta Alice Tavares. Hoje, a visita proposta decorre de forma mais fluida e repleta de suportes informativos. Os conteúdos reflectem as opções teóricas do arqueólogo Pedro C. Carvalho, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.Vultos da arqueologia portuguesa como Amílcar Guerra, Jorge de Alarcão ou Helena Frade legaram-nos diferentes interpretações sobre este complexo monumental. O triunfo do tempoNo início do século I da nossa era, os romanos chegaram a este local com uma visão clara: edificar um monumento que representasse de forma marcante o poder do Império na região. Escolheram este ponto elevado, que dominava o vale do rio Zêzere e oferecia um campo de visão para a serra da Estrela, posicionando-o também ao longo de uma via estratégica. A construção deste edifício causou decerto grande impacte nas comunidades indígenas locais. O estabelecimento do estaleiro, com os seus imponentes guindastes para elevar os silhares, alguns pesando até duas toneladas e meia, e a magnitude do edifício central, devem ter sido um espectáculo impressionante. Uma nova era iniciava-se na região.A edificação do complexo deve ter estado associada à exploração mineira da região, rica em ouro, mas sobretudo em estanho. Foi nesse contexto que o território passou a ser ocupado por colonos que, acompanhados pelo exército, procuravam os melhores recursos naturais, em especial os mineiros, fundando ao mesmo tempo uma rede estruturada de povoações.Esta região da Beira Interior começou a ser ocupada e explorada à maneira romana só a partir do final do século I a.C. A construção de Centum Cellas, foi, aliás, um dos primeiros sinais desse tempo novo, de um efectivo domínio romano, que transportou consigo um conjunto de profundas mudanças. Durante o primeiro século da nossa era, foram surgindo, um pouco por todo o lado, muitas quintas, pertencentes a famílias mais ou menos abastadas, que foram  transformando a paisagem rural, nomeadamente com a introdução de novos cultivos, como o da oliveira, mas também da vinha e, mais tarde, do centeio.A construção de Centum Cellas, no final do século I a.C., foi um dos primeiros sinais de um tempo novo, de um efectivo domínio romano. É provável, ainda que não confirmado arqueologicamente, a presença de um núcleo com feições urbanas, assumindo a capitalidade da região, junto de Orjais (Covilhã). É precisamente em Orjais, já na encosta da serra da Estrela, voltado ao amplo vale do Zêzere, que se encontra a ruína de um excepcional templo de época romana. O templo de Orjais e a torre de Centum Cellas eram edifícios contemporâneos que se olhavam directamente à distância. Seriam imagens de marca de um novo tempo, o do Império Romano.Ver e ser vistoNo topo de uma colina, ergue-se, majestosa, a secção ainda visível deste imponente edifício da época romana. A datação já não é questionada: remonta à Antiguidade clássica. Do corpo do edifício, porém, subsiste apenas a parte intermédia, que, solitária, se desenha como uma torre contra o horizonte.No século I, os romanos escolheram este local com o claro propósito de dominar um vasto território sobre o rio Zêzere, mas esta escolha permitia, igualmente, que o edifício fosse visto. A mensagem era clara: nós, os romanos, chegámos e somos nós quem manda.O edifício central, construído com perfeita cantaria de granito, é uma obra-prima da engenharia romana. A sua construção exigiu um profundo saber técnico e um enorme investimento financeiro. As peças de grande volume encaixam umas nas outras como não costuma acontecer nas villae, “parecendo mais próprias de fortalezas ou de grandes edifícios públicos”, como reconheceu Helena Frade em 2005.É, portanto, plausível que se tenha tratado de uma obra pública, financiada pelo erário romano. Em termos construtivos, a primeira acção dos romanos foi a escavação do topo da colina para encaixar o edifício, criando assim um piso subterrâneo. Simultaneamente, foram cortadas em pedreiras próximas as pedras depois transportadas, talhadas e cuidadosamente ajustadas para erguer as maciças paredes do monumento.Em termos arquitectónicos, podemos dividir o edifício central em duas partes: o primeiro piso, muito iluminado, repleto de janelas e rodeado de extensas varandas, aberto para o exterior, e um piso de tipo cave, com pequenas salas quase sem luz.O edifício central, construído com perfeita cantaria de granito, é uma obra-prima da engenharia romana.O primeiro piso talvez se destinasse às actividades administrativas e residenciais do responsável, porventura um “procurador”, que faria a gestão dos recursos mineiros deste território. Nesta interpretação, o enigmático piso inferior, repleto de pequenas salas sem janelas e todas com uma porta, seria um espaço usado para acondicionar produtos, alguns agrícolas, mas, sobretudo, seria o local onde, provavelmente, se guardaria o minério explorado na região. Talvez assim se expliquem as pequenas salas com estreitas portas e ausência de janelas. Talvez também esta seja a explicação para a colocação de dois torreões, entretanto desaparecidos, à entrada deste piso.Entre o fim do século I e o século II, o edifício terá perdido a sua função original, reflectindo, provavelmente o esgotamento dos recursos mineiros. Nesta altura, começaram a ser construídas novas dependências relacionadas agora com a exploração agrícola. O desenvolvimento estrutural em forma de pórtico com um amplo pátio central indicia ter havido uma fase em que este sítio se transformou numa villa que, por sua vez, se terá transfigurado num pequeno vicus no século IV. O centro deixava agora de ser a grande construção, a torre, para ser o pátio central e o pórtico envolvente.De facto, tudo leva a crer que se terá formado uma pequena povoação em torno do edifício principal de Centum Cellas. As evidências podem ser encontradas nos vestígios de lagares rupestres e noutros existentes nas imediações, mas sobretudo na informação gravada num altar (ara), onde Lucius Caecilius Viator nos diz que dedicou essa lápide a Vénus e a Minerva em favor da povoação que se formou em redor de Centum Cellas e que terá estado sob a sua alçada. Nessa povoação (vicus), poderia haver também uma estalagem que funcionaria como estação de serviço da principal estrada que cruzava em época romana a actual Beira Interior.A mensagem era clara: nós, os romanos, chegámos e somos nós quem manda.O último suspiroO vicus de Centum Cellas não ficou à margem do processo de cristianização do Império. O exemplo disso é a existência da Capela de São Cornélio sensivelmente a meio do complexo arqueológico com a tradicional orientação leste/oeste da qual apenas restam os vestígios da cabeceira e um conjunto de nove sepulturas escavadas na rocha, da Alta Idade Média. Não deixa de ser interessante referir que em Itália, a localidade de Civitavecchia teve outrora a denominação de Centumcellae. Esta importante cidade portuária surge descrita por Plínio, o Novo, no século II d. C como uma cidade que o imperador Trajano visitava recorrentemente. No entanto, a relação com Centum Cellas, em Belmonte, estende-se também ao domínio religioso. A hagiografia de São Cornélio refere que este, no final do seu pontificado papal, foi desterrado para a localidade de Centumcellae, devido às perseguições movidas pelo imperador Víbio Treboniano Galo, onde veio a falecer em 253.Certo é que Centum Cellas de Belmonte  teve papel activo mesmo após o fim do Império Romano. Disso nos dá conta a carta de foral recebida em 1194 das mãos do bispo Dom Pedro de Coimbra. A torre dominava então a paisagem e, muito possivelmente, as antigas vias romanas que ainda seriam o principal canal de comunicação. Assim, a posição estratégica da torre, agora convertida em atalaia, foi fundamental para controlar defensivamente a região, motivo pelo qual todos aqueles que por aqui passassem teriam de pagar portagem.A torre estava, então, acompanhada pela capela que, até à época moderna serviu o lugar. A capela, aliás, encontrava-se ainda aberta ao culto no século XVIII, altura em que as Memórias Paroquiais registam a realização, no campo vizinho, de uma romaria no dia 16 de Setembro, acompanhada, ao que tudo indica, de uma feira sujeita ao pagamento de determinados direitos.Na Idade Média, a posição estratégica da torre, convertida entretanto em atalaia, foi fundamental para controlar defensivamente a região. Associada a esta capela, encontra-se uma das mais fantásticas lendas da região: os pastores tinham por hábito oferecer os chifres dos animais ao santo pela protecção e salvaguarda do gado de doenças, enchendo as paredes da capela de chifres. Certo dia, o bispo da Guarda, ao visitar o templo, viu aquele impressionante cenário e mandou retirar os chifres e lançá-los ao rio Zêzere. Ao regressar ao paço na Guarda, começou a sentir fortes dores de cabeça acompanhadas do crescimento de protuberâncias na testa. Em pânico, mandou recolocar os chifres na capela, tendo sido o remédio santo para o  desaparecimento dos sintomas.Hoje, pouco mais resta do que ruína: é a materialização de dois milénios de história, de memórias e de lendas. Centum Cellas é mistério, poder e fascínio… e um dos monumentos mais singulares da arqueologia portuguesa. Artigo publicado originalmente na edição de Outubro de 2025 da revista National Geographic.

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Peixe (literalmente) fresco

Nas margens do lago Ontário, um visão-americano segura o seu troféu com expressão de orgulho: um peixe coberto de gelo, recém-capturado nas águas frias. O fotógrafo e cientista Jeremy Bridge-Cook conseguiu imortalizar o momento, em pleno Inverno, quando o gelo começa a formar uma camada sobre rios e lagos. Nestas condições extremas, a caça exige reflexos rápidos e um olfato impecável. As martas são especialistas nisso: nadam com facilidade mesmo sob o gelo e podem permanecer submersas por mais de um minuto enquanto procuram presas escondidas.Assim, após um dia entre neve e água gelada, o visão regressa à sua toca com um prémio entre os dentes. Esta fotografia testemunha uma combinação de ternura e crueza, que lembra até que ponto a vida nas latitudes altas se move num equilíbrio delicado.

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A outra grande muralha da China também é impressionante – e cheia de história

Estamos em meados do Outono e é o fim-de-semana do festival de Xi’an. Todas as estradas parecem convergir no portão sul da muralha da cidade. Situada na província de Shaanxi, no centro da China, Xi’an é conhecida principalmente pelo museu que alberga o exército de guerreiros de terracota encomendados pelo primeiro dirigente chinês para protegê-lo no Além. Nesta noite de sábado, porém, é na muralha que se concentra toda a acção.As famílias dão os seus passeios nocturnos, acompanhadas por crianças que gritam e riem. Há vendedores e músicos de rua, turistas a andar de bicicleta, bancas de comida e lojas de recordações. Casais envergando vestes vermelhas de aspecto régio murcham sob as luzes estroboscópicas enquanto participam em sessões fotográficas de noivos. Outros fotógrafos captam dezenas de jovens mulheres vestindo hanfu – trajes tradicionais da era Tang que, subitamente, se tornaram moda entre a juventude chinesa.Há dezenas de torres de vigia, torreões, parapeitos e pavilhões enfeitados ao longo de toda a muralha. Quando a noite cai e as lanternas vermelhas e as luzes se acendem, o ambiente parece saído de um conto de fadas.As muralhas das cidades da ChinaQuando as pessoas mencionam ‘muralha’ no contexto da China, costuma ser para se referirem à estrutura gigantesca conhecida como Grande Muralha da China. Mas existem dezenas, ou mesmo centenas, de muralhas de cidades em todo o país: em Pequim, Nanjing, Fenghuang, Pingyao e Xi’an, entre outras. “A palavra para cidade na China, cheng / 城, significa cidade murada”, diz Kenneth Swope, professor de história na Universidade de Southern Mississippi e especialista em história militar imperial chinesa.Yinong Cheng, professor na Faculdade de História e Estudos Arquivísticos da Universidade de Yunnan, acrescenta que as muralhas da cidade tendiam a desempenhar três funções principais: defesa, protecção contra cheias e demonstração do poder imperial.Várias destas muralhas, que remontam às dinastias Ming e Qing, encontram-se agora na lista de candidatas a Património Mundial da UNESCO. A muralha de Xi’an – originalmente construída naera Tang (618 – 907 d.C.) e ampliada pela dinastia Ming a partir de 1370 – é considerada a mais completa e bem preservada. A muralha estende-se ao longo de 13,7 quilómetros e mede 12 metros de altura e 15 metros de largura. Tem quatro portas principais viradas para cada ponto cardeal, 14 portões intermédios mais pequenos e está rodeada por um fosso.Swope também diz que, quanto mais poderosos eram os dirigentes, mais altas e impressionantes eram as muralhas. Isto faz todo o sentido no que diz respeito a Xi’an (antiga Chang’an), uma cidade importante na época imperial, que foi capital das dinastias Han, Sui, e Tang. Xi’an também é o ponto de partida de uma rede de rotas de comércio conhecida como Rota da Seda. Foi uma cidade planeada, construída como uma grelha perfeita e delimitada pela muralha, que a envolve num rectângulo completo. Ainda hoje é possível caminhar sobre toda a muralha sem interrupções.História da muralha de Xi’an“Sempre foi um entreposto importante, não só para transacções comerciais, como diplomáticas. Não há dúvidas de que Chang’an já estava murada no início da época imperial, no século III d.C.”, diz Hilde De Weerdt, professor de história chinesa e global moderna em KU Leuven, na Bélgica. “Por isso, quando dizemos que é uma muralha do século XIV, referimo-nos ao momento mais antigo que conhecemos para qualquer remodelação (significativa)”.A razão para a grandiosidade de muralha deriva da importância estratégica de Chang’an, aliada à necessidade de dinastia Ming de projectar a autoridade do seu estado através deste tipo de estruturas. “Não consigo imaginar uma invasão estrangeira que justificasse esta (muralha) porque nem sequer se encontra perto de alguma fronteira importante”, diz Lars Laamann, professor assistente de história na SOAS University of London. Segundo Swope, a dinastia Ming assinalou o auge da “arquitectura imperial”, que nos deixou construções icónicas como a Cidade Proibida e o Templo do Céu em Pequim. Sucessores imediatos dos nómadas mongóis, os dirigentes Ming encaravam estas muralhas como uma forma de reconstruir o orgulho chinês.A muralha no presenteO objectivo original destas muralhas pode ter sido conter estas cidades ou a população dentro do seu perímetro. Ao longo do tempo, porém, as cidades cresceram para além destas fronteiras, transformando as muralhas em anacronismos no meio da cidade. É impossível fugir às vistas e sons da vida moderna do alto da muralha de Xi’na – arranha-céus e luzes de néon, carros a buzinar e peões a correr. A seguir ao exército de terracota, a muralha é agora uma das atracções turísticas mais populares de Xi’an. Já recebeu centenas de visitantes famosos, incluindo Bill Clinton, Michelle Obama e Mark Zuckerberg, que correram à chuva sobre a muralha.A muralha de Xi’an esteve em risco de ser demolida na década de 1950, no âmbito da narrativa chinesa do Grande Salto em Frente. Cheng diz que, embora a demolição generalizada tenha começado antes disso, perto do final da dinastia Qing (cerca de 1912), a parede permaneceu praticamente intacta graças ao estatuto de Xi’an como antiga capital histórica. O verdadeiro desafio veio mais tarde.“A história da conservação leva-nos desde a dinastia Ming a Mao Tsé-Tung”, diz o Dr. Laamann, referindo-se ao famoso casal de historiadores de arquitectura Lin Huiyin e Liang Sicheng. “Houve uma luta de poderes no Partido Comunista quando uma facção quis livrar-se das estruturas medievais antigas do país por achar que não havia lugar para esses vestígios do passado no mundo moderno.” Lin e Liang lutaram pela preservação de muralhas urbanas em todo o país – perderam em Beijing, mas venceram em Xi’an.De Weerdt destaca que a luta entre a conservação e a modernização é universal, referir como exemplo as muralhas medievais de França e Itália que foram derrubadas no final do século XIX e início do século XX. “Muito daquilo que vemos actualmente da muralha de Xi’an foi reconstruído com materiais contemporâneos e através de maneiras de pensar contemporâneas”, explica. No entanto, esta versão da muralha alia a perspectiva cultural à social: residentes e turistas gostam de apreciar o legado da cidade enquanto a usam como espaço urbano público.Como se deslocarXi’an está ligada às principais cidades da China, sendo possível lá chegar de avião ou comboio de alta velocidade. Também existem voos directos desde o Aeroporto Internacional de Xianyang, em Xi’an, para algumas cidades asiáticas como Hong Kong, Seul, Kuala Lumpur e Beijing. Quando chegar a Xi’an, pode deslocar-se facilmente a pé ou de metro.

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A fronteira do azul: entre a beleza e o colapso

A exibição especial do documentário Oceano, promovido pela Fundação Oceano Azul em parceria com a National Geographic Pristine Seas e com a Revive Our Ocean, foi tudo menos um evento. Foi um espelho. Um espelho que devolve, em imagens deslumbrantes e por vezes dolorosas, o estado do planeta e a urgência de o proteger.&;Na tela, Sir David Attenborough voltou a lembrar-nos que não há distância entre a beleza e o colapso. O filme é, assim, um mergulho fundo, não apenas nas águas que cobrem dois terços do nosso planeta, mas também nas contradições humanas que nelas se reflectem. Como diziam os intervenientes antes do visionamento: “Vai fazer sorrir, mas também vai dar um murro no estômago”. Mostra o esplendor das espécies, o poder regenerador da natureza e, em contraste, as práticas que a destroem. Mas o documentário não se detém apenas na ferida – mostra também a cicatrização possível.O filme é um mergulho fundo, não apenas nas águas que cobrem dois terços do nosso planeta, mas também nas contradições humanas que nelas se reflectem. Como diziam os intervenientes antes do visionamento: “Vai fazer sorrir, mas também vai dar um murro no estômago”. Mostra o esplendor das espécies, o poder regenerador da natureza e, em contraste, as práticas que a destroem. Mas o documentário não se detém apenas na ferida aponta também a cicatrização possível.Entre diferentes testemunhos, ficou clara uma ideia que atravessa o ecrã e chega à consciência: cuidar do oceano não é uma escolha estética, é uma questão de sobrevivência. Duas palavras foram repetidas vezes e vezes sem conta ao longo da tarde. Um verbo e um substantivo, ambos importantíssimos: “proteger” e “esperança”.“Oceanos” mostra o esplendor das espécies, o poder regenerador da natureza e, em contraste, as práticas que a destroem.Há quem veja no mar apenas uma superfície de azul e movimento. Enric Sala, biólogo marinho, explorador da National Geographic e fundador do programa Pristine Seas, com quem tivemos oportunidade de falar, vê um espelho onde a humanidade se confronta com os seus próprios limites. “O maior obstáculo é humano, como o são também as soluções”, diz. “Temos a ciência e as razões económicas para recuperar ooceano. O que falta é liderança política para o fazer acontecer.”É esse o ponto de partida de Ocean. O filme de que Sala é produtor executivo e conselheiro científico revela a beleza dos ecossistemas marinhos, mas também o peso das ameaças que os corroem. “A maioria dos documentários sobre o oceano mostra a maravilha, mas não o perigo”, explica. “Aqui quisemos mostrar as duas faces: a beleza e o impacto da sobrepesca – e, ao mesmo tempo, uma solução prática: as áreas marinhas protegidas.”Sala fala com a serenidade e experiência de quem passou uma vida dentro de água. “Aprendi a ser humilde diante de forças maiores do que nós”, diz. “Os humanos podem sentir-se todo-poderosos, mas sem o oceano não haveria humanidade. Por mais extraordinários que sejam os nossos limites, desvanecem diante do poder do mar – o de dar vida e o de a retirar.”“Temos a ciência e as razões económicas para recuperar o oceano. O que falta é liderança política para o fazer acontecer.”(Enric Sala, líder do Pristine Seas)Pristine Seas, o projecto que lidera desde 2008, nasceu dessa consciência. Num mundo onde a destruição avança depressa e a protecção acontece devagar, a equipa de Sala trabalha com governos e comunidades locais para criar reservas marinhas em zonas intocadas ou ameaçadas. “Vimos o oceano renascer em áreas onde se proibiu a pesca”, diz. “Isso dá-nos esperança e faz-nos continuar.”Mas o biólogo sabe que nem a ciência, nem a beleza, chegam sozinhas para mudar o rumo. “Precisamos de emoção e de ciência. Coração e cérebro”, resume. E, por vezes, para passar a mensagem é preciso abrir vias de comunicação e entusiasmar para depois impulsionar a acção: “Para proteger o oceano, é preciso que quem decide aprenda a amá-lo. Nada é mais eficaz do que levá-los ao mar, mergulhar com eles, mostrar-lhes a vida com os próprios olhos. Como não podemos levar toda a gente connosco, fazemos o oposto: levamos o mar até eles. Os nossos filmes unem emoção, espanto e factos científicos. Só depois de as pessoas se apaixonarem pelo oceano é que lhes mostramos a razão e a economia da sua protecção.”  “[Com o Pristine Seas,] Vimos o oceano renascer em áreas onde se proibiu a pesca. Isso dá-nos esperança e faz-nos continuar.”(Enric SALAS)O objectivo está traçado: proteger pelo menos 30% do planeta – terra e mar – até 2030.“O 30x30 já é a prioridade global”, afirma. “A par da neutralidade carbónica até 2050, são as duas metas mais importantes para a humanidade. Tudo o resto depende disso: de um mundo natural que continue a funcionar e a manter-nos vivos.”O oceano ainda respira. A pergunta que fica, e que o filme lança ao público que se atreve a olhá-lo com a razão e o coração, é se teremos a coragem política e cívica para respirar com ele.

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O homem da máscara de ferro

Poucas figuras despertaram tanto fascínio literário como o "homem da máscara de ferro", um prisioneiro anónimo que, segundo a lenda, passou décadas preso nas masmorras de França sem que ninguém conhecesse o seu rosto. A imagem é tão poderosa que inspirou escritores como Voltaire e Alexandre Dumas e, mais tarde, Hollywood. Mas o que há de verdade nessa história? Quem era realmente aquele homem e por que motivo a sua identidade foi tão zelosamente ocultada?Os primeiros testemunhos documentados datam do reinado de Luís XIV. Em 1698, um prisioneiro foi transferido para a fortaleza da Bastilha, em Paris, vindo de outra prisão no sul da França chamada Pignerol. As ordens do monarca eram rigorosas: o recluso deveria permanecer isolado, sob vigilância constante, e ninguém deveria saber o seu nome nem ver o seu rosto. Quando morreu em 1703, foi enterrado sob o nome falso de Marchioly, o que só veio aumentar o mistério.O mito da máscara surgiu pouco depois. Alguns cronistas afirmavam que o prisioneiro usava sempre uma máscara de ferro, embora documentos posteriores indiquem que provavelmente era de veludo preto, muito mais prática e menos cruel. Mesmo assim, o símbolo era irresistível: um homem condenado não só à prisão, mas ao desaparecimento da sua identidade, reduzido a um fantasma com o rosto oculto.QUEM ERA O PRISIONEIRO MISTERIOSO?Ao longo dos séculos, foram propostas dezenas de teorias sobre quem era aquele homem. Uma das mais famosas, impulsionada por Voltaire, sustenta que se tratava do irmão gémeo de Luís XIV, escondido para evitar disputas sucessórias. Dumas retomou essa ideia no seu romance O Visconde de Bragelonne, última parte da trilogia de D'Artagnan, onde transforma o prisioneiro no verdadeiroherdeiro do trono da França. No entanto, embora literariamente irresistível, a hipótese carece de provas históricas.Outras teorias apontaram para personagens reais, embora menos conhecidas: Eustache Dauger, um servo envolvido em escândalos políticos e financeiros da corte; ou o conde de Ercole Antonio Mattioli, diplomata italiano que traiu a França em negociações secretas. Foi até mesmo sugerido que se trataria do próprio D'Artagnan, que era capitão dos mosqueteiros e supostamente teria morrido no cerco de Maastricht. A maioria dos historiadores actuais inclina-se para Dauger, pois existem registos que coincidem com as transferências e a custódia de "um prisioneiro misterioso" sob o seu nome. No entanto, o motivo do seu confinamento e o empenho em manter a sua identidade secreta continuam sem explicação.O isolamento extremo e o sigilo total eram por vezes aplicados a prisioneiros do Estado cujas revelações podiam comprometer a coroa. No entanto, neste caso, este homem anónimo passou à história graças ao facto de outros terem escrito sobre ele. O mito encarnava o lado negro daquele esplendor cortesão que a corte projectava: um homem podia perder não só a vida, mas também a sua própria identidade, vítima da razão de Estado.Até hoje, o mistério continua sem solução; os arquivos, estudados repetidamente, não oferecem uma resposta definitiva. O "homem da máscara de ferro" (ou de veludo) tornou-se uma metáfora universal do poder, do segredo e da perda de identidade. No final, o mais inquietante desta história não é não saber quem era aquele homem, mas lembrar que o poder absoluto do rei podia facilmente apagar a existência de qualquer pessoa, mesmo que fizesse parte da alta sociedade.

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Os furacões estão a aumentar a sua intensidade, e a causa é a alteração climática

A temporada de furacões de 2025 está no seu auge. De acordo com uma nota da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA, na sigla em inglês), desde Maio previa-se que havia 60% de probabilidade de que esta fosse mais intensa do que o habitual. Um exemplo disso pode ser o furacão Melissa, que já atingiu a categoria 5 e ameaça atingir a Jamaica nesta terça-feira, 28 de Outubro, depois de causar estragos em Cuba e na ilha de São Domingos.A natureza já mostrou o seu lado mais feroz nos furacões que atingiram o Atlântico em 2024. Nesse ano, marcado por um calor recorde nas temperaturas oceânicas, os cientistas confirmaram que os furacões foram mais rápidos, mais fortes e, em muitos casos, mais devastadores do que em qualquer outra temporada recente. À medida que as temperaturas globais aumentam impulsionadas pela actividade humana, a relação entre oceanos quentes e tempestades violentas torna-se cada vez mais evidente. É o que de facto sugeriu um estudo recente.Os investigadores analisaram como o aquecimento antropogénico dos oceanos influenciou a intensidade dos furacões dos últimos cinco anos, incluindo os de 2024. Os resultados foram impressionantes: cada furacão registado nesse período sofreu um aumento significativo na velocidade máxima dos seus ventos devido às temperaturas oceânicas elevadas causadas pelas alterações climáticas. MOTOR DE TEMPESTADES INTENSIFICADASO quadro de atribuição implementado neste estudo combinou observações, modelos climáticos e teoria de intensidade potencial para criar cenários hipotéticos num mundo sem alterações climáticas. Ao comparar esses cenários com a realidade, os cientistas determinaram que as temperaturas da superfície do mar (SST) estavam até 1,4 °C mais quentes nas trajectórias dos furacões de 2024 devido ao aquecimento global. Essas temperaturas extremas tornaram os furacões entre 14 e 45 quilómetros por hora mais rápidos.Entre as descobertas mais alarmantes está o facto de que as temperaturas elevadas tornaram tempestades como Helene e Milton notavelmente mais intensas, com aumentos de velocidade de 26 e 37 km/h, respectivamente. Esses números não são meras estatísticas; eles representam o limiar entre danos graves e desastres catastróficos para comunidades costeiras vulneráveis.UM IMPACTO CRESCENTE E DESIGUALA análise não se concentrou apenas no presente, mas também fez uma revisão de temporadas passadas, como a de 2019 a 2023, demonstrando que as alterações climáticas intensificaram 84% dos furacões recentes. Em média, os ventos máximos desses fenómenos foram 29,9 km/h mais rápidos do que teriam sido num mundo sem o aquecimento induzido pelo homem. Este aumento não é trivial; implica uma capacidade destrutiva significativamente maior em termos de inundações, tempestades ciclónicas e danos causados por ventos extremos.A investigação também destaca o papel das temperaturas recorde na probabilidade de eventos extremos. Segundo os cientistas, as condições de calor que alimentaram os furacões em 2024 eram até 800 vezes mais prováveis num clima influenciado pelas actividades humanas. Este número destaca o nível de intervenção climática que alcançámos e como isso afecta directamente os fenómenos naturais.Assim, à medida que as águas do Atlântico ficam cada vez mais quentes, o risco de furacões mais fortes e destrutivos cresce em paralelo. Isso ressalta a importância de agir com urgência para mitigar as emissões de gases de efeito estufa e limitar o aquecimento global. As comunidades costeiras, expostas a essa nova realidade, deverão reforçar seus planos de adaptação e resiliência para enfrentar um futuro cada vez mais imprevisível.

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Preparando o ninho

Com os seus longos pescoços inclinados sobre a água, um casal de grous e os seus filhotes parecem reflectir-se na água como num espelho enquanto arrumam o ninho. Os grous do Canadá são famosos pelos seus fortes laços familiares: eles formam casais para toda a vida e colaboram estreitamente no cuidado dos filhotes. Os pais ensinam os seus filhotes não apenas a procurar comida, mas também a mover-se com prudência. As crias podem andar e nadar poucas horas após o nascimento, seguindo imediatamente os seus progenitores em busca de alimento entre os juncos e a margem. No seu reflexo compartilhado, a natureza mostra-se como um retrato perfeito de ternura e equilíbrio.

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Fotorreportagem: Dar o corpo ao manifesto

Existem, actualmente, em Portugal continental 14 centros de recuperação de fauna selvagem, terrestre ou marítima, que tratam de devolver à natureza... a sua própria natureza. É no Algarve, mais precisamente em Olhão, que encontramos uma das mais importantes zonas húmidas do país, a Ria Formosa, onde está inserido um desses hospitais: o RIAS – Centro de Recuperação de Animais Selvagens. Este espaço é gerido por uma associação sem fins lucrativos responsável pelo tratamento médico veterinário, investigação científica, monitorização da saúde pública e campanhas de sensibilização, contando com uma modesta equipa de sete elementos a tempo inteiro, além de voluntários, apoios e donativos para as suas operações.UM POUCO DE CONTEXTOCom vista à preservação, conservação e defesa do sistema lagunar do Sotavento Algarvio, é estabelecido em 1987 o Parque Natural da Ria Formosa, um marco na protecção da biodiversidade de uma das mais importantes zonas húmidas de Portugal. Por outras palavras, um território fundamental para uma flora e fauna residente, migratória, endémica e sazonal.Tirando o devido proveito da situação, é ainda criado, dentro deste parque, o RIAS, que actualmente regista o maior número de entrada de animais selvagens do país. Com mais de 22 mil animais vivos ingressados desde a sua génese, o grupo das aves claramente assume a liderança de entradas nesta espécie de hospital de fauna selvagem.Segundo nos relatou uma das co-coordenadoras, a bióloga Soraia Guerra, a totalidade das espécies apresentam uma taxa de sucesso de libertação de aproximadamente 60%. Números encorajadores, especialmente se considerarmos que os traumatismos, muitas vezes de origem antropogénica, são a principal causa de ingresso. Imediatamente a seguir, no pódio, a queda do ninho / orfandade na Primavera e no Verão indicam a fragilidade dos recém-nascidos nessa temporada. Já no terceiro lugar, surge o síndrome parético, com um registo de 17% das entradas. É importante lembrar que, de acordo a Lista Vermelha criada em 1964 pela União Internacional da Conservação da Natureza, há actualmente um declínio da riqueza e abundância da biodiversidade do planeta, sublinhado também pelo último relatório do  WWF – World Wildlife Fund (Living Planet Report 2024), que adianta que, em média, 73% das populações de vertebrados selvagens diminuíram entre 1970 e 2020. Sob a gestão da associação sem fins lucrativos ALDEIA desde 1 de Abril de 2009, o RIAS dispõe da orientação do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e do apoio financeiro da ANA Aeroportos de Portugal, S.A. e do Fundo Ambiental, além de outros apoios de municípios e ONGs, alimento oferecido, donativos e voluntariado. Apenas desde Outubro de 2012 é que o RIAS é reconhecido pelo ICNF, integrando assim a Rede Nacional de Centros de Recuperação para a Fauna (RNCRF).Além do tratamento médico veterinário de animais selvagens feridos, debilitados ou órfãos, há também uma componente científica de investigação que a pequena equipa do centro não descura: desde identificar ameaças à conservação de espécies a contribuir para a monitorização da saúde pública, a partir da vigilância sanitária por um acesso muito exclusivo e restrito de amostras, sendo elas por vezes novas e emergentes, trabalho não falta aos sete elementos a tempo inteiro. É ainda de realçar o importante papel destes investigadores e voluntários na divulgação e sensibilização ambiental, acções de conservação da natureza, modalidades de apadrinhamento de animais no centro por escolas, particulares e empresas, bem como a vasta oferta educativa de cursos, jornadas e workshops para o tratamento de animais selvagens.Anualmente, o RIAS estabelece como objectivos principais consolidar as parcerias existentes e criar protocolos com novas entidades para a melhoria das instalações do centro, contribuindo em última análise para o bem-estar animal e o sucesso na taxa de libertação e devolução à natureza.São realizadas centenas de acções de retorno à natureza, envolvendo milhares de pessoas da comunidade algarvia, entre estudantes, representantes de entidades públicas e associações, além dos voluntários e técnicos do RIAS.

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O que realmente aconteceu à Biblioteca de Alexandria? Conheça as teorias.

O maior repositório de conhecimento humano do mundo antigodesapareceu quando as chamas engoliram a Biblioteca de Alexandria. Mas quem terá acendido o fósforo? Esta é uma das perguntas mais ardentes da história e com razão – afinal, a biblioteca era uma das instituições mais importantes do mundo no que concerne à educação e à cultura.Apesar de ser o orgulho do mundo antigo, a famosa biblioteca egípcia ardeu várias vezes e, em 48 a.C., ficou na mira de uma guerra civil.Será que Júlio César pegou mesmo fogo à grande Biblioteca de Alexandria? Ou terão sido estudiosos islâmicos? Ou o próprio mecenas da biblioteca? Conheça as pistas que os historiadores têm sobre a destruição da biblioteca.O que era a Biblioteca de Alexandria?Apesar de ficar no Egipto, a biblioteca era um bastião da cultura grega antiga. Foi construída dentro de um templo conhecido como Mouseion, ou Templo das Musas, e o museu e as suas salas de leitura e jardins já não existem. No entanto, os relatos da época referem-se à sua arquitectura e ao seu conteúdo – todos aludindo à civilização grega, graças à influência do reinado de três séculos da dinastia Ptolomaica no Egipto.Não sabemos ao certo se a biblioteca foi uma criação dePtolomeu I Sóter, o primeiro faraó da dinastia Ptolomaica, que subiu ao trono em 323 a.C., ou do seu assessor, Demétrio de Falero. Ptolomeu era grego-macedónico de nascimento e transformou o Egipto numa meca da cultura grega durante o seu reinado. Ele tinha grandes ambições para a cidade de Alexandria, que ajudou a construir na costa mediterrânica do Egipto e que tornou capital do país em 305 a.C., escreveu o historiador Guy de la Bèdoyére em The Fall of Egypt and the Rise of Rome: A History of the Ptolemies. Por fim, acrescentou, a grande cidade de Ptolomeu “foi usada como porto de entrada, de todas as maneiras possíveis, para a literatura, a arte, a filosofia e o comércio”.Por volta de 295 a.C., Ptolomeu encarregou Demétrio de construir a maior colecção de obras escritas do mundo, num gesto que colocaria Alexandria no mapa e transformaria o Egipto num importante centro cultural grego.No entanto, Ptolomeu I não viveu tempo suficiente para ver a biblioteca, pois morreu em 283 a.C.. A maioria dos historiadores concorda que a biblioteca foi inaugurada durante o reinado do seu filho e sucessor, Ptolomeu II Filadelfo, entre 284 e 246 a.C. Por essa altura, a dinastia Ptolomaica já tinha investido recursos exorbitantes no projecto e na expansão de Alexandria. À medida que os enviados do faraó vasculhavam o mundo em busca de obras escritas, adquiriram ou copiaram tesouros como a biblioteca de Aristóteles e cópias das peças de teatro de Ésquilo, Eurípedes e Sófocles.Embora seja famosa por conter toda a literatura grega antiga, a biblioteca também continha obras de outros centros culturais, como a Síria, a Pérsia e a Índia. E maravilhava os seus visitantes não só com as centenas de milhares de rolos de papiro, como com a sua arquitectura.A biblioteca era mundialmente conhecida enquanto repositório de conhecimento. À semelhança de uma universidade na actualidade, atraía académicos ansiosos por aumentarem o seu conhecimento nas áreas da ciência, matemática e artes com as suas grandes colecções. Era tão grande que deu origem a uma instituição gémea, o Serapeu, construída noutro templo nas suas proximidades. Contudo, Ptolomeu VIII expulsou todos os estudiosos estrangeiros no âmbito da sua luta pela sucessão por volta de 145 a.C.Os estudiosos de hoje sabem “frustrantemente pouco” sobre a biblioteca e os seus académicos, diz Bèdoyére. No entanto, escreve ele, a biblioteca teve um impacto colossal no seu mundo. “Talvez o seu maior contributo para a história do conhecimento seja o facto de ter existido”, comenta, descrevendo a biblioteca como “o maior presente que os Ptolomeus deram ao mundo antigo”.Como foi o incêndio da Biblioteca de Alexandria?A agitação social que se sentia no Egipto poderá ter contribuído para a destruição da biblioteca. Em 48 a.C., pelo menos parte da biblioteca sofreu danos duranteuma guerra civil. Nesse ano, o general romano Júlio César e os seus homens viajaram até Alexandria para defender Cleópatra, aliada de César, numa guerra contra o seu irmão, Ptolomeu XIV. Os romanos tentaram impedir a frota de Ptolomeu de partir do porto, pegando fogo aos navios e cais de Alexandria.As chamas propagaram-se e chegaram ao Mouseion. Fontes históricas discordam sobre os danos. Alguns historiadores antigos, como Plutarco, dizem que a biblioteca inteira ardeu, mas o filósofo Séneca o Jovem citou, mais tarde, uma obra actualmente perdida, segundo a qual perderam 40.000 rolos.Será que alguma coisa sobreviveu? Fontes posteriores mencionam o Mouseion, indicando que o templo ainda estava em uso e os estudiosos parecem ter continuado a trabalhar com colecções que teriam ardido se a biblioteca tivesse sido completamente destruída.A destruição da Biblioteca de AlexandriaOs restos da biblioteca e os estudiosos a ela associados sofreram um declínio lento, juntamente com a própria cidade de Alexandria, dizem outros académicos.Ao longo do tempo, a Biblioteca de Alexandria “foi-se degradando devido a negligência” escreve o bibliotecário e curador Sebastian Modrow em Libraries, Archives and Museums. Outrora um espaço fundamental do conhecimento grego, Alexandria encontrava-se agora sob o domínio romano e os líderes romanos parecem ter ignorado o repositório, escreve o historiador MacLeod em The Library of Alexandria: Centre of Learning in the Ancient World. “Sabemos muito pouco sobre a biblioteca (ou o que restou dela) durante a época imperial romana.”A Biblioteca de Alexandria pode ter desaparecido, mas existem provas de que a sua instituição gémea sobreviveu – para depois arder duas vezes.À medida que o cristianismo se espalhava por Roma, dirigentes cristãos como Teodósio I, o patriarca cristão de Alexandria, começaram a lutar contra aquilo que consideravam idolatria pagã. Em 391 d.C., o grupo de estudiosos do Serapeu, zangados com os ataques perpetrados pelos romanos contra os seus deuses e musas, atacaram alguns cristãos em Alexandria. A reacção dos cristãos foi vandalizar e destruir o Serapeu.Os incêndios criminosos ou, pelo menos, as acusações de fogo posto, continuaram a desempenhar um papel na destruição da biblioteca. Em 642 d.C., as forças árabes comandadas por Amr ibn al-As capturaram Alexandria durante a conquista islâmica do Egipto pelo Califado de Rashidun. Segundo um texto sobrevivente do século XIII, os invasores árabes foram comandados pelo califa Umar, que lhes ordenou que destruíssem a grande biblioteca, utilizando, supostamente, os seus livros como combustível para aquecer a água dos seus banhos durante a ocupação subsequente.No entanto, os historiadores modernos dizem que isso é um mito provavelmente criado e propagado por cristãos medievais que suspeitavam do Islão e dos seus ensinamentos. “A tolerância intelectual era um marco da civilização islâmica medieval”, escreve a historiadora Asma Afsaruddin em The American Journal of Economics and Sociology. Ao contrário desse mito popular, escreve Afsaruddin, os muçulmanos daquela época eram extraordinariamente receptivos ao conhecimento de outras culturas.Um debate ainda em cursoDurante anos, escreveu o historiador clássico Roger S. Bagnall em Proceedings of the American Philosophical Society, houve debates sobre quem destruiu a biblioteca e porquê. “É um homicídio com uma série de suspeitos”, escreve ele, acrescentando que “o assunto ainda é debatido com muito fervor”. Ele diz que alguns académicos culparam os professores cristãos de 391 por terem desperdiçado o que restava do conhecimento clássico na biblioteca, enquanto outros atribuem a sua derradeira destruição ao Califado Islâmico e à sua suposta rejeição do conhecimento não-muçulmano.Aquilo que sabemos é que, eventualmente, até as referências ao Mouseion desapareceram. Hoje em dia, a Biblioteca de Alexandria é uma das maravilhas históricas cuja perda mais é lamentada – e ainda desperta arrependimento pela perda irrecuperável de tanto conhecimento antigo.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Novas evidências revelam que os dinossauros prosperavam quando o asteróide atingiu a Terra

Há cerca de 66 milhões de anos, durante a Primavera do hemisfério Norte, um asteróide com 9,5 quilómetros de comprimento embateu na actual península do Iucatão. O desastre daí resultante levou à extinção de 75 por cento das espécies do nosso planeta, incluindo quase todas as linhagens de dinossauros, excepto as aves com bico.O impacto foi devastador. O rescaldo foi apocalíptico. Mas o que se passaria imediatamente antes deste acontecimento cataclísmico?Há muito que os paleontólogos discutem se os dinossauros já estariam em declínio quando o asteróide embateu ou se ainda prosperavam e davam origem a novas espécies. Fósseis descobertos no Novo México e datados de cerca de 340.000 anos antes do embate do asteróide, pintam uma imagem vívida: segundo um novo estudo, os dinossauros prosperavam aquando do impacto.Os dinossauros que dominavam a paisagem do Novo México pré-histórico, aquando deste evento, eram verdadeiros gigantes, como o Alamosaurus, um enorme herbívoro de pescoço comprido.“Consigo imaginar a cena: num minuto, um dinossauro do tamanho de um avião a jacto estava a fazer o chão tremer com os seus passos. No minuto seguinte, a Terra inteira estava a tremer com a energia libertada pelo asteróide”, diz Stephen Brusatte, explorador da National Geographic, paleontólogo da Universidade de Edimburgo, na Escócia, e autor do estudo.A descoberta, publicada na passada quinta-feira na revista Science, defende que os dinossauros da América do Norte não estavam em declínio antes do seu desaparecimento estrondoso. O estudo também fornece informação sobre a diversidade das espécies de dinossauro que viviam na região sudoeste da América do Norte no final do Cretácico.Novas datas para os fósseis do Novo MéxicoMuito daquilo que os paleontólogos sabem sobre o destino dos dinossauros não-avianos veio de fósseis descobertos na região ocidental da América do Norte, sobretudo nas formações de Hell Creek e Fort Union. Estes afloramentos rochosos dos estados de Montana, Dacota (do Norte e do Sul) e Wyoming preservaram imagens de espécies terrestres antes e depois da colisão. Mostram que dinossauros como o Tyrannosaurus, o Triceratops, o Edmontosaurus e o Ankylosaurus viviam nas antigas planícies de aluvião preservadas em torno das Montanhas Rochosas.Mais a sul, porém, no Novo México do período Cretácico, um grupo diferente de dinossauros deambulava pelas terras baixas. Os investigadores olharam para os dinossauros do sudoeste – que incluíam o Kritosaurus, com o seu bico em forma de pá, oTorosaurus, com os seus três cornos, e o Glyptodontopelta, com a sua carapaça – para investigar qual seria o seu estado imediatamente antes do embate do asteróide.Montar as peças do puzzle da cronologia destes dinossauros exigiu anos de pesquisa e trabalho de campo em busca de pistas nas rochas e nos sedimentos.“Este projecto demorou mais de uma década: algumas das primeiras amostras geocronológicas foram recolhidas antes de eu começar a pós-graduação”, diz Andrew Flynn, paleobotânico da Universidade Estadual do Novo México e primeiro autor do artigo.Flynn e a sua equipa estudaram camadas de rocha da Bacia de San Juan, no Novo México, numa área conhecida pelos geólogos como Naashoibito Member. A idade exacta destas rochas ainda não tinha sido determinada. Investigações anteriores estimaram que teriam cerca de 70 milhões de anos – milhões de anos antes do impacto do asteróide.Contudo, a nova investigação realizada por Flynn e a sua equipa reviu as datas, corrigindo-as para 66,4 a 66 milhões de anos, o que significa que os dinossauros encontrados nestas rochas do Novo México viveram até meio milhão de anos antes do asteróide.Isso sugere que estes dinossauros viveram aproximadamente na mesma altura que os dinossauros descobertos nas formações de Hell Creek e Fort Union, na região ocidental da América do Norte. Com efeito, mostra que dinossauros como o Alamosaurus, do Novo México pré-histórico estavam ainda mais próximos do local do impacto, em Chicxulub, no México, do que os Triceratops que viviam no antigo Montana.Para situar devidamente os dinossauros no tempo, Flynn e os seus colegas recolheram várias amostras geológicas em Naashoibito Member, no Novo México, e submeteram-nas a uma técnica de datação especial que analisou cristais minúsculos no interior das rochas a fim de determinar há quanto tempo tinham sido depositados. Embora estudos anteriores tivessem proposto que os dinossauros de Naashoibito tinham vivido milhões de anos antes do impacto, o novo estudo aperfeiçoou as datas, situando-as cerca de 340.000 anos antes do final do Cretácico.Isto sugere que América do Norte era o lar de várias comunidades de dinossauros, que evoluíam lado a lado, em diferentes bacias, mesmo antes do desastre.“Acho que o facto de os depósitos da Bacia de San Juan datarem do final do Cretácico é um contributo significativo e importante para o nosso conhecimento do final desse período”, diz Manabu Sakamoto, paleobiólogo da Universidade de Reading, em Inglaterra, que não participou no estudo.Muitos e prósperosNão só os dinossauros prosperavam até imediatamente antes da extinção, como Flynn e os seus colegas descobriram que os últimos dinossauros da América do Norte estavam divididos em diferentes comunidades de espécies, dependendo do sítio onde viviam.Os especialistas chamam “provincialismo” a este comportamento, segundo o qual as espécies novas evoluem em bolsas geográficas, estando frequentemente separadas por diferenças na vegetação, temperatura e outros fenómenos naturais.Alguns dos últimos dinossauros do Cretácico que deambularam pelo Novo México eram muito parecidos com os que viviam mais a norte. O Tyrannosaurus, mais conhecido devido aos esqueletos encontrados em locais como Saskatchewan, Canadá e Montana, também perseguiram presas no Novo México imediatamente antes do impacto do asteróide.Outros, porém, eram surpreendentemente diferentes, como o Alamosaurus.O maior dinossauro que viveu no Novo México durante o Cretácico, o Alamosaurus poderia ter mais de 24 metros de comprimento e pesar mais de 30 toneladas. Assinalou o regresso dos grandes dinossauros saurópodes à região ocidental da América do Norte, descendentes de antepassados titanossauros que viviam mais a sul.“Nada ilustra melhor a forma como os dinossauros prosperaram até ao fim do que o facto de o Alamosaurus – um dos maiores dinossauros de sempre – ter assistido ao embate do asteróide”, diz Brusatte.Após a atribuição de novas datas às camadas rochosas, Flynn e os seus colegas compararam as espécies de dinossauros que viveram na região ocidental da América do Norte há entre 75 e 66 milhões de anos. Essa comparação iria revelar se o continente fora o lar de apenas meia dúzia de espécies de dinossauro antes da extinção ou de vários tipos de dinossauros.As conclusões da equipa somam-se a um crescente corpo de evidências, segundo as quais a vida antiga formava comunidades regionais de espécies diferentes, em vez de uma única comunidade de dinossauros distribuída por todo o continente, diz Sakamoto.A principal característica que dividia as comunidades de dinossauros do norte e do sul, propõem Flynn e os seus colegas, era a temperatura.O herbívoro gigante Alamosaurus vivia nas regiões mais quentes do sul, no final do Cretácico, mas estava ausente dos habitats mais frescos do norte, habitado por muitos mais dinossauros com bico de pato e cornos. Uma vez que estes dinossauros eram animais de grande porte, capazes de percorrer longas distâncias, e algumas espécies, como o Tyrannosaurus, viviam em ambas as regiões, parece que a temperatura era mais importante para a criação de diferentes comunidades de dinossauro do que uma barreira geográfica como uma cordilheira montanhosa ou um sistema fluvial, dizem os investigadores.Esta sensibilidade à temperatura e às condições naturais do continente sugerem que ainda existem comunidades de dinossauros únicas por descobrir, não só na América do Norte como noutros locais do mundo.“Acho que o nosso novo trabalho mostra que precisamos de fazer mais investigação em novas áreas das extinções em massa K/Pg”, diz Flynn, especialmente no hemisfério Sul.Os estudos em curso na América do Sul estão a compor uma imagem dos últimos dinossauros do continente, mostrando como se comparavam com os que viviam noutras parte do planeta. Identificar as espécies-chave e o local onde viviam é uma parte essencial da montagem de um cenário verdadeiramente global do evento de extinção.Embora o destino dos grandes dinossauros seja bem conhecido, os paleontólogos só agora começam a descobrir os dinossauros que assistiram ao final do Cretácico.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Quer sobreviver no oceano escuro? Use um escudo urticante.

Era noite e, na escuridão da água, a chaputa parecia ter feito um grande balão com pastilha elástica. Em vez disso, o peixe tinha a larva de uma anémona a espreitar da sua boca.Este é apenas um exemplo de peixes a interagirem com anémonas de formas surpreendentes, documentado cientificamente num novo estudo publicado no Journal of Fish Biology. Fotografias captadas por mergulhadores durante a noite – uma actividade chamada “mergulho em águas escuras” – mostra peixes jovens a conviverem com (e até a segurarem) anémonas potencialmente perigosas, utilizando-as possivelmente como escudos.Os investigadores dizem que este comportamento poderá ajudar os peixes minúsculos a não serem jantados por algum predador. No oceano aberto, “temos de encontrar maneiras de nos protegermos”, diz Gabriel Afonso, ictiologista do Instituto de Ciências Marinhas da Virgínia, em Gloucester Point, e autor principal do estudo. Ele diz que estes peixes que fazem amizade com anémonas poderão ser um novo caso de peixes que se escondem atrás de invertebrados.Um mar primordialOs cientistas tiveram a ideia de procurar este comportamento em fotografias captadas por mergulhadores depois de Jeff Milisen, um biólogo marinho e investigador independente sediado em Kona, no Hawai, ter detectado algo invulgar.Em 2015, enquanto praticava mergulho em águas escuras junto a Kona, Milisen viu um peixe segurando, com as suas barbatanas pélvicas, aquilo que parecia ser uma bola. As identidades das criaturas mantiveram-se desconhecidas na altura. Não é invulgar ver peixes a conviver com invertebrados, diz ele, mas esta interacção pareceu-lhe estranha. Milisen partilhou as suas fotografias com Dave Johnson, um dos autores do estudo, que faleceu antes da publicação do relatório.Embora os cientistas estudem tradicionalmente peixes capturados e trazidos para terra, a fim de ser mais bem examinados, “há muita informação que pode ser recolhida só por enfiarmos a cara dentro de água e olharmos à nossa volta”, diz Milisen, que não é um dos co-autores do novo relatório.Para o novo estudo, Johnson, Afonso e os seus colegas recolheram imagens de outros praticantes de mergulho em águas escuras captadas entre Outubro de 2018 e Agosto de 2023.Os praticantes deste tipo de mergulho entram no oceano sob a escuridão da noite e fotografam aquilo que iluminam com lanternas ou outras fontes de iluminação. Muitos dos animais que figuram nas imagens captadas pelos mergulhadores são atraídos pela luz e são frequentemente pequenos – menos de 2,5 centímetros de comprimento. “É isto que eu considero um mar quase primordial”, diz Milisen.A equipa de Afonso examinou fotografias captadas pelos mergulhadores entre 8 e 15 metros de profundidade, ao largo das costas da Florida e do Tahiti. Numa delas, viram um peixe-lixa com uma larva amarela de anémona na boca, noutra, um carangídeo juvenil nadando junto a anémonas jovens, e uma outra cena mostrava um juvenil da família Nomeidae a fazer o mesmo. E uma chaputa parecia estar montada noutra criatura, retida entre as barbatanas do peixe – este animal bolboso era um antozoário não identificado, um membro do grupo que inclui as anémonas.Por que razão o fazem?Num ambiente sem características distintivas e um sítio onde se esconderem, os peixes poderão estar a defender-se utilizando as anémonas, sugerem os investigadores. As anémonas adultas possuem células urticantes e, pelo menos, algumas larvas de anémonas são tóxicas. No caso do carangídeo, o mergulhador reparou que o peixe estava a tentar manter a anémona entre eles. “O peixe esconde-se atrás da anémona utilizando-a como barreira”, diz Afonso. “É essa a nossa interpretação.”Há muito que os investigadores sabem que os peixes convivem com outras criaturas urticantes, sobretudo alforrecas. Os cientistas fizeram várias observações de peixes a nadarem junto delas, a formarem cardumes em seu redor e até a abrigarem se entre os seus tentáculos, diz Jeff Leis, biólogo especializado em peixes da Universidade da Tasmânia, em Hobart, na Austrália, que não participou no estudo. Em Fevereiro de 2025, os autores do estudo partilharam fotografias de peixes com alforrecas penduradas na boca no Journal of the Ocean Science Foundation. E alguns peixes até parecem imitar alforrecas. No entanto, ainda não é claro quão comum será este tipo de interacção entre peixes e anémonas em mar aberto, diz Leis, uma vez que só foram observadas algumas espécies.Os autores do estudo também sugerem que os peixes minúsculos poderão ajudar as anémonas a disseminarem-se, mas Milisen permanece céptico porque as larvas de peixe encontram-se na fronteira entre as criaturas que flutuam à deriva e as que se propelem a si próprias. “Seja como for, as larvas de peixe não nadam assim tão bem, nem conseguem nadar até tão longe”, diz ele. Mesmo que os peixes ajudem a deslocar as anémonas, é possível que apanhar uma boleia possa não ser benéfico, por exemplo, se deslocar uma anémona para longe de um local ideal para a desova.Estas curiosas observações levantam muitas questões. A equipa de Afonso interroga-se como os peixes conseguem segurar as anémonas sem se magoarem e quanto tempo duram as relações entre os peixes e as anémonas. Estarão os peixes a segurar estes organismos durante minutos, dias ou semanas? E Leis interroga-se: como é que os peixes comem se estão a segurar outro animal na boca?Uma das conclusões deste estudo é que as fotografias captadas por mergulhadores em águas escuras podem proporcionar novas pistas sobre a biologia depois dos peixes na fase larval e juvenil. Estudar estes jovens que vivem no oceano aberto pode ser difícil, diz Afonso, uma vez que a sua aparência pode mudar drasticamente quando se tornam adultos.Para os seres humanos, o oceano pode parecer uma simples camada azul, diz Afonso. Sem mergulhar, os investigadores irão perder muitas das interacções como estas, que se passam abaixo da superfície. “Existe tanta complexidade lá em baixo.”Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Presos dentro do Afeganistão Talibã

Quando o fotógrafo Hashem Shakeri regressou a Cabul em Agosto de 2022, passara-se menos de um ano desde a sua primeira visita à capital do Afeganistão. E menos de um ano desde que os talibãs, expulsos duas décadas antes por uma invasão liderada pelos norte-americanos, tinham assumido o controlo do Afeganistão. Ele deu por si naquilo que já parecia ser um país diferente. “A profundidade desta escuridão, a incerteza e a inversão de tudo perturbou-me profundamente”, recorda.O projecto de Shakeri, apropriadamente intitulado “Staring into the Abyss” (“Olhando para o Abismo”) é uma colecção de imagens profundamente comoventes que mostram a decadência lenta dos sonhos no meio de um rápido colapso social. O Afeganistão é, de muitas formas, parecido com o país de Shakeri. O facto de ter crescido no Irão, que partilha o seu legado e cultura e até a língua, permitiu-lhe ter um ponto de vista singular sobre a desintegração daquilo que existia no passado e a forma como o novo regime estava a afectar os escalões complexos e entrecruzados da sociedade.“Todas as conquistas pelas quais o povo [do Afeganistão] tanto lutou, foram subitamente apagadas e voltaram à estaca zero – ou talvez menos”, diz Shakeri.As imagens de Shakeri são um testemunho desta perda, visível na paisagem abrangente de um Afeganistão repleto de pobreza, desemprego e fome. Também pretendem realçar as histórias de indivíduos, sobretudo mulheres e membros de grupos marginalizados, que perderam os seus direitos e liberdades quando os talibãs utilizaram as suas próprias identidades contra eles.O resultado, como ilustrado pelas fotografias de Shakeri, é um país aparentemente preso no tempo, cujos habitantes vivem num espaço liminar entre aquilo que era e aquilo que poderia ter sido. “É como um buraco negro de ignorância, que consome toda a luz e a retém, sem um fim à vista, sem uma noção de quanto irá devorar”, comenta Shakeri, descrevendo o abismo que é actualmente o Afeganistão controlado pelos talibãs.Shakeri espera que as suas imagens promovam a empatia, humanizando comunidades que sobreviveram a anos de conflitos, invasões, colonização e fundamentalismo extremista. “Quando o público se familiariza com os pormenores da vida das pessoas e com as suas personalidades, deixa de considerá-las ‘outros’ distantes e desconhecidos. Em vez disso, reconhecemos a sua humanidade partilhada”, diz ele.Os nomes marcados com* nas legendas foram alterados por motivos de segurança. As idades atribuídas referem-se à data em que as imagens foram captadas.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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As eleições legislativas de 1969 em Portugal

Quando Salazar abandona o poder em 1968 por motivos de saúde – como explicámos neste artigo – sucede-lhe no cargo Marcello Caetano. A situação de saúde do homem que liderava o Estado Novo em Portugal desde 1933 vem a revelar-se mais delicada do que se pensava.Caetano ocupa o poder de forma definitiva, ainda que se mantenha um certo espectáculo institucional até à morte de Salazar para dar a ilusão ao país, e ao ditador, de que este ainda mandava alguma coisa. Na verdade, Marcello tem uma visão para o país algo diferente daquela que era comum nos quase quarenta anos anteriores. Contrariamente ao seu antecessor, Caetano era alguém que habitava no espaço público: professor universitário com muitos anos de vida académica, sentia um Portugal que era radicalmente diferente daquele que recebera os primeiros anos da ditadura. Um Portugal menos atrasado na economia, mais ambicioso nos seus desejos de uma abertura política que o próprio Marcello via também como necessária para a sobrevivência do regime. Agradar às grandes populações urbanas de Lisboa e Porto era essencial. A nova visão do “Marcellismo”Marcello deu alguns sinais ao país de que queria mudanças também. Alguns foram cosméticas, como a alteração do nome da polícia política de PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) para DGS (Direcção-Geral de Segurança). Outros mostram-no como alguém que reconhece valor à modernidade, como quando se estreou como estrela de horário nobre televisivo com "Conversas em Família", para melhor comunicar aos cidadãos o novo rumo do regime, os seus triunfos e os seus valores. Mas a sua decisão mais séria neste sentido veio com a permissão de que opositores políticos mais moderados concorressem às eleições legislativas de 1969. É preciso acrescentar-se que Marcello não cai no poder por um acaso. O seu plano de anos, de estratégias e escolhas de estar sempre com um pé dentro e fora de regime preparam-no para se apresentar como uma versão leve do líder absoluto: por um lado, cabeça do Estado Novo, por outro alguém que nunca se comprometeu totalmente com o mesmo. Tal mais tarde viria a criar-lhe problemas com a ala mais conservadora da União Nacional, ansiosa que tudo mudasse para que tudo ficasse na mesma; mas em 1969, esse estatuto deu alguma credibilidade aos desejos afirmados pelo novo líder do país.A oposição ao regime apresentava-se em 1969 muito diferente daquela com que Salazar tivera de lidar durante boa parte da sua vigência. Os resolutos militantes da Primeira República foram os seus primeiro adversários sérios, sucedidos depois pelo Partido Comunista Português (PCP), que fez carreira a resistir na clandestinidade à PIDE.Ainda assim, o regime só esteve realmente em sentido e alerta quando deu sinal a opositores de que as regras do jogo político também valiam para estes. As famosas eleições de 1958 trouxeram o espectro de Humberto Delgado, que assombraria Salazar a partir do estrangeiro, no qual se viu obrigado a refugiar depois de galvanizar o país nessas eleições. É ele quem coordena, por exemplo, a Operação Dulcineia, onde Henrique Galvão "rapta" o paquete Santa Maria. Galvão, um aventureiro de velha guarda, que cortara com o regime pelo seu tratamento dos nativos das colónias, fracassou e Delgado viria a ser assassinado numa emboscada em Badajoz no ano de 1965. Mas o seu exemplo motivou uma nova geração de jovens com ideais de mudança, menos confrontacional, principalmente pela sua filiação nos ideias da democracia cristã – portanto, muito longe de qualquer tipo de influência comunista.Novo sangue... mas incómodoMarcello permite o regresso do exílio de dois opositores conhecidos: um era António Ferreira Gomes, o bispo do Porto; o outro, um advogado que representava vários prisioneiros políticos de seu nome Mário Soares. Pretendia-se a renovação da União Nacional, que até então fora o partido único do regime, mas também da própria Assembleia Nacional, com opositores mais amenos a potencialmente colaborar com Marcello e o seu governo.São contactados alguns jovens liberais, democratas nas intenções mas com pontos em comum com o eleitorado burguês que Marcello queria agradar: Francisco Pinto Balsemão, Francisco Sá Carneiro, João Mota Amaral ou Joaquim Magalhães Mota. No futuro, fariam parte do núcleo de fundadores do Partido Popular Democrático (PPD, primeiro, e PSD, mais tarde); mas por esta altura, eram o contrabalanço às forças mais conservadoras da União Nacional que Caetano necessitava. As reacções no campo da esquerda viriam a semear divisões que reflectir-se-iam depois do 25 de Abril: a Acção Socialista Portuguesa (ASP), de Mário Soares e Salgado Zenha, aceitou ir a jogo e dar o benefício da dúvida a estas eleições; o PCP rejeitou-as liminarmente, apelidando Marcello de uma continuação de Salazar.Mas cedo se viu que não seria fácil organizar o desejado pela oposição: umas eleições justas e iguais para todos. Quando alguns oposicionistas organizaram uma Comissão para a Promoção de Voto, o governador de Lisboa, seguindo indicações do regime, considerou-a ilegal. Um relatório da Legião Portuguesa, apenas para consumo interno do Estado Novo, alertava para o entusiasmo destes opositores, a sua capacidade de mobilizar os portugueses não só a votar, mas também para a potencial abertura democrática. Ninguém queria um novo Humberto Delgado e alertava-se para a fraca convicção ideológica até por parte daqueles que compunham o núcleo duro de apoiantes do Estado Novo, desde a própria União Nacional até às forças católicas e rurais.A ASP começa desconfiar que, se calhar, o benefício da dúvida foi mal dado e reúne em São Pedro de Moel com outros oposicionistas, nomeadamente de esquerda. O PCP está presente e participa na elaboração de um documento, a Plataforma da Acção Comum, que se lê como um manual dos piores pesadelos do Estado Novo: fim da guerra colonial, liberdade de expressão, desmantelamento da PIDE e reforma agrária estavam entre as exigências. Mais importante de tudo é que todos concordavam que devia haver eleições e a oposição deveria ir a votos.Acontecem as eleições... e TUDO FICA NA MESMAEste grupo muito heterogéneo decidiu ir a votos em listas separadas. Os socialistas formam-se na Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), que incluíam figuras do futuro partido como os mencionados Soares e Zenha, mas também católicos progressistas como Sophia de Mello Breyner ou Ruy Bello, e monárquicos, como Gonçalo Ribeiro Telles. Com esta designação, concorrem nos populosos distritos de Lisboa, Porto e Braga. No resto do país, integram-se na CDE (Comissão Democrática Eleitoral) com nomes próximos do PCP, como José Tengarrinha e Glória Marreiros, mais católicos progressistas, como João Bénard da Costa, e até um socialista independente de seu nome Jorge Sampaio. Era para levar a campanha até ao fim para mostrar quão fraudulento era este suposto processo democrático. Tal foi contrastado pelo protesto de outras listas, como a ADS, liderada pelo histórico Cunha Leal da Primeira República, que não participaram no escrutínio.Evitando qualquer risco, o regime fez o que o regime fazia: manipulou as eleições supostamente livres com os truques habituais. Entre eles, agressões a candidatos e activistas, assaltos a sedes de campanha pela polícia e milicianos, apreensão de material de propaganda eleitoral da oposição, negação do acesso a meios de comunicação como televisão e rádio aos candidatos que não fossem da União Nacional, falsificação de certidões e boletins de voto e membros da Legião Portuguesa votando múltiplas vezes, com a conivência da Assembleias de Voto.Para espanto de poucos, a União Nacional venceu com 88% dos votos. Mas vários dados ficaram evidentes. Em primeiro, a população portuguesa não acreditou na transparência destas eleições – de 9,5 milhões e meio de habitantes, apenas 1,8 milhões participaram, ou seja, 29%, dificilmente representativo de uma vontade do país. Em segundo, a incapacidade de o regime cumprir as regras do jogo democrático que ele próprio colocou em cima da mesa reforçou a crença de que apenas através da luta clandestina se podia acabar com a ditadura. Em terceiro, os tais deputados jovens que Marcello Caetano encontrou (Pinto Balsemão, Sá Carneiro, Magalhães Mota) seriam eleitos nas listas do partido do Estado Novo, mas formariam uma formidável força de resistência na Assembeia Nacional, que ficaria conhecida por “Ala Liberal”. Por fim, começava a desenhar-se o quadro partidário que marcaria as primeiras décadas do Portugal pós-ditadura: o PCP já existe e nestas várias figuras das legislativas de 1969 temos os fundadores de PS, CDS e PPD, entre outros partidos. Marcello Caetano, mesmo sem saber acertou na mouche: abriu a porta a um Portugal mais democrático com estas eleições. Apenas teríamos de esperar cinco anos.

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O que nos diz o chão debaixo da Sé de Lisboa?

Entre os séculos XII e XIV, o complexo catedralício lisboeta sobrepôs-se a realidades urbanas anteriores, geradas sobretudo nos tempos romano e muçulmano. A construção da catedral, na prática, destruiu e ocultou marcas de antigos usos daquele trecho urbanístico. Grande parte dessa história permanece por conhecer, inexplorada sob o chão da catedral, mas um conjunto de materialidades foi revelado ao fim de mais de sete séculos e ultima-se o projecto para a sua musealização.A escavação aberta na quadra central do claustro da Sé, continuada na actualidade de forma mais radical (atingindo maior profundidade e alargando-se à área ocupada pela ala meridional do claustro), permitiu uma visão de periscópio invertido para a cidade anterior à construção daquele espaço religioso. Os dados reunidos por esta intervenção são essenciais para conhecer a evolução urbanística do sítio e a das cidades sobrepostas que compõem Lisboa, não obstante a área escavada ser reduzida para a quantidade e abrangência de perguntas que a investigação sucessivamente coloca acerca do local.A sé românica – marca de afirmação de um poder civilizacional sobre outro(s), que havia dominado a cidade – começou a ser construída possivelmente a partir de 1149 ou 1150, anos em que a diocese foi agraciada com um considerável património urbano e se constituiu o cabido. As primeiras etapas foram bastante rápidas, laborando-se na fachada principal na década de 80 daquele século XII.É possível que a crise então verificada tenha afectado o andamento das obras. É também plausível que tenha escasseado a pedra disponível, razão pela qual o arquitecto da Sé, um estrangeiro de nome Roberto, se deslocou aos arredores da cidade para reconhecer possíveis pedreiras. Numa dessas visitas, caiu da mula que o transportava e o animal desabou também sobre o seu corpo, atribuindo-se a salvação do construtor da casa-catedral que guardava os restos mortais de São Vicente à prodigiosa acção do santo padroeiro de Lisboa, a fazer fé no Livro de Milagres codificado ainda no século XII.Que a pedra terá faltado para a construção da Sé infere-se pela inclusão de espólio romano e alto-medieval nos sectores ocidentais do monumento. A análise a esses materiais reaproveitados constitui outra forma de tentar perceber o que existiu no sítio onde os conquistadores de 1147 construíram a sua mais imponente marca de vitória: a catedral.Uma rua de OlisipoPara quem visita a escavação do claustro, encontra um sector urbanístico organizado em socalcos. A herança desta disposição é romana, pois foi no tempo da construção de Felicitas Iulia Olisipo que a vertente meridional da encosta genética da cidade foi organizada em grandes plataformas desniveladas. Esta obra de engenharia foi a forma encontrada para vencer os declives e materializar uma ideia de cidade ortogonal, de ruas tendencialmente lineares e quarteirões rectangulares.Quem não conhece este ponto de partida dirá que a escavação no claustro revela uma cidade ao contrário, pois os vestígios romanos encontram-se na plataforma superior, enquanto os islâmicos dominam na plataforma inferior, como se os tempos estivessem “surrealisticamente” invertidos, na medida em que os vestígios mais recentes (islâmicos) estão a cotas mais baixas do que os mais antigos (romanos).Um olhar atento, todavia, esclarece, por exemplo, que o sistema de esgotos que corre por baixo de uma via lajeada romana da plataforma superior continua sob as estruturas islâmicas no nível inferior, e foi mesmo aproveitado pelos agentes citadinos muçulmanos, só tendo terminado a sua função na segunda metade do século XIII. Em mais de mil anos de história, é também assim a cidade sobreposta: feita de permanências utilitárias, reaproveitamentos múltiplos em diferentes tempos, ao lado de irreparáveis destruições e amputações.Na época romana, a urbanização deste local fez-se em torno de uma rua que corria no sentido Sul – Norte. Esta artéria, que subia da zona ribeirinha até ao centro da colina, sobrepôs-se a anteriores usos, testemunhados por pavimentos de seixo rolado. No primeiro século da nossa era, a cidade romana monumentalizou-se e ganhou identidade. O tecido urbano organizou-se em quarteirões regulares e a rua foi lajeada, correndo sob o seu pavimento uma subterrânea rede de esgotos.A arqueologia demonstrou que a rua era pedonal: tinha degraus e o lajeado não evidencia sinais de desgaste provocado pela passagem de rodados. Outra característica desta artéria é a existência de várias lojas do lado nascente. São espaços de reduzidas dimensões, aparentemente desprovidos de balcões, e não se conhece que tipo de produtos eram ali comercializados.As grandes transformações da cidade noséculo IV (altura em que se construiu a segunda muralha e o perímetro citadino foi reduzido) tiveram também impacte sobre o conjunto urbano do claustro da Sé. O proprietário de uma habitação que se anexava a uma loja privatizou a via, alargando essa mesma habitação para aquele espaço anteriormente público.Camadas fragmentadas e desconexasO conjunto habitacional romano foi abandonado no século VI, momento da história de Lisboa em que estava em marcha outra ideia de cidade. No tempo de suevos e visigodos, foram dominantes as tendências de transformação topográfica que estiveram na origem de uma paisagem plenamente cristã, com igrejas, adros e cemitérios dentro das muralhas, ao mesmo tempo que os grandes edifícios romanos foram irremediavelmente transformados para outros fins.A escavação do claustro da Sé não forneceu ainda elementos relativos a esta etapa civilizacional. Foi preciso esperar mais alguns séculos para que os quarteirões definidos em época romana tivessem sido sujeitos a mais radicais alterações. A história de Lisboa faz-se também destes silêncios transtemporais, aparentes vazios de séculos nos poços de sondagem abertos para o passado pluriestratificado da cidade.Até à recente ampliação da escavação, a principal marca da ocupação islâmica era fornecida por dois edifícios, os quais testemunhavam também diferentes usos do espaço: o sector nordeste da plataforma superior foi ocupado por uma casa dotada de pátio central; já na plataforma inferior, alguns metros mais abaixo (assim mantendo a lógica de socalcos), colocou-se a descoberto um pátio rectangular, cujos limites ocidental e meridional não foram possíveis de identificar.Este espaço público, cujas paredes eram decoradas com bandas brancas e vermelhas, dava acesso, pelo lado norte, a um pequeno compartimento totalmente abobadado. Já foi aventada a hipótese de este conjunto ter estado associado à mesquita aljama da cidade, mas, em boa verdade, a teoria de existência de uma mesquita sob o chão da catedral permanece como hipótese provável, embora sem certificação arqueológica.A proximidade do poço que foi sucessivamente alteado e que serviu o próprio claustro é um factor que favorece a interpretação do pátio como espaço de acesso e de uso daquela fonte de água.Não é linear a ligação deste pátio com os mais impressionantes vestígios islâmicos detectados na campanha arqueológica entretanto alargada.Tendo-se desmontado a ala meridional do claustro – ela própria um restauro das primeiras décadas do século XX –, e aprofundando a escavação até aos alicerces da grande muralha construída em finais do século XIII para suportar e nivelar o claustro gótico, identificaram-se mais decisivas e discutidas marcas da organização islâmica.O conjunto é difícil de descrever e ainda de compreender, tal a quantidade de muros em falta, interrompidos e cortados por construções posteriores até ao século XX. A partir de uma grande parede do lado sul, que funcionava como elemento delimitador deste trecho urbanístico, vislumbram-se vários compartimentos orientados no sentido Sul-Norte. Três deles parecem ser mais importantes: ao centro, um edifício de planta quadrangular irregular, interpretado pelas arqueólogas Alexandra Gaspar e Ana Gomes como possível minarete; do lado direito, na proximidade do poço e de um conjunto de condutas de água, identificou-se uma aparente zona de banhos, da qual se conserva um pequeno banco decorado e o pavimento de tijoleira; do lado esquerdo, situa-se um largo corredor, delimitado por duas grandes paredes, uma delas com quase cinco metros de altura e que foi parcialmente destruída para a edificação do claustro.O espaço quadrangular central é o mais relevante pois configura um edifício de vários andares. É dotado de muros duplos, em cujas faces internas se abriram arcos de descarga, e subsiste o primeiro lanço de uma escadaria que conduziria a(os) piso(s) superiores.O estado fragmentário destes vestígios, a escassa regularidade planimétrica que apresentam, a própria irregularidade dos muros do suposto minarete e a evidência de adossamentos em distintos tempos, bem como a inexistência de uma relação directa com um pátio central de generosas dimensões e, principalmente, com o grande salão de orações, são argumentos que dificultam a aceitação de se estar perante parte do complexo monumental de uma mesquita.A escavação ainda decorre e, na verdade, o que foi colocado a descoberto – sendo decisivo e original para a história de Lisboa e do tempo islâmico na terra que depois veio a chamar-se Portugal –, é, porém, ainda pouco para o expectável potencial histórico do chão debaixo da catedral.Uma conclusão particularmente importante é que todos estes vestígios são tardios na história de Al-Ushbuna, nome pelo qual Lisboa foi nomeada na época muçulmana. Os fragmentados edifícios recentemente revelados pertencem à época almorávida e integram-se numa ampla renovação urbanística consumada nas primeiras décadas do século XII, que tem também evidência no programado e ortogonal bairro islâmico escavado na Praça da Figueira. Por outro lado, o grande pátio primeiramente identificado poderia corresponder ao período das taifas, ainda que a decoração parietal pareça emular anteriores correntes estéticas califais, como sucede também nas casas identificacas na área do Castelo de São Jorge.Uma igreja moçárabe?A possível construção de uma mesquita na plataforma onde mais tarde surgiu a sé românica pode não ter sido a única ocupação de carácter religioso deste espaço urbano. Sem me referir já às arqueologicamente infundadas visões tradicionais que veiculam a ideia de uma sucessão de sacralidades em diferentes tempos – um templo romano teria sido aproveitado para igreja de época visigótica, a qual depois haveria de dar lugar à mesquita e, por fim, à catedral que conhecemos –, subsistem indícios que sugerem a presença neste sector de uma igreja moçárabe, ao serviço dos cristãos que viviam na cidade sob domínio muçulmano.Não existem evidências arqueológicas desta realidade, mas, nas obras de final do século XII, foram incorporadas nas paredes exteriores da catedral duas grandes pedras decoradas e resta a dúvida sobre a proveniência de uma terceira, hoje colocada numa capela do claustro, a servir de base.A peça mais significativa foi reaproveitada num contraforte do lado norte, de onde foi retirada há décadas, ameaçada que estava pela poluição atmosférica que quase levou ao apagamento da escultura na metade mais exposta à rua. É um frontal de altar (ou um segmento de friso), decorado com três arcos onde figuram duas aves afrontadas, ao centro, e dois cordeiros nas extremidades. A peça parece ter sido inspirada em realizações islâmicas do século X (como as arquetas califais de marfim) e veicula uma iconografia específica do Paraíso, jardim ordenado e harmonioso, mítico destino dos cristãos após o dia do Juízo Final, onde pastam cordeiros livres de temores e onde se acede livremente aos frutos da Árvore da Vida.Outro artefacto da mesma época está ainda preservado nos alicerces da torre meridional da fachada principal. Trata-se de um fragmento pétreo de grandes dimensões, realizado a partir de um elemento arquitectónico romano, duas vezes reaproveitado.Em primeira vida, terá sido um frontal de altar, ou de cancela litúrgica, para uma igreja moçárabe e, depois, foi usado como material de enchimento da torre românica. Apesar de apenas uma pequena parte estar visível, o repertório decorativo que ostenta tem afinidades com o frontal de altar moçárabe atrás mencionado.É tentador equacionar a hipótese de ambas as peças terem feito parte do aparato decorativo de uma possível igreja moçárabe que existiu no chão onde se ergueu a catedral. Se elas desempenharam a função de frontal de altar, então essa igreja teve pelo menos dois altares (o principal destinado à celebração eucarística e um segundo reservado para cerimónias secundárias). À possível cabeceira desse templo poderia também pertencer a terceira peça que hoje se preserva na catedral, um fragmentado friso vegetalista que deveria percorrer todo o interior da abside, incorporado nos muros laterais, por altura do início do abobadamento.As peças da Sé de Lisboa não estão isoladas na herança material medieval resgatada na cidade. Fragmentos de escultura decorativa associáveis à dinâmica artística moçárabe encontraram-se já, sempre fora das suas funções originais, junto da muralha meridional (Rua dos Bacalhoeiros, Casa dos Bicos, Chafariz del Rei), no subsolo da capela-mor do antigo Mosteiro de Chelas e na Praça Nova do Castelo de São Jorge. Neste último local, um fragmento de lintel epigrafado certifica que, possivelmente numa altura em que algo da fortificação islâmica havia já sido construído – a fazer fé numa outra inscrição, datada do ano 985, que alude à “restauração” da cidade em tempo do califa al-Hakam II –, a comunidade cristã dispôs de uma igreja no topo da colina. A porta principal desse templo (com probabilidade voltada ao espaço público citadino) ostentava uma inscrição glorificadora de Cristo e duas cruzes-anagramas cristológicas acompanhadas pelas letras gregas alfa e ómega, forma comum de afirmar que Cristo é o princípio e o fim de todas as coisas na aventura humana.A comunidade cristã da Lisboa gerida pelos muçulmanos deve ter tido assinalável protagonismo durante o século X e era ainda forte o suficiente em 1147, nas vésperas da conquista cristã.O cruzado Raoul viu o bispo da cidade no topo das muralhas, com o alcaide e as principais personalidades da urbe. Esse mesmo prelado, um ancião (querendo com isto dizer que devia ocupar de maneira estável o cargo há largos anos), foi brutalmente assassinado pelos invasores flamengos e germânicos, que primeiro se precipitaram para o interior das muralhas. Por essa altura, dois séculos depois da datação geral atribuída ao núcleo escultórico moçárabe lisboeta, e dois regimes depois – o esplendor dos cristãos lisboetas de al-Andaluz coincidiu com o califado de Córdova, ao qual se seguiu os reinos taifas e, depois, a autoridade forçada do império almorávida –, a comunidade cristã parecia já habitar preferencialmente o arrabalde ocidental. Paulatinamente, como foi frequente em várias cidades muçulmanas da Península Ibérica, os cristãos foram sendo relegados para as periferias. Este processo, que terá sido lento na maior parte dos casos – o que beneficia a hipótese de o chão da Sé ter albergado uma igreja moçárabe e, só depois (a partir de finais do século X, ou mais tarde ainda), aí se ter implantado uma mesquita –, foi bem mais brutal e imediato para os muçulmanos que sobreviveram à conquista de 1147, forçados a abandonar as suas casas e condenados ao êxodo nos tempos imediatamente posteriores.Pode ser que o chão debaixo da catedral guarde as memórias da mesquita onde, em Outubro de 1147, se amontoavam 1.000 pessoas, refugiados na sua própria cidade, julgando em desespero que as paredes do edifício poderiam garantir a sua vida. Pode ser que a escavação ainda em curso revele algo mais da comunidade islâmica, da qual fazia parte o anónimo que, no respiradouro do esgoto romano anexo à casa da plataforma superior, escondeu um pano com moedas de prata e outros objectos, gesto de aflição que continha ainda a esperança, afinal vã, de vir a recuperar mais tarde este precioso tesouro. Pode ser, finalmente, que um dia existam condições para escavar o chão onde a catedral românica foi erguida. Para lá da identificação da conduta de águas que desce a colina e que passa sob as naves, canal que foi, entretanto, entulhado com escombros provocados pelo terramoto de 1755, ter-se-á real oportunidade de confirmar a existência da mesquita e terminar de vez com este mito de arqueologia urbana que tem alimentado as páginas especulativas com que tantas vezes se escreve a História.Artigo publicado originalmente em Março de 2021 na Edição Especial Catedrais da National Geographic.

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O teatro mais antigo do mundo está encerrado. Aqui estão outros que pode visitar

Situado no sopé da Acrópole, na capital grega, Atenas, o Odeão de Herodes Ático foi construído em 161 d.C. Agora que está encerrado para um processo de restauro profundo, espreitamos outros teatros conceituados que merecem uma visita, desde edifícios históricos a maravilhas contemporâneas.1. Teatro Minack, Cornualha, REINO UNIDOColunas românicas? Confere. Bancadas de pedra? Confere. O Teatro Minack, com o seu design de anfiteatro partilha mais do que uma leve semelhança com o Odeão de Herodes Ático, em Atenas, apesar da diferença de localização. Esculpido nos penhascos graníticos acima da Praia de Porthcurno, no sudeste de Inglaterra, o Teatro Minack proporciona aos seus visitantes avistamentos regulares de golfinhos nas águas em frente à praia, para além das espectaculares produções e concertos que acolhe. O teatro é uma criação de Rowena Cade que, na década de 1920, o incorporou no seu jardim no alto da falésia e permitiu à sociedade de teatro amador local que ali encenasse A Tempestade. Actualmente, apresenta espectáculos durante todo o ano.2. Teatro Amazonas, Manaus, BrasilManaus, uma cidade situada nas margens do rio Negro, não era o sítio mais fácil de aceder quando este teatro foi inaugurado, em 1896. Não que isso tenha preocupado os seus arquitectos, que mandaram vir vigas de aço de Glasgow, o mármore da escadaria e os candelabros de Itália e 36.000 mosaicos (dispostos de modo a formar a bandeira do Brasil no tecto abobadado do teatro) de França. O teatro conta também com inúmeras referências à sua localização, incluindo a cortina, fabricada em 1894 e adornada com uma imagem do rio Negro e o chão em madeira, feito com 12.000 peças de madeiras amazónicas diferentes encaixadas (sem cola). Actualmente, o teatro acolhe vários eventos e produções, bem como um festival anual de ópera. As visitas guiadas duram uma hora e proporcionam uma visão mais íntima da sua espectacular arquitectura.3. Teatro Minamiza, Kyoto, JapãoEmbora o edifício actual date de 1929, existe um teatro neste local desde 1610, o que significa que é a sala de espectáculos mais antiga do Japão. Amplamente considerado um teatro de kabuki (um género que usa mímica e música para contar episódios históricos), as suas características espectaculares incluem o belíssimo telhado de duas águas de estilo Momoyama e uma yagura (torre de vigia), enquanto o interior é uma explosão de opulência, com um hall vermelho e um tecto de caixotes. A nossa dica? Dirija-se directamente ao terceiro piso – são os lugares mais baratos, mas a sua posição elevada garante vistas fantásticas.4. Casa Municipal, Praga, República ChecaO Smetana Hall é o teatro que se encontra no centro da Casa Municipal e foi construído em 1905 como edifício multiusos, com salas de cerimónias, espaços de exposição e restaurantes. Uma equipa de sonho, composta por criativos checos notáveis como o designerMax Švabinský e o escultor Ladislav Šaloun, juntou as mentes inovadoras por detrás do maior edifício de arte nova de Praga. Os elementos mais opulentos de Smetana Hall são o seu intricado trabalho de estuque, os vitrais e os belíssimos mosaicos, bem como a cúpula de vidro ornamentada e as esculturas inspiradas por Vyšehrad (um local das lendas checas) que guardam o palco. Poderá assistir a espectáculos regulares dos clássicos, incluindo o melhor de Mozart e asQuatro Estações de Vivaldi.5. Citizens Opera House, Boston, EUAA Citizens Opera House foi desenhada pelo famoso arquitecto de teatros Thomas W. Lamb e construída em 1928. Lamb foi contratado pela estrela de vaudeville Edward F. Albee II, que queria um teatro que fosse também um memorial ao seu amigo Benjamin Franklin Keith e não foram poupadas despesas – as alcatifas são réplicas das existentes na Biblioteca do Congresso e existe mármore de Carrara, ouro e seda em abundância. Na década de 1990, a decadência instalou-se, levando a obras de remodelação no valor de 54 milhões de dólares, que envolveram a remoção de dois quilogramas de folha de ouro e restauros meticulosos dos murais do teatro. Não tem tempo suficiente para assistir a um espectáculo? As visitas históricas, bem como as visitas aos bastidores, dão aos visitantes uma oportunidade de aprenderem mais sobre o que se passa por baixo dos panos e estão disponíveis durante todo o ano, por ordem de chegada.6. Harbin Grand Theatre, Harbin, ChinaA inspiração para este teatro em forma de FANI (Fenómeno Anómalo Não Identificado, a nova designação que substituiu o termo OVNI), foi a natureza selvagem que existe para lá da cidade, e deu origem a uma estrutura moderna que parece ter sido moldada pelo vento e pela água. O piso em mármore branco do halle as paredes brancas curvas são uma invocação dos invernos nevados de Harbin e a escadaria escultural, que se contorce até ao jardim do telhado, foi inspirada nas pessoas que subiram até ao cume das Cinco Montanhas Sagradas de China. O auditório principal é mais acolhedor, com as suas paredes ondulantes revestidas com freixo da Manchúria e pontuadas com conjuntos circulares de cadeiras, desenhados para parecerem blocos de madeira a desfazer-se lentamente.7. Palacio Bellas Artes, Cidade do México, MéxicoEste teatro desafiou todas as probabilidades e acabou por inaugurar em 1934, após longos atrasos causados pela revolução mexicana e a necessidade de estabilização adicional devido ao solo mole da cidade do México. Construído em estilo art nouveau por fora, o interior art deco do teatro incorpora máscaras maias e murais do aclamado pintor mexicano Diego Rivera. A sua pièce de résistance é a cortina, que é, na verdade, um painel de 24 toneladas composto por um milhão de peças de vidro Tiffany com reflexos de bolha de sabão, dispostas de modo a reproduzir os vulcões mexicanos de Popocatépetl e Iztaccíhuatl. Hoje em dia, o teatro é uma sala para todo o tipo de espectáculos, desde óperas a concertos de orquestra.8. Burgtheater, Viena, ÁustriaConstruído em estilo neo-renascentista em 1888, o Burgtheatre é famoso pela sua fachada barroca, embora os seus interiores sejam ainda mais opulentos, com esculturas de Apolo e Baco a acompanhar Shakespeare e Goethe. A sua decoração inclui vários quadros de Gustav Klimt, incluindo o único auto-retrato sobrevivente do artista austríaco. Este foi um dos primeiros teatros do mundo com luz eléctrica, embora esta não tenha sido a sua única inovação. “O meu elemento preferido é o sistema de ventilação e aquecimento, que foi integrado no projecto do edifício desde o início” diz o seu director Robert Beutler. “Puxa ar de um roseiral próximo através de um túnel subterrâneo e distribui-o através da coluna central de cada cadeira do auditório. O ar usado sai através do candelabro de cristal (equipado com uma grelha de latão), que se encontra sob a cúpula.”Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Aldeia lunar

Acompanhe-me numa visita virtual à Lua. Num abrir e fechar de olhos, percorremos os 384.400 quilómetros que separam, em média, a Terra e do nosso satélite natural, para pousar a nossa nave imaginária num dos locais mais prováveis para acolher uma primeira colónia humana: o pólo sul lunar, especificamente a cratera Shackleton e os seus arredores.Criada pela colisão de um meteorito há cerca de 3,3 mil milhões de anos, esta cratera tem 21 quilómetros de diâmetro e 4,2 quilómetros de profundidade. O seu nome é uma homenagem ao corajoso explorador polar Ernest Shackleton que, com toda a certeza, estaria mais do que disposto a fazer parte das equipas humanas que hoje sonham em deixar a Terra para colonizar o espaço.Devido à proximidade, a Lua será a primeira escala na pretendida expansão da nossa espécie pelo Sistema Solar. Talvez venha a ser uma estação de transbordo espacial a partir da qual enfrentaremos aquele que é considerado o próximo grande marco exploratório da humanidade: pôr os pés em Marte... e, ipso facto, colocar uma bandeira no Planeta Vermelho. No entanto, o nosso satélite também interessa por outros motivos, como a exploração de recursos minerais, a promoção do turismo espacial e a investigação científica numa grande variedade de domínios para lá da astronomia.“A face oculta da Lua é ideal para acolher infra-estruturas de observação astronómica: é o local do Sistema Solar com menor contaminação radioeléctrica, a salvo das radiações produzidas pelos seres humanos”, explica o físico Ignasi Ribas, director do Instituto de Estudos Espaciais da Catalunha (IEEC). “Além disso, a partir de uma cratera profunda no pólo lunar, é possível usufruir da noite permanente para observações com o telescópio.”O que tem de tão interessante e especial esta zona da cratera Shackleton para ser considerada o local escolhido para a alunagem das duas missões tripuladas mais avançadas – as dos Estados Unidos e da China? As suas duas principais atracções são diametralmente opostas: as suas luzes e as suas sombras. As primeiras são produzidas pelo ténue brilho solar que banha a região. Semelhante ao sol da meia-noite que ilumina as nossas latitudes polares quando se aproxima o solstício de Verão, o fenómeno produz em alguns lugares da Lua os chamados picos de luz eterna. “Especificamente nos rebordos da cratera Shackleton, existem três desses picos permanentemente iluminados pelo Sol durante 90% do ano”, explica o astrónomo. Estes pontos permanentemente iluminados, cuja existência foi assinalada pelo astrónomo francês Camille Flammarion em 1879, seriam adequados para acolher infra-estruturas de energia solar em funcionamento contínuo.Por outro lado, a escuridão fria que se vislumbra no fundo da cratera tem também grande interesse como uma despensa de gelo de água com origem em cometas. “Em teoria, nestes reservatórios, poderia obter-se água líquida e também, através da electrólise, hidrogénio para produzir combustível e oxigénio para abastecer os equipamentos de respiração”, explica o investigador. Mas, de acordo com os dados das sondas lunares que sobrevoaram a cratera desde meados da década de 1990, a água no interior da cratera não é muito abundante e está misturada com o substrato basáltico poeirento e tóxico que cobre toda a superfície lunar, o regolito.A exploração de recursos minerais, a promoção do turismo espacial e a investigação científica numa grande variedade de domínios para lá da astronomia fazem da Lua um ponto de interesse.Como resumiu Ernest Shackleton, “as dificuldades são só etapas a superar” e, entretanto, enquanto ainda toma forma o complexo e competitivo regresso humano à Lua, várias iniciativas estão a imaginar formas de a habitar. Uma das mais destacadas é o projecto conceptual Moon Village, uma proposta da Agência Espacial Europeia (ESA) coordenada pelo físico Bernard Foing, muito ligado aos programas lunares europeus. “A Lua é o oitavo continente da Terra”, diz com frequência Bernard. O desenvolvimento virtual do projecto foi executado pelo gabinete de arquitectura e engenharia SOM de Nova Iorque, em colaboração com Jeffrey A. Hoffman, antigo astronauta da NASA e professor de Aeronáutica e Astronáutica no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e culminou com a sua apresentação na Bienal de Veneza de 2021.Se quer uma casa na lua, fique a saber que o sonho da ESA de instalar uma aldeia na superfície do nosso satélite não é novo. Em 2015, a ESA iniciou uma colaboração com a Foster and Partners, uma empresa de arquitectura fundada por Norman Foster em 1967. O objectivo era explorar as possibilidades da impressão 3D na construção de habitats lunares modulares com o mínimo de material proveniente da Terra, capazes de proteger os seus potenciais habitantes dos principais perigos associados ao ambiente lunar: meteoritos, radiações, terramotos e grandes flutuações térmicas. A reputada empresa optou por conceber uma cápsula cilíndrica com capacidade para quatro pessoas, com a ideia de que, juntamente com um par de robots, esta poderia ser enviada para a Lua a bordo de um módulo de alunagem não tripulado e colocada num rebordo da cratera Shackleton. Já no local, numa das extremidades da cápsula (a outra seria a porta do habitat) seria insuflada uma cúpula sobre a qual os robots imprimiriam uma estrutura porosa em 3D que seria depois preenchida com regolito lunar. Transcorridos cerca de três meses terrestres, a camada protectora ficaria concluída e a habitação lunar estaria pronta a ser inaugurada.Se quer uma casa na lua, fique a saber que o sonho da ESA de instalar uma aldeia na superfície do nosso satélite não é novo.Um dos impulsionadores deste sonho de transcender a criação de um habitat e planear uma aldeia lunar internacional foi o engenheiro alemão Jan Wörner, director-geral da Estação Espacial Internacional (ISS) de 2015 a 2021. Para Wörner, a melhor opção para substituir no futuro a ISS, símbolo da cooperação entre nações mesmo nos contextos políticos mais tensos, será a construção de uma base lunar permanente que encarne este espírito multinacional e cooperativo. “Não se trata de edificar casas, uma câmara municipal e uma igreja”, disse na altura. A aldeia lunar, afirmou, deveria ter múltiplas utilizações e utilizadores: um país talvez tenha mais interesse na ciência, outro em criar uma empresa mineira privada e um terceiro em utilizar a Lua como base para explorações mais distantes.Foi a partir deste quadro conceptual que a equipa da SOM (Skidmore, Owings and Merrill), famosa pela construção de alguns dos arranha-céus mais altos do mundo, arrancou quando aceitou desenvolver o projecto Moon Village. A sua proposta é uma colónia baseada em módulos insufláveis verticais de três ou quatro andares, expansíveis e ligados entre si e cobertos com uma barreira protectora de regolito. A ideia combina a experiência da indústria espacial com conhecimentos de arquitectura, urbanismo, ciência e psicologia, sob o objectivo de criar na Lua um ambiente o mais “humanizado” possível.“Tal como na Terra, trata-se de criar espaços que permitam aos seres humanos não só sobreviver, mas também prosperar e ser criativos”, explica Colin Koop, arquitecto da empresa norte-americana. Para o efeito, deram especial atenção ao conforto dos interiores, concebidos para diferentes utilizações e muito bem iluminados, aproveitando um desses picos de luz eterna, o que, por sua vez, tornaria possível a auto-suficiência energética.O principal desafio da colonização da Lua é manter as pessoas vivas: ao contrário do que acontece no nosso maravilhoso planeta Terra, a gama de temperaturas é incompatível com a vida e não há atmosfera nem campo magnético. Ou seja, além de não conseguirmos respirar, na Lua estamos expostos a um nível de radiação espacial muito mais elevado e a mais impactes de meteoritos. “Trata-se, antes de mais, de um exercício de cálculo daquilo de que necessitamos para nos protegermos”, afirma Koop.Para o arquitecto, um dos objectivos mais desafiadores é a microgravidade. “O facto de a Lua ter aproximadamente uma sexta parte da gravidade da Terra é um verdadeiro problema. Os nossos ossos são fortes porque o nosso corpo resiste continuamente à força da gravidade. Mas se formos para o espaço e esta força deixar de actuar sobre nós, a densidade óssea começa a diminuir quase imediatamente. O sistema circulatório também se ressente, porque é graças à gravidade que o sangue circula de regresso ao coração. Em ambientes de baixa gravidade, o sangue tem tendência a coagular, pelo que é necessário tomar anticoagulantes. E os músculos começam a deteriorar-se porque foram concebidos para se manterem em forma na Terra. Então como devemos conceber espaços para o exercício? Como podemos desenvolver a capacidade do corpo humano para suportar esforços extremos? É preciso pensar que na Lua é necessário fazer quatro, cinco ou seis vezes mais exercício para obter o mesmo efeito no nosso corpo e mantê-lo saudável. É um desafio difícil.”Não é o único. “Outra das grandes dificuldades a ultrapassar é conseguir que as alunagens sejam suficientemente seguras”, acrescenta Bernard Foing. “E teremos de conseguir implementar operações sustentáveis a longo prazo que produzam benefícios económicos e sociais para os cidadãos da Terra.”O desafio de povoamento na lua é muito mais complexo do que se pensa. Para aprofundar todas as dificuldades, encontro-me com Ignasi Casanova, professor de Geoquímica na Universidade Politécnica da Catalunha (UPC), onde lecciona a disciplina de Recursos Espaciais e Povoamento Planetário no âmbito do Mestrado em Engenharia Espacial e Aeronáutica. Especialista no chamado ISRU (In Situ Resource Utilization), Casanova explica que o regolito lunar, composto basicamente por diferentes basaltos fragmentados, é extremamente abrasivo e também está carregado electrostaticamente pelo efeito da radiação solar sobre a superfície da Lua.“Qualquer actividade que se realize na Lua, como a instalação de uma infra-estrutura, levanta uma grande quantidade de pó de regolito”, diz ele. “Trata-se de um pó muito fino e carregado de electricidade, que faz as partículas levitarem e repelirem-se umas às outras.” Um dado notável: o pó lunar levantado pelos rovers das missões Apollo, por exemplo, está ainda hoje em suspensão e pode permanecer neste estado mais duzentos anos. “É preciso ter em conta que as partículas de regolito podem infiltrar-se em todas as engrenagens e danificar infra-estruturas e instrumentos”, adverte.Fino como farinha, mas abrasivo como lixa, é perigoso respirá-lo, como relataram no passado os astronautas de várias missões Apollo. O relatório da sexta missão tripulada e a segunda a aterrar na Lua, a Apollo 12, em 1969, explicava como a poeira, que aderia aos fatos e ao equipamento, se infiltrava na cabina do módulo lunar: “Após a inserção na órbita de subida, quando a nave espacial estava de novo num ambiente de gravidade zero, grandes quantidades de partículas de poeira lunar flutuavam livremente no interior da cabina. Toda essa poeira dificultava e tornava perigosa a respiração sem capacete e concentrava-se em quantidade suficiente para afectar a visão.”Três anos depois, em 1972, no fim daquela que foi a última missão tripulada, a Apollo 17, o seu comandante Gene Cernan afirmou: “A poeira é provavelmente um dos nossos maiores obstáculos para uma operação programada na Lua. Penso que podemos ultrapassar outros problemas fisiológicos, físicos ou mecânicos, excepto a poeira.”Por tudo isto, Casanova acredita que o primeiro passo para nos podermos instalar na Lua seria construir pistas de alunagem e descolagem para as naves espaciais de forma a minimizar o movimento desta omnipresente poeira lunar. A ESA já está a trabalhar neste sentido e, através do seu projecto PAVER, testa formas de derreter o regolito para construir estradas que mantenham a poeira lunar afastada. O sector privado também está a trabalhar para conseguir produzir pavimentos de selenite, um cristal de aparência vítrea.“Os nossos ossos são fortes porque o nosso corpo resiste continuamente à força da gravidade. Mas se formos para o espaço e esta força deixar de actuar sobre nós, a densidade óssea começa a diminuir quase imediatamente.”(Colin Koop)Também não será fácil explorar os cobiçados recursos existentes na Lua, como o hélio-3, o combustível essencial para os esperançosos reactores de fusão nuclear que nos permitiriam gerar energia limpa e ilimitada. Ou as tão necessárias terras raras, utilizadas como componentes em quase todos os dispositivos tecnológicos modernos, que contêm um tipo de rocha lunar conhecido como KREEP, um acrónimo inglês para potássio (K), terras raras (REE, de Rare Earth Elements) e fósforo (P). “Mas é claro que ainda não é possível explorá-las, pois as suas concentrações são muito inferiores às que podem ser economicamente viáveis. Penso que serão necessárias décadas para que isso se torne possível.”O cientista refere que a Lua tem um grande valor como laboratório de sustentabilidade: oferece um espaço no qual podemos experimentar, desde o primeiro momento, os efeitos de cada acção realizada na sua superfície e explorar soluções que dêem resposta aos desafios terrestres. A Lua, que segundo a teoria mais aceite se formou há cerca de 4,5 mil milhões de anos em resultado de uma colisão da Terra com Tea, um protoplaneta do tamanho de Marte, permitiria também estudar os processos geológicos extraordinariamente bem preservados e que guardam informações ainda desconhecidas sobre a formação do Sistema Solar.O regolito é fino como farinha, mas abrasivo como lixa, é perigoso respirá-lo, como relataram no passado os astronautas de várias missões Apollo.Se gosta de rabanetes, saiba que é muito possível que este tubérculo seja uma das espécies vegetais mais bem-sucedidas na horta de selenite, juntamente com a alface, os espinafres e o tomate. Isto foi comprovado pela equipa da Green Moon Project, uma iniciativa de agricultura espacial fundada há nove anos. Um dos seus promotores, o engenheiro aeroespacial José María Ortega, lidera agora a equipa juntamente com o seu colega Jorge Pla-García, investigador do Centro de Astrobiologia (CAB)-INTA-CSIC, e a bióloga Eva Sánchez, directora do laboratório de tecnologia e investigação agrícola InnoPlant de Granada. “Em colaboração com mais de uma dezena de investigadores de diferentes organizações científicas, no Green Moon Project, estamos a trabalhar para descobrir como a microgravidade afecta as plantas, com o objectivo de criar, no futuro, estufas espaciais auto-suficientes que permitam aos astronautas consumir vegetais frescos”, diz Ortega.A primeira prova de fogo terá lugar em finais de 2026, graças ao acordo estabelecido com a Orbital Paradigm, uma empresa de logística espacial que oferece voos em órbita baixa no seu pequeno veículo de reentrada Kestrel, para experiências biotecnológicas e médicas em situações de microgravidade. “Lançaremos uma pequena cápsula de 20 por 20 por 10 centímetros, mas já pensada para ter outras dimensões no futuro, à prova de vibrações, alterações de temperatura e pressão, com uma série de plântulas no seu interior”, diz Jorge Pla-García. “A experiência partirá para o espaço a partir do cabo Canaveral, a bordo de um foguetão da Space X, que a trará de volta ao mesmo ponto de descolagem após um período que, dependendo dos acontecimentos, variará entre algumas horas e duas semanas.”Eva Sánchez, especialista no estudo de plantas sob situações de stress, explica que a cápsula está despressurizada, mantém uma temperatura de 15 a 20°C, está equipada com luzes LED para permitir a fotossíntese e também com um sistema de fluidificação e baterias. “Quando regressarem à Terra, vamos estudar o efeito que o espaço teve na saúde destas plantas e vamos compará-las com outras plantas semelhantes germinadas em laboratório nas mesmas condições que as da cápsula. A única diferença entre elas será a microgravidade”, explica a astrónoma.Um dos efeitos conhecidos do stress provocado pela ausência de gravidade é a aceleração do ciclo vegetativo das plantas: crescem mais depressa, os nódulos são mais compridos e são mais altas. O objectivo final do Projecto Green Moon é construir uma cápsula de maiores dimensões que, com uma autonomia de cerca de seis meses, possa abastecer as missões tripuladas em colónias espaciais, quer na Lua quer em qualquer outro ambiente extremo na Terra ou fora dela.Entretanto, no campus muito terrestre da Universidade Autónoma de Barcelona (UAB), há 30 anos que funciona a unidade-piloto do projecto europeu MELiSSA (acrónimo anglófono para Micro-Ecological Life Support System Alternative). “No Green Moon Project, estamos a trabalhar para descobrir como a microgravidade afecta as plantas, com o objectivo de criar, no futuro, estufas espaciais auto-suficientes”(José María Ortega)O objectivo desta instalação é desenvolver um sistema de suporte de vida circular regenerativo para que as pessoas possam obter no espaço, sem qualquer contributo da Terra, alimentos, água e oxigénio a partir dos seus próprios resíduos, ou seja, ar expirado, água condensada, urina e resíduos orgânicos.O seu director, Francesc Gòdia, mostra as cinco unidades que o compõem. Em todas elas controlam-se parâmetros como a temperatura, a humidade, a iluminação, a concentração de O2 e CO2, e estão colonizadas por bactérias que se encarregam de funções específicas. Em dois destes compartimentos, leva-se a cabo a degradação microbiológica dos resíduos orgânicos para os converter em matéria orgânica utilizável. Um terceiro produz nitrato, um importante fertilizante, a partir do amónio da urina. Um quarto produz alimentos e oxigénio, graças aos nitratos e à captura de CO2  através da utilização de plantas como a alface ou a couve, e de microrganismos, neste caso cianobactérias. Num quinto compartimento, vive a “tripulação” que, de momento, é um pequeno grupo de roedores que serve para demonstrar a boa funcionalidade, comprovada por esta experiência.“O que começou como uma iniciativa científica e académica tornou-se um projecto empresarial. E embora no início as diferentes unidades trabalhassem separadamente, estamos agora a trabalhar na sua ligação para criar um sistema de circuito fechado e auto-suficiente. Em 2035, gostaríamos de conseguir dimensionar esta tecnologia à escala humana”, diz Gòdia.  E, com isto, talvez se demonstre que ela pode ser utilizada para sustentar um grupo de humanos fora da Terra, algo muito mais complexo do que manter vivos alguns ratos. Em concreto, está planeado um sistema capaz de produzir de forma autónoma, por pessoa e por dia, um quilograma de oxigénio, 13 de água para higiene, 2,8 de água potável,  2,7 de alimentos e 15 quilojoules de energia, e remover 1,2 kg de CO2 do ambiente. Algumas tecnologias desenvolvidas no âmbito de  MELiSSA servem também para resolver problemas globais. Um exemplo de aplicações na Terra é uma unidade de reciclagem de águas turvas já testada em locais tão diversos como a base de investigação científica franco-italiana Concordia, na Antárctida, e o torneio de ténis Roland Garros.No decurso da nossa viagem lunar, foi possível vislumbrar brevemente um cenário que, na opinião da maioria, se enquadra num futuro não muito distante. Consegue imaginar-se a olhar para aquela “magnífica desolação” (como descreveu a paisagem lunar o astronauta Buzz Aldrin na famosa primeira missão em que um ser humano pisou a Lua) a partir de uma destas habitações modulares instaladas na borda da cratera Shackleton? Peço a Ignasi Ribas que me ajude a reconstruir imaginariamente este panorama.“Veríamos um Sol muito baixo, de forma quase permanente, a deslocar-se no horizonte. No céu, observaríamos a Terra sempre no mesmo lugar, embora, devido à rotação, a cada 12 horas nos mostrasse uma face diferente e também as suas diferentes fases: cheia, minguante, crescente e nova, no quadro de um céu estrelado e livre de poluição luminosa.” Enquanto terráqueos, o nosso organismo manteria um ritmo terrestre e, embora na Lua um dia seja equivalente a 28 dias terrestres, para o nosso relógio vital os dias continuariam a ter 24 horas. “Nestas colónias lunares, as pessoas terão de seguir os ciclos biológicos da Terra determinados pelo ritmo circadiano, o que exigirá que nesses habitáculos se programem de forma artificial ciclos de luz e escuridão”, acrescenta Ribas.Há muito a fazer antes de podermos ver a transmissão da inauguração de uma colónia lunar ou para concretizar a primeira viagem tripulada a Marte. Mais cedo ou mais tarde, dependendo do nível de ambição dos países mais empenhados, esse ímpeto exploratório que, para o bem ou para o mal, nos define como espécie, levar-nos-á a atravessar fisicamente as fronteiras do espaço.Por agora, estima-se que, nas próximas duas décadas, as agências espaciais e as empresas privadas levem a cabo quatrocentas missões lunares, incluindo voos orbitais, sondas e rovers. Com estes números em mente, e conhecendo os montantes astronómicos envolvidos, a ESA lançou em 2024 o programa Moonlight para consolidar um sistema de comunicação e navegação por satélite que forneça a estas missões à Lua, e depois ao Planeta Vermelho, acesso aos serviços proporcionados actualmente na Terra por sistemas como o GPS ou o Galileu.“Nestas colónias lunares, as pessoas terão de seguir os ciclos biológicos da Terra determinados pelo ritmo circadiano, o que exigirá que nesses habitáculos se programem de forma artificial ciclos de luz e escuridão”(Ignasi Ribas)As perspectivas são animadoras. E, como nos melhores romances, estas prometidas missões tripuladas dar-nos-ão enredos que, além do conhecimento e do progresso da ciência, manterão a nossa atenção em torno de múltiplas narrativas centradas em lutas de poder sobre a governação do espaço. Na ausência de um quadro jurídico internacional que defina a utilização e exploração do espaço exterior (o Tratado do Espaço Exterior assinado em 1967 está obsoleto), não é descabido prever que, tal como acontece na Terra, na Lua as nações também lutem para se apropriarem dos bens lunares e do seu direito de extracção.Outra questão importante não regulamentada é a da protecção ambiental da Lua. Ali, onde, até agora, nenhum ser humano permaneceu mais do que alguns dias (o recorde pertence aos astronautas da Apollo 17, Gene Cernan e Harrison Schmitt, que ali permaneceram durante 75 horas, 13 minutos e 10 segundos) já despejámos mais de 200 toneladas de detritos pelos quais ninguém se responsabiliza, a mesma quantidade produzida pelas oitenta mil pessoas que sobem todos os anos ao Evereste, em nome desse impulso exploratório que nos é tão próprio. Será que a primeira proposta de uma Lei Espacial Europeia, apresentada em Junho passado, conseguirá pôr alguma ordem na movimentada actividade espacial que se avizinha?Olho para o céu à procura do nosso satélite e vem-me à mente a imagem emblemática do filme mudo de Georges Méliès de 1902, Viagem à Lua. Nela, o satélite natural surge com um foguetão espetado no olho e uma expressão de desalento, como que a dizer: Já estão aqui! Artigo publicado originalmente na edição de Setembro de 2025 da revista National Geographic.

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Da Sérvia para os EUA: como acabou este capacete de legionário romano num leilão online?

Um capacete romano de legionário em bronze, do tipo Weisenau ou "Imperial-Gálico", datado do século II e muito bem conservado, foi recentemente colocado à venda num leilão privado online nos Estados Unidos, segundo o portal Arkeonews.Esta peça foi descoberta por um detector de metais na antiga cidade de Sirmio, actual Sremska Mitrovica (Sérvia), na antiga província romana da Panónia Inferior, e, segundo especialistas sérvios, as circunstâncias em que apareceu são um pouco suspeitas.O capacete romano apresenta um protector de pescoço estendido e bochechas rebatíveis com uma decoração elaborada, concebidas para equilibrar a protecção e a mobilidade. No entanto, o que o torna verdadeiramente único é a inscrição que aparece no protector de pescoço, onde se pode ler: "APPIVS°LEG°IIII°FL". Esta inscrição confirmaria que o capacete pertenceu a um soldado chamado Apio, alistado na Legião IV Flavia Felix, estacionada em Singidunum, a actual Belgrado.A casa de leilões Treasure Trove Auctions, com sede no Texas, é a empresa que colocou o capacete à venda com um preço inicial entre 15.000 e 45.000 dólares (de 12.900 euros a 38.740 euros, sensivelmente). Os responsáveis pelo estabelecimento negam qualquer irregularidade e garantem que "restaurámos o capacete de forma profissional e aplicámos uma camada de cera de conservação para manter a sua bela pátina". Assim, garantem que a qualidade final da peça é a mesma que poderíamos encontrar num museu.ORIGEM ILÍCITA?Além disso, a casa de leilões afirma que "o comprador passou por uma rigorosa aprovação governamental antes de exportar legalmente este artigo para os Estados Unidos". No entanto, especialistas em legislação sérvia questionam isso, pois, de acordo com as leis desse país, objectos de valor histórico e cultural excepcional são considerados património cultural protegido, pelo que a sua venda e exportação são estritamente proibidas sem autorização oficial, o que significa que não podem fazer parte de nenhuma colecção privada no estrangeiro. "Estas regulamentações existem para prevenir a perda de objectos insubstituíveis e garantir que esse património permaneça acessível para investigação, educação pública e identidade nacional. O capacete, com a sua inscrição única que o liga a um soldado romano e a uma legião específicos, enquadra-se perfeitamente nesta categoria, o que torna qualquer venda ou exportação privada legalmente questionável na melhor das hipóteses e ilícita na pior", afirmam com convicção os especialistas sérvios.No entanto, a Treasure Trove Auctions afirma que o capacete foi descoberto num sítio arqueológico protegido de excepcional importância por um detector de metais. Se esta afirmação for verdadeira, recuperá-lo sem avisar as autoridades sérvias constituiria uma grave violação da legislação do país balcânico, que proíbe a escavação privada e o comércio de material arqueológico.Por seu lado, a conservadora do Museu Nacional de Belgrado, Vesna Djordjevic, afirma que "este caso põe em evidência um padrão mais amplo e preocupante. A Sérvia, tal como muitos outros países ricos em património arqueológico, enfrenta a perda constante de objectos antigos devido a escavações ilegais e ao contrabando transfronteiriço", lamenta."Muitos desses objectos desaparecem silenciosamente em colecções particulares em todo o mundo, enquanto as instituições e o público permanecem em grande parte indiferentes. Um capacete como este deveria estar num museu, acessível a académicos e ao público, e não escondido atrás do paywall de um leilão online", afirma Djordjevic com convicção.As autoridades sérvias ainda não emitiram uma declaração oficial sobre a proveniência do capacete e continua por esclarecer se a sua exportação foi ou não autorizada. As organizações de património cultural exigem esclarecimentos e esperam que as autoridades americanas suspendam temporariamente o leilão até que a legalidade do objecto seja confirmada."O aparecimento deste capacete romano num leilão norte-americano serve-nos como um duro lembrete de que o património cultural não é uma mercadoria. Cada venda não regulamentada corrói a compreensão partilhada do passado a nível mundial e alimenta uma economia submersa de pilhagem e contrabando", conclui Vesna Djordjevic.

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Água: O estado da arte em Portugal

Embora 70% da superfície da Terra esteja coberta por água, estima-se que apenas 0,5% seja utilizável e esteja disponível. Este recurso, apesar de vital, não está assegurado; precisa de ser conservado e protegido sob a perspectiva de que não é um recurso pelo qual competir, mas um direito humano. No Dia Mundial da Água, salientamos cinco curiosidades sobre o nosso Portugal líquido.1. UMA DAS MAIORES LAGOAS NATURAIS DA PENÍNSULA IBÉRICA É PORTUGUESAÉ do conhecimento geral que a Albufeira do Alqueva é o maior lago artificial da Europa, e por conseguinte da Península Ibérica, mas sabia que é também portuguesa uma das maiores lagoas naturais no espaço ibérico?Situada na parte terminal do rio Cértima, muito perto de onde este se junta ao Vouga e ao Águeda, a Pateira de Fermentelos pode, na época mais chuvosa, chegar a ocupar cerca de cinco quilómetros quadrados.Está integrada no Sítio de Importância Comunitária da Ria de Aveiro e classificada desde 2012 como Sítio Ramsar. Como o nome indicia, é uma área importante para aves aquáticas, incluindo além de diversas espécies de patos, a garça-vermelha Ardea purpurea, o tartaranhão-ruivo-dos-pauis ou a águia-sapeira Circus aeroginosus. Possui também uma diversidade florística assinalável. 2. Portugal é dos países do mundo onde mais se bebe água engarrafadaEmbora Portugal possua excelentes condições em termos da rede de abastecimento de água para consumo humano – 99% da água que nos corre nas torneiras é considerada segura para beber.Um relatório da ONU de 2021 coloca-nos em 35º lugar entre os 50 países que mais consomem água engarrafada per capita, num estudo que avaliou este parâmetro em 109 países. Em 2021, foram consumidos em Portugal mais de um milhão de litros em água engarrafada, números que terão com certeza um impacto não irrelevante nas reservas de água subterrâneas, assim como na produção de lixo plástico.3. Não sabemos ao certo quantas captações de água subterrânea existem em PortugalExistem, ao dia de escrita deste artigo, 22.821 pontos de captação de água registados no Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH), embora apenas haja informação detalhada para cerca de 8.000 destes. No entanto, o número real de pequenas captações será muito maior, e desconhece-se quando gastam a maior parte destas captações.É bom recordar que, aqui perto de Portugal, as captações subterrâneas nas imediações do Parque Natural de Doñana – no caso, para a irrigação de culturas de frutos – levaram à descida de classificação daquela zona húmida na Lista Verde da IUCN e ameaçam destruir grande parte dos valores naturais da região.No fundo, é uma situação que lembra a famosa cena do filme Haverá Sangue, de Paul Thomas Anderson, em que o protagonista Daniel Plainview descreve como secou os poços de petróleo do seu adversário captando o mesmo à volta, só que com um líquido muito mais importante.4. A pluviosidade em Portugal é muito variável no espaço e no tempoPortugal tem uma pluviosidade média anual que ronda os 950 milímetros, mas este número esconde grandes assimetrias. Se o Norte pode chegar aos 3.000 milímetros anuais, a Sul do Tejo a pluviosidade pode, em certos anos, mal passar dos 400 milímetros.Além disso, e como é típico nos regimes mediterrâneos, há uma grande sazonalidade nesta pluviosidade, concentrando-se num número relativamente reduzido de meses. Adicionalmente, uma boa parte da rede hidrográfica é torrencial, ou seja, está total ou parcialmente seca nos meses de baixa pluviosidade, correndo apenas com a chegada das chuvas. As alterações climáticas não tenderão a diminuir esta tendência, mas a agravá-la, podendo diminuir a pluviosidade a longo prazo em cerca de 10 a 25% até 2050.5. Cerca de um terço da energia em Portugal é de origem hidroeléctricaExistem em Portugal cerca de 120 pequenas centrais hidroeléctricas (PCH), juntamente com 15 de maior dimensão, estando utilizados cerca de dois terços da capacidade teórica de produção deste tipo de energia.Num ano normal, estas centrais são responsáveis pela produção de cerca de 30% da energia produzida anualmente em Portugal, mas em anos mais favoráveis, como foi o caso de 2016, podem mesmo atingir 60% da produção total.Não estando isentas de problemas, este tipo de estruturas desempenham um papel importante na descarbonização do sector energético, correspondendo cada Megawatt-hora produzido numa central hidroelétrica sensivelmente a cerca de 0,37 toneladas de gases com efeito de estufa que seriam libertados para a atmosfera se tivessem sido utilizados combustíveis fósseis.

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O mestre do disfarce

Com a sua cabeça redonda, plumagem eriçada e olhar profundo, o coruja-de-cara-branca-do-norte (Ptilopsis leucotis) é uma ave de rapina com uma aparência muito característica. Durante o dia, costuma permanecer imóvel entre os galhos, inflando a plumagem para conservar o calor. No entanto, quando se sente ameaçado, faz exactamente o contrário: estica-se, alinha as penas e adopta uma postura alongada que o torna imperceptível entre as cascas das árvores. Essa versatilidade na sua aparência permite-lhe sobreviver num ambiente cheio de predadores e demonstra que, na natureza, a versatilidade é fundamental.

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Monte dos Castelinhos: Guerras fratricidas no período tardo-republicano

Com um semblante pesado, o pequeno grupo olhava fixamente as chamas que se projectavam no céu. A pira de cremação consumia lentamente um corpo enquanto os familiares abraçados choravam, invocando os deuses Manes e implorando que a terra lhe fosse leve.Dois mil anos tinham passado sobre a cerimónia fúnebre quando Hipólito Cabaço, incansável investigador alenquerense, detectou uma necrópole da Antiguidade com sepulturas de incineração e inumação. Estávamos em 1934 no termo da freguesia de Santo Estêvão em Paredes quando uma lápide emergiu à superfície, revelando um epitáfio dedicado a um Quínio Valério, mandado fazer por Terência, a sua esposa, e a mãe. Enterrado junto da brecha cor-de-rosa em que o texto ficou imortalizado, foi recuperado um dolium de pasta cor de areia do solo sagrado. No interior, depositadas com extremo cuidado, as cinzas e oferendas do malogrado marido foram libertadas das antigas sombras do Hades.Não será difícil de imaginar a explosão de alegria de Hipólito Cabaço com tamanha descoberta. Era um investigador autodidacta, filho de lavradores de Alenquer. Com 16 anos, fixara-se em França para aprender tudo sobre a produção de vinho, mas, por admissão própria, passava mais tempo “nos museus do que nas adegas”, contou Maria Horta Pereira no seu elogio fúnebre. Perdeu-se um vinicultor, ganhou-se um defensor da arqueologia.As mãos de Hipólito Cabaço talvez tenham tremido quando mergulharam no interior do enorme vaso cerâmico. O investigador retirou os materiais do interior, recuperando 27 artefactos em excelente estado de conservação – cerâmicas finas importadas, unguentários, boiões de vidro, uma taça lisa transparente azul-cobalto, fivelas, botões, uma campainha de bronze, uma sítula e uma peça extraordinária que se destacava de todo o conjunto. Tratava-se de um skyphos, uma taça de vinho com duas alças, datada do século I d.C. Seria provavelmente importada, pois fora moldada com uma pasta branca fina, vidrado de pouco brilho e de cor esverdeada. A decoração celebrava uma alegoria dionisíaca com dois efebos nus e de pé num movimento circular.A diversidade de materiais suscitou uma hipótese ao investigador: Quínio Valério teria elevada posição social, provavelmente um proprietário rural abastado. É possível que o seu passado também se cruzasse com o serviço militar. A existência de um dardo no seu espólio funerário reforçou essa possibilidade. Nas suas deambulações pelo território de Alenquer e concelhos vizinhos, Hipólito Cabaço tropeçou num lugar que só a tradição oral e algumas referências dispersas teimavam em não deixar esquecer. Foi necessário recuar ao século XVI e a uma propriedade agrícola denominada Monte dos Loios, nas proximidades de Vila Franca de Xira, e mais tarde rebaptizada como Quinta da Marquesa, para que as peças começassem a encaixar. O autor  criou uma fresta para espreitar um antigo acampamento militar romano enquadrado nas disputas de poder da Roma Republicana e posterior afirmação de Júlio César.Um acampamento únicoO acaso, porém, levou Cabaço para outros lugares e este espaço permaneceu oculto. Entre as recolhas de fragmentos cerâmicos de Hipólito Cabaço na década de 1930 e 2007, o tema ficou adormecido. O novo século, porém, trouxe uma revolução, personificada por dois arqueólogos que retomaram o fio à meada. Com a convicção de que no subsolo se escondia algo, João Pimenta e Henrique Mendes desafiaram a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira a apoiar um projecto de longo curso. De forma metódica, durante 12 anos, com alunos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, voluntários locais e com o apoio do Centro de Arqueologia da mesma universidade, as pás e colherins rasgaram as entranhas da encosta e revelaram o que restava de um acampamento militar do período tardo-republicano.À medida que os arqueólogos escavavam, surgiam novas interrogações, forçando a equipa a mergulhar nas fontes clássicas com a esperança de responder a algumas dúvidas. O trabalho de investigação de João Pimenta culminou numa tese de doutoramento, que fez recuar a fita do tempo para o final da Segunda Guerra Púnica, ajudando a clarificar o conhecimento de um período de grande instabilidade na Península Ibérica.Com o final desse conflito no século II a.C. e a derrota cartaginesa, Roma fortaleceu a influência sobre os novos espaços conquistados. Nasceu assim a primeira administração da Hispânia que compreendia uma faixa litoral dos Pirenéus à margem direita do Guadalquivir. Em 197 a.C., esse território foi divido em duas províncias: a Hispânia Citerior com sede em Carthago Nova (Cartagena) e a Ulterior com capital em Corduba (Córdova) governadas por dois pretores.Nesta fase, a presença de Roma tinha carácter militar, mas ainda não uma visão estratégica de longo prazo. Multiplicaram-se os conflitos com comunidades indígenas, com destaque para os lusitanos que, entre 155 a.C. e 138 a.C., desafiaram o poder romano. A expansão de Roma na Península Ibérica prosseguiu depois com as campanhas do general Décimo Júnio Bruto em 138 a.C. que ampliaram esse domínio. O vale do Tejo foi alcançado e o general romano usou essa conquista como base para o controlo da orla costeira, alcançando o Nordeste peninsular e penetrando em profundidade no interior.Um texto do geógrafo grego Estrabão no livro III da sua Geografia alude às navegações desimpedidas e ao abastecimento de víveres nas cidades em redor do Tejo. A cidade de Olisipo, actual Lisboa, ganhou protagonismo a par de outras urbes banhadas pelo Tejo. "Caíram cerca de trinta mil homens [na batalha de Munda]. Do nosso lado, tivemos cerca de mil desaparecidos e quinhentos feridos. Foram tomadas 13 águias ao inimigo." De Bello Hispaniensi, de autor anónimo. Descrição da batalha de Munda, que resolveu a guerra civil a favor de Júlio César.As dinâmicas comerciais sofreram um impulso com a ligação ao Mediterrâneo, unindo todo o mar numa primeira globalização, marcada pela circulação a grande escala de produtos transportados em ânforas e trocados por moedas, o novo cimento das trocas comerciais no mundo romano. Ao mesmo tempo, Roma estava próxima do objectivo estratégico de aceder às riquezas minerais da Hispânia, mas a história no canto sudoeste da Europa reflectiria as convulsões da capital.As turbulências civis romanas projectaram-se na Hispânia nas Guerras Sertorianas, de 80 a.C. a 72 a.C., que opuseram o general Quinto Sertório, pretor da Hispânia Citerior, a Lúcio Cornélio Sula, que se tornara ditador, favorecendo o Senado em detrimento dos poderes dos tribunos da plebe e das assembleias populares. Com o apoio dos lusitanos, que viram uma oportunidade de se libertarem do jugo de Roma, Sertório enfrentou os exércitos de Sula. Foi derrotado e posteriormente traído e morto. A figura de Sertório foi mais tarde romanceada por André de Resende e por Luís Vaz de Camões, que viram nele um prenúncio da alma lusitana mais de mil anos antes da independência de Portugal.  Fosse como fosse, o final do conflito sertoriano definiu a refundação do poder de Roma nos territórios ocupados e o estabelecimento de efectivos militares para controlo das principais vias de comunicação.O fim da pax romanaNa encosta de um terreno sobranceiro ao Tejo, nasceu em meados do século I a.C. o acampamento do Monte dos Castelinhos, ocupando cerca de dez hectares. Foi levantado em socalcos por força da orografia do terreno, com um plano octogonal. Numa primeira fase, os buracos de poste descobertos nas escavações denunciavam construções de madeira, mas ao longo do tempo as técnicas de construção evoluíram para paredes constituídas por soco de pedra seca, sobre o qual assentavam estruturas de adobe e taipa.A facilidade de navegação nos afluentes do Tejo foi determinante para a implantação do aquartelamento militar naquele lugar. O rio grande da Pipa que bordeja o local do antigo acampamento militar seria fundamental para o apoio logístico e para as trocas comerciais, pois permitia uma ligação directa ao Tejo. Hoje, é apenas uma ribeira.A profusão de armamento encontrado no Monte dos Castelinhos revela a natureza do confronto. A pax romana não estava ainda estabelecida na Hispânia. As disputas de poder catapultaram novos protagonistas para um palco bem distante da capital romana. A Conferência de Lucca, em 56 a.C., dividiu as províncias romanas pelas três personalidades mais importantes de Roma: Júlio César ficou com a Gália, Cneu Pompeu com as duas Hispânias (Ulterior e Citerior) e Marco Licínio Crasso com a Síria, mas a morte precoce de Crasso em combate na Síria, em 53 a.C., desequilibrou a balança. Cumprindo a velha máxima de que o poder não se partilha, os acordos estilhaçaram-se de imediato entre César e Pompeu. O Senado tomou o partido de Pompeu e César viu frustrada a sua aspiração ao consulado, encontrando na guerra a solução para os seus objectivos políticos. De forma hábil, avançou com o exército para a Hispânia, aproveitando a presença de Pompeu em Roma. E é neste ponto que o Monte dos Castelinhos começa a reentrar na narrativa.O trabalho de investigação revelou dados surpreendentes da presença de César em terras hispânicas. Sabia-se que o cônsul esteve na região em três ocasiões diferentes, desbaratando as forças fiéis a Pompeu até ao epílogo na batalha de Munda em 45 a.C. na Bética, que marcou o final da segunda guerra civil republicana. A investigação de João Pimenta revelou que o acampamento militar de Castelinhos foi totalmente destruído entre 50 e 40 a.C. e nunca reconstruído. Embora não mencionados nas fontes clássicas, o colapso dos edifícios e o abandono de uma forma abrupta do recinto são marcas que o tempo não apagou e é provável que, em novas escavações arqueológicas, as ossadas dos antigos legionários possam emergir. Os materiais encontrados e a inexistência de evidências científicas que demonstrem novas construções sobrepostas aos escombros são a prova de que aquele acampamento se transformou num lugar maldito. Dos artefactos de carácter militar exumados destacam-se os projécteis de chumbo, as glandes usadas em fundas, parte de um incrível scutum (um escudo romano), pontas de lança, balas de catapulta, uma lâmina de punhal em forma de falcata, pregos de botas militares, o fecho de um cinturão e a fivela de uma armadura.Num aquartelamento que terá tido cerca de 40 anos de tempo de vida, outros materiais deixaram pistas. Encontraram-se ânforas hispânicas, oriundas sobretudo de Gades e de Corduba, em todos os estratos escavados em conjunto com cerâmicas finas e de uso comum. Os restos faunísticos de veado, corço e javali revelaram ainda uma actividade cinegética sugestiva de uma elite aristocrática residente. Os elementos osteológicos de animais como a galinha, a ovelha e o boi, a par de bivalves e peixe, permitem reconstituir a dieta da população de Castelinhos.É provável que, em novas escavações arqueológicas, as ossadas dos antigos legionários possam emergir.O escudoEntre os achados mais surpreendentes das escavações em Monte dos Castelinhos encontra-se um testemunho directo de um cenário de guerra ocorrido na segunda metade do século I a.C. – um escudo romano deixado para trás em pleno momento de abandono e destruição do sítio. Era o escudo típico dos legionários romanos da época de Júlio César. A sua descoberta em Portugal é excepcional, tanto pela raridade como pelo estado de preservação. Durante a escavação, os arqueólogos conseguiram identificar todas as peças metálicas não perecíveis, o que permitiu reconstituir as dimensões originais e até perceber a espessura dos materiais perecíveis – como a madeira e o couro – que formavam o corpo do escudo. O facto de ter sido encontrado inteiro, e não como objecto descartado, sugere que terá sido perdido em combate ou abandonado sob os escombros. A maioria das armas e equipamentos eram demasiado valiosos para serem deixados no campo de batalha e, por norma, os soldados tombados eram despojados de capacetes, espadas, armaduras e escudos. Uma cidade castigadaDoze anos de investigação trouxeram novos encontros inesperados. Com instinto de detective, João Pimenta cruzou os textos clássicos com um olhar atento sobre as imediações do antigo acampamento. Fragmentos de cerâmica dispersos no terreno suscitavam-lhe suspeitas de que algo mais poderia estar escondido. Com uma leitura cuidada do Itinerário Antonino, de Geografia, de Ptolemeu, e de Cosmografia, do anónimo de Ravena, o arqueológo questionava-se se não estaria ali a localização primitiva da cidade perdida de Ierabriga. As fontes históricas referiam uma implantação próxima da estrada entre Olisipo e Scallabis (Santarém), exercendo um domínio absoluto sobre o território. Mas esta edificação próxima do chão “salgado” do antigo acampamento militar oferecia também dúvidas, uma vez que as campanhas arqueológicas não tinham encontrado evidências de estruturas do período imperial na zona. Uma vez mais, as pás rasgaram a terra numa busca incessante que conduziu a equipa ao início do século I d.C., período em que a república romana se transformou em império com Octávio César Augusto, fundador de uma nova província na Hispânia, a Lusitânia. Nesse momento, toda a península de Lisboa estava englobada no território do município romano de Felicitas Julia Olisipo.As sondagens na vertente sul de Castelinhos revelaram dados de uma ocupação de cariz urbano, que se prolongou entre o século I d.C. e a Antiguidade tardia. Foram revelados elementos de pavimento em mosaico, o traçado de duas ruas, colunas de mármore e pedras calcárias aparelhadas que permitem confirmar estruturas habitacionais. Entre os artefactos recolhidos, contam-se pesos de tear e de rede, ânforas de produção local e importadas, cerâmicas finas, lucernas, moedas de cunhagem local e da península Itálica, um instrumento cirúrgico, fíbulas e uma agulha de bronze.A investigação socorreu-se também de meios de análise não intrusivos com o uso da prospecção geofísica no sopé do monte. Nessa planície de aluvião, as alterações do terreno derivadas do uso agrícola durante séculos não apagaram as marcas da época romana, que apresentam um bom estado de conservação. A “radiografia” do lugar revelou estruturas de edifícios provavelmente de apoio a actividades comerciais e portuárias.Esta carta do subsolo demonstra uma linha de continuidade entre as várias fases de ocupação de Castelinhos e reforça a importância da continuação do trabalho de investigação ao mesmo tempo que reclama a classificação do sítio que confira um estatuto de protecção e a criação de um circuito interpretativo aberto à visitação mesmo às portas de Lisboa.Abrem-se agora conjecturas sugestivas: terá a cidade de Ierabriga apostado no candidato errado, sofrendo depois as consequências da ira de César, que a votou ao ostracismo? Isso explicaria o abandono precipitado da estrutura pouco depois dos combates fratricidas entre romanos e a ausência posterior de menções a esta urbe, como se a mera menção à cidade despertasse os fantasmas de um período negro. As escavações prosseguem.Artigo publicado originalmente na edição nº 25 da revista National Geographic História.

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Homo Domesticator: Uma pequena história de alguns dos nossos animais domésticos

Um dos principais momentos de viragem na história humana acontece quando o homem passa não só a alimentar-se de membros selvagens de outras espécies, mas quando os passa a criar e seleccionar animais a seu bel-prazer para maximizar a sua utilidade, domesticando-os.De um ponto de vista biológico, podemos dizer que a domesticação é uma associação mutualista. Isto significa que ambos os associados têm uma vantagem em termos de fitness evolutivo nesta relação ecológica: uma das espécies controla o fitness da outra, ou seja, é responsável por decidir, com base em critérios que define, que indivíduos da outra têm maior sucesso reprodutor e quais se tornarão becos sem saída evolutivos.No geral, tendemos a pensar na domesticação como um processo exclusivamente humano, mas isto não corresponde à verdade. Em qualquer definição razoável de domesticação, teremos que incluir os fungos cultivados por diversas espécies de insectos, incluindo certos grupos de formigas. E há ainda quem defenda que a relação de certas outras espécies, como dos peixes Stegastes nigricans e das algas Polysiphonia, constitui uma espécie de domesticação incipiente.No entanto, que se saiba, os humanos são claramente os campeões desta actividade, tendo estabelecido relações deste tipo com centenas de espécies animais e vegetais distintas. Olhemos então para a história da domesticação de algumas das espécies animais mais importantes no desenvolvimento das sociedades humanas, numa lista que está longe de ser exaustiva.

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Impressão 3D: já estivemos mais longe de imprimir tecidos vivos

As impressoras 3D permitem dar asas à imaginação e à criatividade. Não é estritamente necessário ter noções de modelagem 3D para usar uma, já que existe uma grande quantidade de projectos na Internet à espera de serem materializados. Com um destes dispositivos em casa, é possível fabricar uma grande variedade de objectos, desde peças de reposição para máquinas até artigos de uso diário, como elementos de decoração, brinquedos e ferramentas.No entanto, a impressão 3D vai muito além. Descobriu-se que tem um enorme potencial na medicina e na investigação. Com esta tecnologia, é possível fabricar próteses personalizadas, implantes e modelos anatómicos para planear cirurgias e até mesmo imprimir órgãos. É o que se conhece como bioimpressão, e é uma das técnicas mais promissoras no campo da medicina regenerativa. Com ela, é possível moldar diferentes tecidos e estruturas orgânicas, restaurando órgãos danificados.A bioimpressão através de impressoras 3D cria estruturas biológicas camada por camada, utilizando células vivas e biomateriais para fabricar os órgãos e tecidos artificiais, que utilizam modelos digitais criados a partir de imagens médicas (como ressonâncias magnéticas ou tomografias). Um grupo de investigadores fez um grande avanço que pode revolucionar o futuro da medicina regenerativa ao desenvolver uma minúscula impressora 3D capaz de criar tecido biológico a partir do interior do próprio corpo.TEM O TAMANHO DE UM GRÃO DE SALAndrea Toulouse é uma cientista especializada nas áreas de microóptica e impressão 3D. O seu trabalho levou-a a liderar o grupo de investigação 3D-printed Microoptics and Simulation no Instituto de Óptica Aplicada da Universidade de Estugarda, e a sua investigação centra-se no desenvolvimento de sistemas de microóptica e micro-câmaras ultra-compactas utilizando impressão 3D.Toulouse recebeu dois milhões de dólares em financiamento da Fundação Carl Zeiss (uma das fundações empresariais mais antigas da Alemanha, que tem como objectivo garantir o futuro a longo prazo das duas empresas da fundação, Carl Zeiss AG e SCHOTT AG, e promover a ciência), cujo nome será familiar a muitos leitores pelas suas lentes oftálmicas. Esse dinheiro foi investido na criação de um novo grupo de pesquisa chamado 3DEndoFab.Embora as técnicas tradicionais de bioimpressão permitam criar tecidos como cartilagem e músculo, elas têm certas desvantagens. Uma das principais é que o tamanho das máquinas de impressão 3D é demasiado grande para operar com precisão no corpo humano. Por isso, a abordagem de Toulouse centra-se na miniaturização da tecnologia de impressão 3D, para que esta possa viajar através de uma fibra óptica fina e resolver as desvantagens actuais. Este sistema permitiria imprimir estruturas complexas directamente onde o corpo necessita delas e eliminar a necessidade de transplantar tecido pré-cultivado.A solução proposta porToulouse e a sua equipa é a impressão 3D baseada em luz, guiada através de uma fibra de vidro mais fina do que a ponta de um lápis. Na ponta da fibra haveria uma minúscula lente impressa em 3D, do tamanho de um grão de sal. Essa lente seria responsável por focar a luz laser para curar as bio-tintas (materiais biocompatíveis que contêm células vivas e outros biomateriais), camada por camada, no tecido vivo.Para a investigação, a equipa 3DEndoFab colaborou com o Michael Heymann, do Instituto de Biomateriais e Sistemas Biomoleculares da Universidade de Estugarda, para aperfeiçoar o processo de impressão e criar bio-tintas que se integrem com segurança no corpo. Investigações anteriores demonstraram a viabilidade do uso de pulsos de laser ultra-curtos de femtossegundos para imprimir estruturas em 3D através de fibras ópticas. Agora que o projecto está em curso, Toulouse quer dar um passo adiante e obter uma resolução de impressão em escala micrométrica usando materiais biodegradáveis compatíveis com células vivas.Mas não é só isso. Andrea Toulouse planeia integrar o seu grupo na nova rede de investigação de Inteligência Biónica de Tubinga-Estugarda (BITS), que é uma colaboração entre a Universidade de Estugarda, a Universidade de Tübingen, o Instituto Max Planck de Sistemas Inteligentes e o Instituto Max Planck de Cibernética Biológica, parte do Cyber ​​Valley (o maior centro de investigação e desenvolvimento de excelência da Europa em inteligência artificial e robótica moderna).

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Da Ásia para o mundo

Na Península Ibérica, onde se concentram diversas empresas já dedicadas à produção de macroalgas, o seu cultivo representa menos de 0,002% do sector da aquicultura. Cerca de 95% da produção global ainda provém da Ásia, onde as algas fazem parte da dieta tradicional em muitos países, ao contrário da realidade ibérica. Em parte isso deve-se à neofobia, a recusa de provar novos alimentos. Por outro lado, a sua distribuição ainda não é generalizada.Das algas vermelhas (ilustradas na fotografia) extrai-se a carragenina, muito utilizada pela indústria alimentar como gelificante, espessante, estabilizante e aglutinante de proteínas.

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A primeira aldeia de montanha de Portugal eleita pela ONU como uma das melhores do mundo

A paisagem vai-se transformando ao longo de lentas estradas de montanha até chegar a uma aldeia a 770 metros de altitude, encaixada no único vale glaciar habitado permanentemente em Portugal, rodeada por cumes que roçam os 2.000 metros.Aqui, tudo é natureza em estado puro: os riachos correm frios sobre o solo rochoso, formando cascatas e lagos, enquanto os socalcos construídos ao longo de séculos para sustentar a agricultura numa orografia tão difícil formam uma paisagem evocativa. O local é conhecido como a “Suíça portuguesa” e a Organização Mundial do Turismo das Nações Unidas (OMT) ficou fascinada e escolheu, além de Mértola e Vila Nogueira de Azeitão, esta localidade do centro de Portugal para a sua lista anual de “Best Tourism Villages” (Melhores Aldeias Turísticas, numa tradução livre), com a qual distingue “as aldeias rurais onde o turismo preserva a cultura e as tradições, celebra a diversidade, gera oportunidades e protege a biodiversidade” .No coração do Parque Natural da Serra da Estrela, uma das maravilhas naturais de Portugal, Loriga é uma pequena aldeia de montanhaonde a estética alpina se funde com a névoa atlântica e a cadência do fado do sotaque português. O resultado parece muito atraente. A sua cronologia histórica conta com mais de 2.600 anos de história como povo ligado à agricultura e à pastorícia ancestral. Aqui, há mais de 20.000 anos, um glaciar escavou o valeem forma de U. Os estudos do Centro de Geociências da Universidade de Coimbra documentam a presença de circos glaciares escalonados – Covão Boieiro, Covão do Meio, Covão da Nave, Covão da Areia – que sobem como degraus geológicos em direcção aos cumes. Na Eira da Pedra, uma antiga propriedade agrícola assenta sobre um bloco de pedra de dimensões ciclópicas arrastado pelo gelo, oferecendo uma vista vertiginosa do vale. Mais abaixo, a cascata de Calhão Mogueiro deixa cair os seus dez metros de água cristalina num poço natural rodeado de granito escuro, onde a água repousa um pouco antes de continuar o seu curso por um desfiladeiro encaixado, entre afloramentos de granito, em direcção aos campos de Loriga. Várias rotas penetram na Garganta de Loriga e oferecem as melhores vistas e outros enclaves montanhosos míticos, como o Covão Boieiro, uma depressão formada a 1.730 metros de altitude a partir da erosão do gelo do glaciar Loriga. Estas são apenas algumas das coordenadas alpinas que atraem os caminhantes a Loriga.Capital do vale desde o século XII até 1855, foi outrora sede de dezenas de fábricas têxteis que transformaram esta aldeia serrana num dos núcleos mais industrializados – e ricos, como demonstra o seu património monumental – da Beira Interior. Hoje partilha um ambiente de especial beleza paisagística com algumas das mais belas aldeias de Portugal. O encerramento destas fábricas no século XX forçou o êxodo rural. Embora, paradoxalmente, tenha semeado a semente do que hoje é a sua maior força: a resiliência e a preservação de uma identidade cultural íntegra. Hoje, os rebanhos continuam a fazer parte da paisagem e, todas as noites, de 10 a 11 de Novembro, nas Chocalhadas de São Martinho, os pastores percorrem as ruas tocando os sinos roubados ao gado para “afugentar os maus espíritos”. A lã continua a ser trabalhada artesanalmente, mas agora com o resultado de artigos para recordação e colecção.DESFRUTAR SEM DEIXAR MARCASOs tempos mudam e agora o seu cordão umbilical é o turismo, pelo que este reconhecimento da ONU chega como uma chuva de Abril. Mas o que é que fascinou tanto para incluir Loriga no clube selecto? A OMT valorizou a integração do turismo na vida comunitária, o respeito pelo ambiente montanhoso e a aposta num desenvolvimento digital sustentável. No seu comunicado oficial, destaca-se que a aldeia preserva a autenticidade da sua cultura serrana e da sua paisagem glaciar, combinando sustentabilidade, património e novas tecnologias ao serviço do visitante. E assim, de forma sustentável, é como visitamos Loriga.A aldeia desenvolveu uma aplicação móvel que promove o turismo responsável com percursos ecológicos, ligação com produtores locais e dados em tempo real sobre a afluência aos diferentes locais. A ferramenta digital ajuda a distribuir o fluxo turístico, protegendo as zonas mais frágeis do vale glaciar e garantindo que os benefícios económicos permaneçam na comunidade. É a tecnologia ao serviço da conservação: “a sustentabilidade está integrada na vida quotidiana, com iniciativas ecológicas e projetos turísticos que protegem o delicado ambiente alpino”, destaca a ONU. Tudo isso faz com que, além dos apelidos turísticos, Loriga se destaque como um exemplo de algo mais urgente: a possibilidade de que as zonas rurais montanhosas não apenas sobrevivam, mas prosperem sem renunciar à sua identidade.

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Fotogaleria: um caleidoscópio coralino

Fervilhando de vida, os recifes de coral ocupam menos de 1% do leito oceânico, mas asseguram o sustento de 25% das espécies marinhas. Estes centros de biodiversidade enfrentam actualmente ameaças à sua existência, entre as quais o aquecimento e a acidificação dos oceanos, o avanço da pesca destrutiva e a poluição. A sua beleza avassaladora foi a primeira característica que chamou a atenção da fotógrafa Georgette Apol Douwma numa viagem à Grande Barreira de Coral, na década de 1970. Cerca de 40 anos mais tarde, depois de muitos mergulhos e milhares de imagens, Georgette começou a reimaginar o seu catálogo, duplicando e invertendo imagens para criar padrões simétricos semelhantes a um caleidoscópio. Os resultados realçam a vitalidade e o brilhantismo destas vulneráveis maravilhas subaquáticas que a seguir identificamos:Artigo publicado originalmente na edição de Junho de 2024 da revista National Geographic.

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Uma capa da National Geographic entre as 25 mais influentes de todos os tempos

A capa da National Geographic de Junho de 2018 foi reconhecida pelo jornal The New York Times como uma das 25 mais influentes de todos os tempos. Talvez, pela proximidade da data – e tendo em conta que outras peças da lista remontam ao início do século XX –, se lembre dela: é aquela em que aparece um saco plástico emergindo do oceano, como se fosse um icebergue. A imagem poderosa acompanhava com precisão uma notícia preocupante: na época, 8 milhões de toneladas chegavam todos os anos aos nossos oceanos. Hoje, o número subiu para quase 15, de acordo com a organização Oceana.A obra conceptual viajou pelo mundo antes de se tornar o complemento perfeito para a nossa icónica moldura amarela. Foi criada pelo artista visual mexicano Jorge Gamboa em 2017, o mesmo ano em que ganhou um prémio na Bienal de Design e Cartaz da Bolívia. A partir daí, “Plasticeberg” despertou o interesse de diversas iniciativas, entre as quais se encontravam a Greenpeace e a Organização das Nações Unidas (ONU). O segredo do seu sucesso, a linguagem universal: um saco de plástico é um elemento presente em talvez todas as casas e, ao mesmo tempo, é representativo do problema da poluição que o nosso planeta enfrenta. COMO JORGE GAMBOA REALIZOU A FOTOGRAFIA DA NOSSA CAPAO processo criativo de Jorge Gamboa partiu de uma ideia simples, tal como ele mesmo explicou na Bienal: transformar um objecto quotidiano, que todos temos em casa, num símbolo da crise global. Assim, no seu estúdio, trabalhou com sacos de plástico submersos em água e cuidadosamente iluminados para simular a forma de um icebergue.O objectivo era transmitir, com uma única imagem, a magnitude do problema ambiental que geralmente permanece oculto sob a superfície. Para conseguir o efeito desejado, o artista utilizou uma técnica de composição digital que mistura fotografia tradicional com retoques. Assim, conseguiu que o saco parecesse emergir do oceano, dando a ilusão de um icebergue prestes a derreter. Além disso, a escolha de cores frias, azuis e brancas, reforçou o paralelismo com o Árctico.A montagem, por sua vez, não exigiu grandes recursos técnicos, mas sim um olhar conceptual poderoso. Na verdade, a simplicidade do resultado final foi fundamental para que a peça transcendesse. O QUE ESTA CAPA SIGNIFICOU PARA A NATIONAL GEOGRAPHICPara a National Geographic, publicar a capa com o “Plasticeberg” em 2018 significou um ponto de inflexão em termos de comunicação ambiental. Por mais de um século, a revista tem procurado narrar a relação do ser humano com a natureza, mas esta imagem em particular condensou num piscar de olhos a urgência da mudança e demonstrou o poder do jornalismo visual para influenciar debates internacionais, como a luta contra a poluição por plásticos.O impacto foi imediato: gerou conversas nas redes sociais, foi replicada nos orgãos de comunicação de todo o mundo e usada como ferramenta educacional em escolas e universidades, além de impulsionar a campanha #PlasticOrPlanet.Não à toa o júri do The New York Times destacou-a na sua selecção, deixando de lado, por exemplo, o retrato de Sharbat Gula de 1985: “Havia uma [capa da National Geographic] que achei que todos escolheríamos, e por isso não o fiz: a menina afegã de olhos verdes”, disse a artista Martha Rosler. “Gosto mais desta: é conceptual”, acrescentou o editor Adam Moss. “Esta faz-nos pensar. Nunca a tinha visto”, concluiu a jornalista Gayle King.

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Se vai beber, qual a forma mais ‘saudável’ de o fazer?

Durante décadas, a ideia de beber com moderação, como beber um copo de vinho ao jantar ou cocktails no fim-de-semana, foi enquadrada num estilo de vida saudável – um ritual queaté poderia proteger o coração. Agora, porém, a investigação mostra que não existe nenhum nível “seguro” para o consumo de álcool.“Apesar de gostarmos que assim fosse, nunca nenhum estudo demonstrou um efeito protector ou benéfico do álcool”, diz Patricia Molina, investigadora de fisiologia na Universidade Estadual do Louisiana (EUA), cuja investigação se foca no impacto do álcool no organismo.Isso não significa que cada golo acarrete o mesmo risco – mas levanta uma nova questão: o que significa “beber com moderação” e quanto é demasiado? Embora nenhuma quantidade de álcool seja inteiramente isenta de riscos, há níveis de consumo que podem causar menos mal – e reduzi-los, mesmo que ligeiramente, pode fazer uma diferença mensurável.“Se quiser fazer alguma mudança no seu comportamento que seja útil para diminuir o risco de várias condições de saúde crónicas, reduzir o consumo de álcool poderá ser uma maneira fácil e modificável de o fazer”, diz Andrea Weber, psiquiatra e especialista em adição na Universidade de Iowa (EUA). “Até beber menos do que bebe actualmente pode ter um efeito geral positivo”.O que o álcool faz ao organismo? Assim que o álcool entra na corrente sanguínea, o fígado começa a decompô-lo. Ao fazê-lo, produz acetaldeído, um composto altamente reactivo e carcinogénico que é responsável por muitos dos danos causados pelo álcool. “Quando bebemos álcool, cada célula do nosso organismo, cada órgão do nosso corpo, fica exposto ao álcool”, diz Molina. “Isso explica porque muitos órgãos que não achamos que sejam afectados pelo álcool, sofram consequências.”O consumo de álcool está associado a mais de 200 condições de saúde, incluindo doença cardíaca, demência, perda muscular, osteoporose e vários tipos de cancro, incluindo cancro da mama. Para além de contribuir para vários problemas de saúde, “pode acelerar o processo de envelhecimento”, diz Molina. “É quase como se fosse um fardo adicional suportado pelo nosso organismo, que faz com que muitos dos nossos sistemas comecem a evidenciar um fenótipo mais velho numa idade mais precoce.”Para algumas pessoas que têm uma mutação num gene que processa o acetaldeído, o risco de desenvolver condições de saúde relacionadas com o álcool é ainda maior porque o seu organismo demora mais tempo a processar o acetaldeído. “Se tiver uma dessas variantes genéticas, quando bebe álcool, terá uma reacção ruborizante”, diz Iona Millwood, epidemiologista da Universidade de Oxford (Inglaterra). “É mesmo desagradável. A pessoa fica toda vermelha. O coração começa a bater mais depressa. A pessoa não se sente bem porque não está a metabolizar devidamente o álcool e este metabolito tóxico do álcool persiste na circulação.”Esta mutação é mais prevalecente entre pessoas com ascendência da Ásia Oriental e significa que têm um risco muito maior risco de desenvolver condições de saúde relacionadas com o álcool, nomeadamente cancro, caso beba. “O limiar para o risco de cancro é muito mais baixo”, diz Che-Hong Chen, investigador da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford (EUA), cuja investigação incide no estudo destas variantes genéticas.Quais os riscos de beber com moderação?Historicamente, a maioria dos estudos sobre os efeitos de saúde do consumo de álcool têm sido realizados perguntando às pessoas sobre os seus hábitos de consumo e depois acompanhando-as ao longo de anos ou décadas, de modo a ver o tipo de problemas de saúde que se manifestam.Nestes estudos, os investigadores observaram aquilo a que se chama uma curva J. As pessoas que bebiam moderadamente aparentavam viver mais tempo do que as pessoas que bebiam muito e as pessoas que se abstinham completamente. Isso parecia sugerir que uma pequena quantidade de álcool poderia ser benéfica para nós.No entanto, “não é necessariamente uma relação causal, porque o álcool está frequentemente correlacionado com muitos outros factores que afectam a saúde”, como fumar, condições de saúde pré-existentes, estatuto socioeconómico ou padrões de alimentação, diz Millwood.Estes factores de confusão podem fazer com que o consumo de álcool pareça mais saudável do que é. Por exemplo, as pessoas com problemas de saúde deixam frequentemente de beber devido a esses problemas, o que pode criar aquilo que se conhece como um efeito de causalidade inversa, no qual foi o problema de saúde que levou à eliminação do álcool em vez de ser a ausência de álcool a causar os problemas de saúde.O consumo moderado de álcool, que costumava ser considerado um nível de consumo saudável, está frequentemente associado a outros factores que contribuem para um estilo de vida saudável, como um rendimento mais alto, uma dieta mais nutritiva e melhor acesso a cuidados de saúde, que podem ajudar a mascarar os danos causados pelo álcool ao organismo.Beber com moderação também pode ser difícil de estudar, uma vez que os padrões de consumo de uma pessoa podem mudar de dia para dia ou de ano para ano. “O grupo moderado é, provavelmente, o grupo mais heterogéneo de todos os grupos que bebem, porque podem beber imenso no ano a seguir e beber pouco nos outros anos”, diz Carolina Kilian, epidemiologista da Universidade do Sul da Dinamarca.Quando conseguiram identificar estes factores de confusão, os investigadores descobriram um padrão claro de riscos de saúde associados ao álcool e uma probabilidade de desenvolver problemas de saúde crónicos a par com o aumento do consumo de álcool.Até beber pouco pode aumentar acentuadamente os riscosNo que diz respeito ao álcool, o perigo não aumenta gradualmente – acelera. Estudos mostram que, à medida que o consumo de álcool aumenta, o mesmo acontece à probabilidade de desenvolver problemas de saúde, desde cancro a doença cardíaca e hepática.E o ponto de viragem é mais cedo do que a maioria das pessoas pensam. Conforme exposto em dois grandes relatórios governamentais sobre todas as causas de mortalidade, que se refere à morte por qualquer causa relacionada com o álcool, este aumento do risco acontece por volta de uma bebida por dia, com o risco de morte por causas relacionadas com o álcool a aumentar de 1 em 1.000 para 1 em 100.O Relatório de Orientações sobre o Álcool e a Saúde, elaborado no Canadá e publicado em 2023, estima que este aumento do risco acontece quando se passa de duas bebidas por semana para três a seis bebidas por semana. O Estudo sobre o Consumo de Álcool e a Saúde, que é elaborado pelo Departamento da Saúde e Serviços Humanos dos EUA, usa uma metodologia semelhante e estima que este aumento do risco acontece quando se passa de sete bebidas por semana para nove bebidas por semana.“O risco aumenta muito depressa”, diz David Streem, psiquiatra e director clínico do Centro de Recuperação de Álcool e Drogas na Cleveland Clinic (EUA).Benefícios para a saúde de reduzir o consumo de álcoolUma vez que os efeitos do álcool aumentam com cada golo, até pequenas reduções na quantidade que bebe podem ter efeitos mensuráveis. Reduzir o consumo de álcool não só diminui o risco de desenvolver doenças, como pode ajudar o organismo a começar a auto-reparar-se.Para ajudar as pessoas a perceberem como o consumo de álcool contribui para a sua saúde em geral, o Relatório de Orientações sobre o Álcool e a Saúde, elaborado no Canadá, criou uma ferramenta que estima o risco de morrer devido a causas relacionadas com o álcool e estima o impacto de cada bebida na esperança de vida.“Para uma pessoa média, que bebe uma bebida por dia ao longo de toda a sua vida, espera-se que cada uma dessas bebidas retire cerca de cinco minutos de sua esperança de vida”, diz Tim Stockwell, investigador e director do Instituto Canadiano para a Investigação do Consumo de Substâncias da Universidade de Victoria.O risco diminui se uma pessoa reduzir o consumo de álcool e as directrizes canadianas estimam que o consumo de duas bebidas por semana tenha um impacto quase negligenciável na saúde geral de uma pessoa e na sua esperança de vida.No que diz respeito ao cancro, o risco acelera com um consumo de álcool mais elevado. No entanto este risco pode ser suavizado. “Muitas das doenças relacionadas com o álcool ou os riscos de cancro são reversíveis”, diz Chen, comentando que alguns estudos mostram que, quando uma pessoa pára de beber, o seu fígado e cérebro podem recuperar e os riscos de cancro diminuírem.Para outras condições de saúde crónicas, como doença cardíaca, doença hepática ou diabetes, reduzir pode ter um impacto benéfico, sobretudo se for feito precocemente. “Reduzir antes de desenvolver a doença, isso é que é mesmo importante”, diz Mike Ren, médico de família na Baylor College of Medicine.Para pessoas com condições de saúde associadas ao consumo de álcool, como doença cardíaca ou diabetes, reduzir o consumo pode ajudar a gerir melhor a sua condição. “Quando acrescentamos álcool a condições já existentes, estamos a piorar a situação”, diz Molina.Segundo a experiência de Weber, iniciativas como o Janeiro Seco ou o Outubro Sóbrio têm a vantagem de proporcionar uma desculpa socialmente aceitável para não consumir álcool. “O álcool faz tanto parte da nossa cultura que as pessoas nem se apercebem que podem ter amigos, colegas ou familiares com problemas relacionados com o consumo de álcool”, diz Weber.Como demonstrado por alguns estudos, as pessoas que eliminam o consumo de álcool durante um mês dão por si a beber menos depois de esse mês acabar, mesmo que não decidam eliminar o álcool completamente.“Muitas pessoas que experimentaram [o Janeiro Seco], talvez não tivessem um problema de alcoolismo, mas perceberam o quão melhor se sentiam, quão melhor dormiam, quão melhor era a sua energia, quão melhor era a sua força”, diz Streem. “Sentiram-se simplesmente melhores quando eliminaram o álcool da sua vida durante um mês.”Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Uma grande dose de humildade

Mihail Minkov tirou esta fotografia no deserto de Wadi Rum (Jordânia), tentando  exprimir um sentimento que ele próprio experimenta perante o céu nocturno: o tamanho minúsculo da humanidade comparado com a vastidão do universo."Sempre que saio para fotografar o céu à noite, sinto-me invadido por um sentimento de humildade e gratidão pela minha existência. É como se os meus problemas diminuíssem em comparação, e lembro-me do imenso amor que tenho pela minha família e da beleza da própria vida, fazendo com que tudo o resto pareça trivial", contou o fotógrafo. Assim, sabemos que a pessoa que aparece – pequena e distante – nesta fotografia não é acidental; pelo contrário, é a essência da sua mensagem.A imagem, originalmente intitulada pelo seu autor The Vanity of Life, foi seleccionada no concurso Milky Way Photographer of the Year 2024, organizado pelo blogue Capture the Atlas.

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Como está a seca a afectar o lago Mornos, na Grécia

A barragem de Mornos, com contorno em forma de X, fica no centro da Grécia, a cerca de 260 quilómetros de Atenas, e nos últimos anos tem sofrido uma grave diminuição do seu volume de água. As imagens mais recentes captadas pelo Copernicus Sentinel-2 demonstram isso mesmo: a da esquerda foi captada a 3 de Janeiro de 2022 e a da direita a 9 de Outubro de 2025. A comparação revela uma realidade comum a vários países do sul da Europa: o impacto da seca na gestão dos recursos hídricos. De acordo com os dados das autoridades gregas, citados pelo Copernicus, o lago perdeu praticamente metade do seu volume desde 2022 até à data: de 19,1 km² no início desse ano para 8,7 km² na última medição, realizada em Setembro de 2025. Tal como se pode observar na fotografia de satélite, o reservatório recuou consideravelmente. UMA IMAGEM VALE MAIS DO QUE MIL PALAVRASOs dados fornecidos pelo Copernicus permitem-nos compreender visualmente os efeitos deste problema. Da mesma forma, a NASA é outra entidade que fornece imagens de satélite deste tipo, como a que evidenciou em 2023 o impacto da seca no Canal do Panamá: uma câmara ofereceu-nos uma vista da acumulação de navios à espera do lado do Pacífico.Por sua vez, o lago Mornos não é navegável. No entanto, o que ele revela do espaço é um importante recuo das águas que, já em 2024, deixou submersa a vila de Kallio, desabitada em 1980 para construir a barragem que abasteceria Atenas a partir de então. 45 anos depois, o reaparecimento da aldeia é um símbolo dramático da escassez de água. A situação em Mornos soma-se a uma tendência preocupante em toda a Grécia, onde as barragens estão em níveis historicamente baixos, causando impactos tanto no consumo humano como na agricultura.A SECA EM 2025Porém, a crise hídrica não se limita à Grécia. Os padrões climáticos anormais dos últimos anos intensificaram a seca na bacia mediterrânea, com Espanha e Portugal também a registarem níveis de reservatórios abaixo da média. As chuvas de Março de 2025 puseram fim à seca prolongada, mas os especialistas alertaram que a escassez de água poderia voltar em breve e ser ainda mais grave.Ampliando ainda mais o foco, em continentes como África e América, estes eventos estão a apresentar características cada vez mais extremas: por exemplo, em Setembro de 2024, o governo da Namíbia relatou a pior seca dos últimos 100 anos de sua história e, também no final do ano passado, mais de 1.700 escolas e 760 centros de saúde no Brasil fecharam as portas ou ficaram temporariamente inacessíveis devido aos baixos níveis de água, de acordo com dados da ONU.A vulnerabilidade de grandes capitais como Atenas, apesar de contarem com grandes infra-estruturas como a barragem de Mornos, sublinha a necessidade de diversificar as fontes de abastecimento e melhorar a interligação das redes hídricas. Além disso, o planeamento hidrológico deve integrar os cenários mais pessimistas das alterações climáticas para garantir o direito fundamental à água às gerações presentes e futuras.

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Hildegarda de Bingen, a freira visionária do século XII que inspirou a cultura pop

A indústria livreira tem sido pródiga no destaque ao justo e importante papel das mulheres na História. O foco nas pioneiras cientistas que foram esquecidas ou menorizadas pelos seus colegas masculinos é uma constante em revisionismos recentes que destacam nomes como Rosalind Franklin, Hipátia de Alexandria ou Ada Lovelace.Raramente estas obras remontam aos tempos medievais, apelidados de obscuros muitas vezes injustamente, ou nos lembraríamos de ligar ciência e religião; e, no entanto, brilha no século XII europeu uma mulher algo misteriosa, cruzamento entre cientista, visionária mística e artista de sensibilidade cosmológica, que ficou conhecida pelo estranho, e bastante cool, nome de Sibila do Reno.Uma freira visionáriaNa Grécia Antiga, as sibilas eram afamadas pelas suas certeiras previsões; e, na Idade Média, Hildegarda de Bingen desenvolveu um trabalho verdadeiramente avant-garde em... bem, em várias áreas. A sua influência é tão grande que é unanimemente considerada como a fundadora das investigações de ciências naturais em território alemão.À altura de Hildegarda, o que conhecemos hoje como Alemanha era um conjunto de estados sob o domínio do Sacro-Império Romano Germânico. Aquela que seria futuramente a abadessa do beneditino mosteiro de Disibodenberg, na Bingen que se viria a colar ao nome, nasceu numa pequena cidade no Palatinado do Reno, a oeste do país. São confusos os registos sobre a sua infância – a própria Hildegarda, que escreveu uma auto-biografia, não dá muitos pormenores –, mas conta ela que, já na infância, começa a sofrer aquilo de que chama “visões”. Recorrentes em praticamente todas as religiões, o dom da visão é reconhecido como um talento para a profecia, interpretando sinais para adivinhar o futuro. Podem surgir através de conhecimento súbito, imagens que se manifestam à frente do visionário ou então manifestações físicas. Acreditando-se ou não na sua veracidade, é um facto que tiveram uma reconhecida importância na definição da História. A famosa “Visão de Constantino” pode ter sido uma criação dos primeiros bispos cristãos para reforçar o poder da sua religião no Império Romano, mas resultou nisso mesmo. A igreja mormon surgiu precisamente quando o seu profeta Joseph Smith afirmou ter contactado um anjo chamado Moroni; e a criação científica de Descartes foi influenciada por uma série de sonhos que este teve numa noite em 1619. Hildegarda afirmava ver no seu interior aquilo que chama o reflexo da luz viva, descrevendo experiências de profunda espiritualidade e brilho intenso que a fizeram decidir abraçar a vida monástica aos 14 anos.Hildegarda nunca escondeu este seu pendor místico. Aliás, muitas vezes se serviu dele para afrontar superiores religiosos masculinos quando estes lhe queriam impedir os desejos religiosos. Em 1136, por exemplo, quando o abade beneditino responsável pelo seu convento lhe negou e às suas colegas freiras a mudança para um local mais isolado e despojado, Hildegarda comunicou directamente esta vontade ao bispo de Mainz, que lha concedeu. Quando mesmo assim o abade resistiu, a futura abadessa caiu de cama, paralisada, revelando que, no fundo, Deus estava zangadíssimo com o abade... que finalmente cedeu às suas pretensões.Hildegarda falava naturalmente dos seus estados extra-sensoriais nas cartas que escreveu (revelou-o a Bernardo de Claraval, provavelmente a pessoa mais importante dentro da ordem beneditina na Idade Média) e parecia convencida que a tal luz viva lhe revelaria verdades não só sobre a divindade maior, mas também as suas criações. Que é como quem diz... o mundo. A sua influência tornou-se importante entre imperadores e papas, mas o curioso é que esta figura cujas opiniões eram tidas como importantes possuía apenas um conhecimento básico de Latim e o mínimo sobre Teologia. No entanto, a maneira como se expressa na sua prosa, nas muitas obras que escreveu, revela um estilo grandioso e uma auto-confiança inabalável, retorquindo aos que lhe apontam falta de educação formal que age por instinto divino e um conhecimento auto-didacta. Uma obra todo-o-terrenoE esse conhecimento, vendo pela sua extensa obra, tornou-a numa curiosa que enveredou por variados campos de conhecimento, quer em número ou variedade. Os seus três livros sobre teologia e doutrina, reunidos num codex único hoje em dia, são a interpretação das suas visões místicas íntimas e atravessam temas que vão desde o confronto moral no ser humano até à origem radical da vontade divina. Amplamente ilustradas, são um olhar muito próprio sobre as imagens que a freira alegava ver nos seus momentos a solo, com uma panóplia de criaturas e iconografia que não destoaria da capa de um álbum dos Beatles.No prolongamento desta visão extática da religião, Hildegarda foi também uma prolífica compositora. Sendo a música uma parte fundamental das celebrações litúrgicas medievais – como, aliás, ainda hoje acontece – o seu trabalho foi não só prático mas teórico. Sobrevivem 69 peças musicais suas, para além de um conto dramático sobre moral, comum nos tempos medievais... mas neste caso, a obra, de nome Ordo Vitutum (“Ordem das virtudes”), não só é a primeira do seu género, mas também contém uma partitura musical paralela. Apesar de monofónica, a sua música desenvolve algumas técnicas musicais pouco comuns na sua altura, como melismas, que mostram uma certa riqueza criativa.Mas como escrevemos no início, esta pioneira abadessa é considerada a figura seminal nas ciências naturais alemãs. A ideia de que o cristianismo é um inimigo natural do progresso científico é um conceito que deve bastante ao espectro da Inquisição a partir do século XVI. Na verdade, perante o caos da queda do Império Romano no século V, foram os mosteiros principalmente que garantiram a preservação e permanência de todo o corpus de saber clássico grego e romano, fundamental para a escolástica da Idade Média.Praticamente todos os indivíduos que contribuíram para o avanço da ciência neste período eram monges – vejam-se, por exemplo, Roger Bacon, William de Ockham e Arnaldo Villanova. Ao contrário da sua obra teológica, as investigações científicas de fabulosa religiosa de Bingen centravam-se naquilo que mais tarde, durante o Renascimento, seria designado de experiencialismo. Ela não só leu boa parte da biblioteca do mosteiro de Bingen, como, através da actividade monástica comum de jardinagem e apoio médico aos leigos, ganhou experiência em disciplinas científicas como biologia e medicina. Hildegarda usou ocasionalmente alguns métodos que hoje não classificaríamos como rigorosos – afinal, descreve a utilização, por exemplo, de pedras preciosas em alguns tratamentos e mantém uma abordagem típica medieval com a teoria dos quatro humores e o uso de sangramentos. Por outro lado, não só documentou, como explicou em pormenor e em esquemas claros os seus tratamentos, as propriedades medicinais de certas plantas e também a importância de analisar matérias como a urina e as fezes. Também enfatizou pequenos procedimentos como, por exemplo, o aquecimento da água quando usada para tratar infecções. Ainda que imperfeita, a sua abordagem foi uma novidade no meio medieval europeu, nesta altura ainda a muitas léguas dos seus contemporâneos muçulmanos, cujos estudos científicos eram bastante mais completos.O seu legado é tão relevante no conhecimento como na atitude. Em vez de se fechar no mosteiro, Hildegarda embarcou naquilo que hoje chamaríamos num circuito de conferências durante parte da sua vida. É preciso lembrar que nesta altura, não era nada comum que a população desse importância a uma mulher em questões tão centrais como religião. As pessoas não só a respeitavam, como queriam ouvi-la, sem ligar a questões de género. Do que sabemos destes demonstrações públicas, Hildegarda era versada em retórica, um campo habitualmente masculino, o que mostra uma mulher que ignorava as limitações do seu tempo, usando o seu púlpito para denunciar a corrupção clerical e pedir reformas.A sua morte em 1179, com 81 anos, não lhe amputou a influência: desde o movimento new age, devido à sua abordagem holística à medicina, até aos músicos de vanguarda e pop, principalmente os do centro da Europa, Hildegarda é uma daquelas mulheres cuja passagem pela História é demasiado profunda para ser ignorada.

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Nem formigas, nem feiticeiras: as vespas da família Mutillidae

Membros da família das vespas Mutillidae, os mutilídeos destacam-se da maior parte das restantes pelo extremo dimorfismo sexual, ou seja, pelo aspecto radicalmente diferente que os machos e as fêmeas apresentam.Enquanto os machos são reconhecíveis facilmente como vespas –  embora se afastem da imagem clássica, associada às cores amarela e preta –, as fêmeas têm um aspecto muito distinto. Tipicamente envergando padrões complexos de branco, preto e vermelho, são, ao contrário dos machos, ápteras, não possuindo portanto asas e passando a sua vida no solo.Sem asas, torna-se óbvio o parentesco próximo com as formigas, e é essa aparência que faz com que, no léxico comum, estes coloridos insectos sejam apelidados de “formigas-feiticeiras”. Outro nome comum para as vespas da família Mutillidae é “formigas-de-veludo”, uma vez que o seu corpo é coberto total ou parcialmente por pilosidade abundante, o que não acontece com a maior parte das formigas. Em Portugal, estão descritas umas poucas dezenas de espécies pertencentes a esta família, com representantes, p.e., dos géneros Smicromyrme, Dasylabris ou Rosinia.Como vivem os mutilídeos?As vespas mutilídeas são vespas solitárias, não vivendo em colmeias nem, na verdade, interagindo umas com as outras para lá da cópula. Depois de acasalar, a fêmea procurará um ninho de uma abelha ou vespa que nidifique no solo e, entrando no mesmo, depositará os seus ovos junto dos ovos ou larvas que lá existirem. Estes, ao eclodir, alimentar-se-ão destas, levando-as à morte, como é típico dos parasitóides. Os adultos, por seu turno, alimentam-se tipicamente de néctar, e podem por vezes ser encontrados alimentando-se em flores.Algumas espécies são nocturnas, mas outras podem por vezes ser encontradas durante o dia deambulando pelos seus habitats preferenciais. Tal como outras vespas, o seu sistema de determinação sexual baseia-se na haplodiploidia, em que ovos não fecundados dão origem a machos com uma cópia de cada cromossoma e ovos fecundados dão origem a fêmeas com duas cópias dos mesmos.Como se defendem os mutilídeos?Os mutílideos são animais particularmente bem apetrechados no que toca à capacidade de defesa – principalmente as fêmeas –, ao ponto de terem relativamente poucos predadores que considerem o risco de capturar um destes animais como valendo a pena.Em primeiro lugar, as suas cores e padrões constituem um exemplo de sinalização aposemática, i.e. um sinal honesto para os predadores de que o animal em questão possui capacidades de defesa ou que é de alguma forma indigesto, e que portanto não será boa aposta enquanto presa.As populações norte-americanas de dezenas de espécies destes insectos são, aliás, um exemplo particularmente interessante de mimetismo mülleriano. Por outras palavras, espécies com defesas semelhantes acabam por desenvolver padrões visuais idênticos, aumentando assim a eficiência do sinal que transmitem aos predadores e beneficiando todas, estando organizadas em vários grupos em que cada um exibe variações de um padrão distinto.Além disso, as fêmeas dos mutilídeos possuem, como muitas das suas parentes, um ferrão com o qual podem defender-se, sendo a sua picada particularmente dolorosa, embora detoxicidade baixa. É um 3 de 4 na escala de dor de Schmidt e a dor pode manter-se durante até 30 minutos. Os machos, no entanto, não possuem ferrão e são, portanto, incapazes de picar. Nenhum dos sexos é, no entanto, agressivo, e os indivíduos preferirão sempre fugir a atacar, se lhes for possível.O exoesqueleto destas vespas é, também, especialmente resistente e difícil de quebrar, tendo-lhes valido o epíteto, só parcialmente humorístico, de “insecto indestrutível”. Juntando todos estas defesas ao facto de que estas vespas são capazes de imitar sinais sonoros – estridulação, produzida por estruturas especializadas que tanto machos como fêmeas possuem – e segregar um químico com um odor que avisa, mais uma vez, os predadores da pouca apetência do mutilídeo para o papel de presa.

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Porque algumas pessoas sentem dor no braço após serem vacinadas?

A vacinação é um acto essencial de saúde pública. Desde a infância até a idade adulta, as vacinas protegem-nos contra doenças graves como a gripe, o tétano ou a COVID-19, que causou efeitos devastadores em todo o mundo, entre muitas outras. No entanto, há uma queixa muito comum que milhões de pessoas em todos os continentes partilham: uma dor intensa, mas temporária, no braço após a picada. Porque acontece? É normal? Podemos fazer algo para aliviar essa dor?É normal sentir dor no braço após a vacinação?A verdade é que sim, é uma reacção completamente normal. A dor no local da injecção é o efeito secundário mais comum após a vacinação. Em geral, esse desconforto aparece nas primeiras 24 horas, pode durar de 1 a 3 dias, dependendo da pessoa, e também costuma ser leve ou moderado. A boa notícia é que isso é um sinal de que o seu sistema imunológico está a funcionar.O facto de surgir essa dor no braço deve-se à resposta inflamatória do corpo. Quando uma vacina é injectada no músculo do braço (geralmente o deltóide em adultos e na coxa em bebés e crianças pequenas), as fibras musculares expandem-se ligeiramente e o sistema imunitário é activado, o que provoca inchaço, vermelhidão e sensibilidade.No entanto, a reacção inata do sistema imunológico não se limita ao local da injecção no braço. Em algumas pessoas, essa inflamação sistémica também se traduz em febre, desconforto corporal generalizado, dores nas articulações, erupções cutâneas ou cefaleia.O que causa exactamente essa dor?De acordo com especialistas da Universidade de Harvard, há três factores principais que explicam a dor:a resposta imunológica, já que o sistema imunológico reconhece os componentes da vacina como estranhos e envia células imunológicas para o local da injecção para combatê-los, o que, por sua vez, desencadeia uma inflamação localizada, que causa dor;uma lesão mecânica mínima, devido ao facto de a agulha perfurar o tecido muscular para depositar o líquido, o que pode causar uma lesão leve que o corpo deve reparar;e, por último, uma reacção inflamatória, uma vez que alguns adjuvantes (componentes de certas vacinas que ajudam a potencializar a resposta imunológica) podem intensificar a inflamação local.Todas as vacinas causam a mesma dor?A intensidade da dor varia de acordo com o tipo de vacina e a sensibilidade de cada pessoa. Por exemplo, quando tivemos que nos vacinar contra a COVID-19, especialmente a da Moderna (chamada Spikevax), ela foi documentada como uma das mais dolorosas no local de aplicação no corpo, manifestando-se como uma área vermelha, quente, inchada e, às vezes, com comichão. Aparentemente, entre 65% e 82% dos vacinados relatam dor no braço.Outro exemplo seria a vacina contra o herpes zoster (Shingrix), uma doença causada pela reactivação do vírus da varicela zoster, que também costuma causar uma reacção mais forte do que outras. Por outro lado, a vacina anual contra a gripe costuma causar menos incómodos, embora não esteja isenta de reacções leves.Em que braço devo tomar a vacina?Os especialistas recomendam aplicar a vacina em questão no braço dominante porque, ao movimentar mais esse braço durante o dia, promove-se a circulação e reduz-se a rigidez muscular, ajudando a que o desconforto pós-vacinal desapareça mais rapidamente.O que fazer para aliviar a dor no braço?Embora a dor geralmente desapareça por si só, existem estratégias seguras e eficazes para nos sentirmos melhor, como aplicar uma compressa fria ou um lenço húmido no local da injecção e mover o braço frequentemente fazendo alongamentos suaves ou simplesmente caminhando. A toma de analgésicos como paracetamol ou ibuprofeno pode ser uma opção, se o seu médico autorizar. Acima de tudo, deve evitar levantar objectos pesados ou fazer exercícios intensos nas primeiras 24-48 horas após a administração da vacina e relaxar o braço durante a injecção, pois administrá-la num músculo tenso pode aumentar a dor posterior.É possível evitar completamente a dor?Podemos minimizá-la. Todas as recomendações anteriores, como relaxar o braço, escolher o braço dominante e mantê-lo em movimento após a vacina, ajudam consideravelmente. Além disso, é importante evitar medicamentos anti-inflamatórios antes da vacinação, pois eles podem interferir na activação do sistema imunológico.

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O Grande Museu Egípcio está prestes a abrir na totalidade

O Grande Museu Egípcio, no Cairo, foi anunciado como uma das maiores inaugurações do ano. Localizado perto das Pirâmides de Gizé, este colosso é a maior instituição cultural do mundo dedicada a uma única civilização, com cerca de 265 metros quadrados de área útil exibindo dezenas de milhares de artefactos.A data de inauguração foi planeada há mais de uma década, depois adiada para 2018 e além, com um lançamento faseado a dilatar o prazo final. Em Novembro, parece que é de vez. O tão esperado museu está prestes a abrir ao público na sua totalidade.O que MOTIVOU os atrasos?Muito do que atrasou a construção do Grande Museu Egípcio (GEM) não é responsabilidade exclusiva dos seus promotores. Os planos para o museu foram anunciados em 1992, com a primeira pedra lançada uma década depois pelo então presidente Hosni Mubarak. A revolta da Primavera Árabe em 2011 tirou-o do cargo, e um golpe militar alguns anos depois fez cair o governo mais uma vez. A consequente queda no número de turistas significou uma perda de receita para o governo, que então trabalhou para garantir empréstimos milionários para ajudar a financiar a construção. A pandemia da Covid-19 e as guerras em curso nos países vizinhos significaram mais atrasos.No início deste ano, foi anunciado que a 3 de Julho de 2025 abriria o museu, mas esta data foi posteriormente adiada para 1 de Novembro devido a tensões regionais. Considere o seguinte: estima-se que a construção da Grande Pirâmide de Gizé tenha levado entre 15 e 30 anos. O GEM está em construção há 23 anos.O que posso esperar?A inauguração em Novembro promete revelar toda a colecção de 5.000 peças de tesouros de ouro desenterrados com Tutankhamon num único local pela primeira vez desde a descoberta do túmulo do faraó em 1922. No total, o GEM tem 12 galerias principais de exposições que traçam a história do país tanto cronologicamente quanto tematicamente.Antes de chegar às galerias, localizadas no piso superior, os visitante vão subir uma grande escadaria pontuada por grandes estátuas e esculturas, culminando numa vista das Pirâmides de Gizé emoldurada por janelas do chão ao tecto.Algumas partes já estavam abertas?Sim. Visitas limitadas ao Grand Hall do GEM, que abriga a colossal estátua de Ramsés II, com 3.200 anos, arrancaram em 2023. O GEM teve então uma pré-inauguração em Outubro de 2024, que permitiu o acesso à maioria das suas principais galerias, mas não aos tesouros de Tutankhamon ou às barcas solares – antigos barcos reais encontrados enterrados perto da Grande Pirâmide de Khufu (anteriormente alojados num museu ao lado da pirâmide até ao seu encerramento em 2021).O que acontecerá ao antigo Museu Egípcio?Muitos dos artefactos do GEM, incluindo a sua exposição da máscara mortuária de ouro de 23 quilates de Tutankhamon, vieram do Museu Egípcio. Ainda tem muitas exposições, mas Mosheira Aboghalia, uma egiptóloga e guia turística residente no Cairo, disse que ela e alguns outros guias locais se questionavam sobre o seu futuro; acreditam que poderá mudar de função. Embora o governo egípcio não tenha anunciado oficialmente nenhum plano, o espaço está a começar a ser mais utilizado para conferências e eventos.Há mais alguma novidade?Toda a área de Gizé em torno das pirâmides, que inclui o GEM, está na mira do governo para ser remodelada desde 2009. O sítio arqueológico das Pirâmides de Gizé também tem passado por grandes mudanças, incluindo um novo centro de visitantes e autocarros eléctricos hop-on-hop-off para transportar os visitantes pelo local, lançados em Abril.Como AFECTARÁ a inauguração o turismo no Cairo?Apesar dos atrasos, o entusiasmo não diminuiu. A inauguração do museu coincide com o início da alta temporada turística no Egipto, quando o Verão escaldante termina e o Inverno traz um clima mais ameno. Mosheira disse que já viu mais reservas para 2026 em comparação com 2025, em parte devido ao entusiasmo em torno do GEM. Este aumento é exactamente o que o governo egípcio provavelmente espera: o país recebeu um número recorde de 15,7 milhões de turistas em 2024 e pretende aumentar esse número em pelo menos 30 milhões até 2028.

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Os golfinhos também estão a sofrer de Alzheimer devido a estas algas tóxicas

Na quente costa leste da Flórida, uma equipa de cientistas deparou-se com uma revelação tão incomum quanto perturbadora: os cérebros dos golfinhos-roazes (Tursiops truncatus) encalhados na Indian River Lagoon apresentam danos comparáveis aos sofridos por um ser humano com Alzheimer. E não é um caso isolado.O culpado, invisível e voraz, agita-se nas águas: proliferação de algas tóxicas, acelerada pelas alterações climáticas, capazes de alterar não só a vida marinha, mas também (talvez) o nosso próprio destino.Durante quase dez anos, investigadores da Universidade de Miami analisaram os tecidos cerebrais de 20 golfinhos que morreram nesse estuário costeiro, uma região onde a temperatura da água e a poluição por nutrientes criaram um caldo de cultura ideal para cianobactérias e microalgas tóxicas. Aí, os cientistas identificaram níveis alarmantes de uma neurotoxina: 2,4-diaminobutírico (2,4-DAB), um composto natural produzido por certas algas que, ao acumular-se no corpo dos golfinhos, causou danos estruturais e genéticos nos seus cérebros. Em alguns casos, os níveis eram até 2.900 vezes mais elevados nos meses quentes em comparação com outras estações.Semelhança com a doença de AlzheimerAlém da toxicidade evidente, o que deixou os investigadores sem fôlego foi a semelhança molecular com a doença de Alzheimer humana. Ao analisar o transcriptoma cerebral (ou seja, os genes que se expressam activamente no cérebro), descobriram um padrão preocupante: mais de 500 genes alterados, muitos deles também afectados em pacientes humanos com Alzheimer. Os genes relacionados com o neurotransmissor GABA, vital para a comunicação neuronal, estavam comprometidos. Outros, que normalmente protegem a barreira hematoencefálica, mostravam sinais de enfraquecimento.Além disso, os cientistas detectaram um aumento na actividade de genes associados à formação de proteínas neurotóxicas como beta-amilóide, tau e TDP-43 (as três principais marcas patológicas do Alzheimer humano). O paralelismo não era casual: o cérebro desses golfinhos havia começado a falar a mesma linguagem de deterioração que conhecemos nas nossas próprias espécies mais vulneráveis.A neurotoxina 2,4-DABA descoberta é um alerta que ultrapassa as fronteiras da biologia marinha. A neurotoxina 2,4-DAB, já conhecida por causar efeitos no sistema nervoso, agora demonstra ser perigosa mesmo em exposições prolongadas e moderadas, não apenas em doses agudas. Por outras palavras, cada Verão com algas tóxicas deixava uma marca invisível, mas duradoura, no cérebro dos golfinhos. A cada estação quente, as mutações genéticas acumulavam-se, como camadas geológicas de danos irreparáveis.Entre os genes mais alterados destaca-se o APOE, considerado um dos principais factores de risco para o Alzheimer em humanos. Em alguns exemplares marinhos, a sua actividade aumentou até 6,5 vezes. Outros, como o NRG3, fundamental na formação de sinapses, viram a sua actividade cair drasticamente. E genes que regulam a inflamação e a morte celular, como o TNFRSF25, foram activados descontroladamente. O mais preocupante, no entanto, foi a descoberta de que os danos eram cumulativos. Quanto mais verões quentes e com proliferação de algas um golfinho tinha vivido, mais profundos eram os danos genéticos observados nos seus cérebros. E em humanos?Os golfinhos-roazes são reconhecidos como o segundo animal mais inteligente do planeta, superando até mesmo os grandes símios. O seu cérebro, de grande tamanho em relação ao corpo e mais volumoso que o humano, sustenta uma mente capaz de se reconhecer num espelho, aprender linguagens gestuais e comunicar-se através de um complexo sistema de estalos e assobios. Além disso, algumas fêmeas usam esponjas para proteger o focinho enquanto procuram alimento, um comportamento que aprendem com as suas mães e que revela a existência de uma forma rudimentar de cultura. Se as proliferações de algas tóxicas se antecipam, prolongam e intensificam e, com elas, os riscos para todos os organismos que dependem da água se multiplicam, isso inclui também os humanos? Os cientistas salientam que ainda não se pode afirmar com certeza que a toxina 2,4-DAB cause Alzheimer na nossa espécie. Mas o espelho molecular que os golfinhos oferecem obriga-nos a olhar com atenção. Se eles, aqui uma espécie de “canário na mina”, estão a mostrar sinais de uma doença que acreditamos ser exclusiva da nossa velhice, talvez seja hora de ouvir o mar. Porque o que afecta o oceano não fica no oceano.

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Centum Cellas, um enigma celebrado num final de tarde em Belmonte

Na passada quarta-feira, o espaço do centro interpretativo do complexo de Centum Cellas foi curto para receber os habitantes da aldeia de Colmeal da Torre (onde pode visitar este monumento nacional) e da vila de Belmonte que se disponibilizaram, num final de tarde, para, de certo modo, homenagear e procurar entender melhor a presença romana por estas bandas.Coube a Gonçalo Pereira Rosa, director da National Geographic Portugal e Espanha, e ao arqueólogo Pedro Sobral de Carvalho lançarem alguma luz sobre um complexo arqueológico iluminado por uma torre que ainda hoje seduz e intriga, enquanto desvelavam alguns detalhes dos bastidores do artigo que foi publicado na edição de Outubro. UM MONUMENTO REABILITADONo dia 26 de Abril costuma ser feriado em Belmonte e o motivo é tudo menos um rodapé na história de Portugal. No dia 22 desse mesmo mês, em 1500, Pedro Álvares Cabral, filho desta terra, descobria o Brasil e, quatro dias depois, Frei Henrique de Coimbra, que viajara na frota do navegador belmontense, celebrava aí a sua primeira missa, um marco no contacto primordial dos indígenas com os preceitos e rituais cristãos.No ano passado, além do festejo anual desta efeméride, houve outros motivos para celebrar: o fim das obras de consolidação de Centum Cellas, “um dos maiores mistérios arqueológicos” de Portugal, como lhe chamou António Dias da Rocha, presidente da câmara cessante que impulsionou, durante os seus mandatos, os trabalhos de reabilitação. O risco de deslizamento de rochas e o abandono a que fora votada a torre estavam a gritar por intervenção, o que aconteceu entre 2018 e 2024.Além de novos trabalhos arqueológicos, houve espaço e tempo para a limpeza e a iluminação do monumento, a remoção de lixo no terreno, a consolidação de muros e a reconstituição de zonas em risco de ruína, a instalação de suportes informativos e a construção de um circuito de visita. Um centro de interpretação que desse sentido aquele “complexo monumental”, nas palavras de Pedro Sobral de Carvalho, e que acomodasse algumas peças encontradas nas imediações do Centum Cellas, era outra das preocupações do executivo liderado por Dias Rocha. Centum Cellas, que terá sido construído há cerca de 1.700 anos, foi classificado como monumento nacional em 1927. ENTRE As CRENÇAS POPULARES E A CIÊNCIAQuando Centum Cellas era ainda mais intrigante do que é hoje, era compreensível que as lendas povoassem o imaginário popular. Afinal, os antepassados daqueles que se reuniram a seus pés num final de tarde outonal de 2025 também tinham sede de explicações e, durante muitos séculos, não havia ferramentas que enquadrassem o que estavam a ver. “As lendas em arqueologia são perigosas. Por vezes, reflectem velhos acontecimentos distorcidos por séculos de narrativas orais. Outras vezes, aludem a sítios e lugares que nunca se cruzaram, mas podem induzir em erro o historiador que os valorize em demasia e que lhes dê demasiado crédito”, começa por alertar Gonçalo Pereira Rosa. Contudo, por mais equívocas que estas narrativas possam ser, não deixam de reflectir a história das mentalidades ao longo dos séculos. “Poucas ruínas alimentaram tantas lendas como estas. Creio que a explicação se deve a esta improbabilidade arquitectónica. Não é natural que um edifício com 1.700 anos não tenha sido desmontado – aliás, só a robusta constituição impediu que os blocos fossem usados para qualquer outro fim. ​Mas essa perenidade, como dizia, alimentou histórias”, prosseguiu o director da National Geographic Portugal.Nomes reputados da arqueologia portuguesa como Amílcar Guerra, Jorge de Alarcão ou Helena Frade legaram-nos diferentes interpretações sobre este complexo monumental. Também Pedro Sobral de Carvalho, um cientista, acabou por evocar as crenças populares no artigo que deu à luz. Não é por acaso que lhe chamou “Centum Cellas: a sombra e o segredo”. Por menos científicas que sejam, a elevada carga imagética destas lendas merece uma referência nas páginas da revista: “Contava-se que a torre teria sido erguida por uma mulher carregando o filho às costas, que nas suas entranhas se ocultaria um bezerro de ouro ou ainda que, em tempos remotos, a sombra de Centum Cellas se projectava tão alta e imponente que alcançava a serra da Estrela”. “Poucas ruínas alimentaram tantas lendas como estas. Creio que a explicação se deve a esta improbabilidade arquitectónica.”(Gonçalo Pereira Rosa)Do lado da ciência, as chaves para decifrar a torre são várias. O presidente da Câmara cessante introdu-las e Carvalho, além de lhes atribuir uma autoria, comenta-as vestindo o fato de cientista, com as suas dúvidas metódicas. Há interpretações para vários gostos, da pena de vários investigadores que, antes do arqueólogo que temos à nossa frente, se dedicaram ao estudo de Centum Cellas. Nomes reputados como Amílcar Guerra, Jorge de Alarcão ou Helena Frade, entre outros, lançaram as suas pistas: esta torre chegou a ser vista como uma atalaia, um resto de um quartel-general de um acampamento militar, uma prisão com cem celas, um santuário isolado, um fórum de uma cidade romana ou uma villa de prestígio. Um coisa que Pedro Sobral salienta no seu artigo é que “na sua primeira fase, entre os séculos I e II d.C., Centum Cellas foi decerto impressionante” e que foi erguido numa colina para “ver e ser visto”. Por outras palavras, “nós, os romanos, chegámos e somos nós quem manda.”ILUSTRANDO UMA HISTÓRIA MILENARPedro Sobral de Carvalho acredita que “o trabalho arqueológico não pode ficar fechado nos meandros da arqueologia, em colóquios” e que tem de “chegar à comunidade” local, mas também ao um conjunto mais vasto de interessados pelo património nacional no país.A National Geographic Portugal, cujo impacto das suas reportagens o autor reconhece, estava inteirada da sua investigação e desafiou-o a escrever um artigo. Juntou-se o útil ao agradável. Gonçalo Pereira Rosa sublinha que a publicação desta história “neste momento” deve-se ao facto de querer “valorizar o que o município de Belmonte aqui deixou para as próximas gerações” e o convite ao arqueólogo pareceu-lhe natural, uma vez que este tinha estado envolvido nas mais recentes escavações e já tinha escrito para a revista. Não abriria, porém, mão de ver explicado, de forma acessível, aos leitores da National Geographic este enigma: “A nossa missão é criar pontes entre o registo documentado e a interpretação que permita ao leitor profano perceber as camadas do local”. Uma empreitada que não deixa de ser desafiante: “Diria que a grande dificuldade para nós [na revista] é encontrar o discurso gráfico que permita compreender o local e o que se passou nele. Neste caso concreto, a história que contamos tanto é feita com as ilustrações do Luís Taklim, como com as fotografias do José Alfredo. Mostramos o que há e o que houve, na esperança de que o público entenda o lugar e a sua funcionalidade”.“É quando fazemos uma ilustração que temos noção se sabemos muito ou pouco sobre um sítio ou um monumento.”(Pedro Sobral de Carvalho)Sobral de Carvalho concorda no que diz respeito ao desafio e lembra que é, por vezes, com as perguntas básicas das crianças ou nas trocas de mensagens com ilustradores que põe em causa as suas certezas: “O ilustrador faz-nos as perguntas difíceis: ‘Onde é que havia uma porta? E aqui era uma varanda? Aqui havia umas escadas? Como era aquela pessoa?’. É quando fazemos uma ilustração que temos noção se sabemos muito ou pouco sobre um sítio ou um monumento. Costumo também dizer que quem faz as perguntas mais difíceis são as crianças, porque perguntam aquilo que é básico”. PASSAGEM DE TESTEMUNHOUma semana após as eleições autárquicas, um presidente cessante, António Dias Rocha, e o que em breve vai ocupar o seu gabinete, António Luís Beites, encontram-se lado a lado pela primeira vez numa sessão pública perante os munícipes. É o momento em que o novo edil é desafiado a continuar a aposta na promoção deste património. “Creio que o executivo que agora termina funções deixa aqui terreno plantado para que o projecto cresça”, comenta Pereira Rosa. Dias Rocha espera “continuidade” e Sobral de Carvalho afina pelo mesmo diapasão: “O mais difícil já foi feito. Agora é preciso continuar a promover Centum Cellas com os operadores turísticos e receber as pessoas”. “Finalmente, Centum Cellas tem um conjunto de suportes gráficos e digitais, inclusive um vídeo e uma aplicação mobile que disponibiliza informação de forma acessível” aos visitantes, lembra Sobral de Carvalho, para o ajudar a ler esta torre única na Península Ibérica e o “complexo de ruínas” em seu redor. Fica a 2,5 quilómetros de Belmonte e a sua imponência certamente não lhe vai passar despercebida. E, garantimos-lhe que além de fotografias de pasmar, vai trazer do terreno uma história complexa, mas fascinante, sobre a presença romana no nosso território no início da era cristã.

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Este cometa só regressará daqui a mil anos. Saiba como vê-lo.

Nesta semana, a Terra terá um lugar na primeira fila para ver uma das mais antigas relíquias do sistema solar. No dia 21 de Outubro, o cometa C/2025 A6 Lemmon irá atingir o ponto mais próximo da Terra – a sua primeira e única aparição em mais de mil anos.“Os cometas são muito comuns, mas o cometa Lemmon é, definitivamente, o melhor cometa para ver a partir da Terra neste ano”, diz Rhonda Stroud, directora do Centro de Estudos de Meteoritos na Universidade Estadual do Arizona, em Tempe, nos EUA.De onde veio este cometa – e como podemos detectá-lo no céu nocturno? Dizemos-lhe o que precisa de saber antes de ele chegar.De onde veio o cometa?O espaço não é completamente vazio. As imediações do Sol estão polvilhadas com gelo e partículas de poeira que podem ser encontradas entre planetas, estrelas e até galáxias. Os cometas e os asteróides são provas físicas do gelo e da poeira que existe no nosso sistema solar – detritos deixados por uma nuvem grande e densa de gás e poeira aquando da formação do Sistema Solar, há cerca de 4.600 milhões de anos.Depois de o Sol se acender, o gás e a poeira remanescentes começaram a juntar-se. Longe do calor, nos locais mais frios, formaram-se os cometas. Estes arredores gelados transformaram-se mais tarde no Cinturão de Kuiper e na Nuvem de Oort, ainda mais distante – vastos reservatórios cheios de cometas gelados.“Os cometas são fantásticos de estudar porque são baús de tesouro dos blocos de construção do nosso sistema solar”, diz Stroud. “O estado congelado dos cometas significa que grande parte da poeira e do gelo permanece praticamente inalterada durante milhares de milhões de anos.”Porque há tantos cometas chamados Lemmon?Quando o cometa Lemmon apareceu pela primeira vez, no dia 3 de Janeiro, não parecia grande coisa – apenas um ponto ténue no céu nocturno. Carson Fuls, director do Catalina Sky Survey e observador de serviço essa noite, diz que isso é normal. “Por vezes, só os vemos quando eles ‘se acendem’”, diz Fuls, ou quando se aproximam suficientemente do Sol para os seus gelos se transformarem em gás, dando origem à cauda típica de um cometa.Apesar do nome, este não é, de todo, o primeiro cometa Lemmon. Fuls diz que é um de cerca de 70 “cometas Lemmons” e que os cometas recebem frequentemente o nome do observatório que os detectou – ou da pessoa que os descobriu, caso os reconheça imediatamente como cometas. No caso de Fuls, este cometa Lemmon ainda não estava “aceso”, por isso assemelhava-se mais a um asteróide do que a um cometa com cauda.“Costumo ver uns quantos [cometas] por noite quando estou a usar os telescópios dos estudos, mas é sempre especial. Nunca me canso de ver algo tão profundo em secções tão grandes do céu nocturno”, diz Fuls.Por que razão o cometa Lemmon parece verde?Embora dezenas de cometas atravessem a região interior do Sistema Solar todos os anos, o brilho verde diferenciador do cometa Lemmon e a sua proximidade da Terra fazem com que seja o cometa mais impressionante de 2025. O seu tom verde-esmeralda deve-se à presença de carbono diatómico (C2), uma molécula que é decomposta pela radiação solar e emite luz verde.A cauda azul-clara é, na verdade, formada por duas caudas: uma feita de gelo e poeira do próprio cometa e outra feita de iões, ou partículas com carga eléctrica, que são excitadas quando o cometa se “acende”, à medida que se aproxima da radiação do Sol.Os ingredientes comuns dos cometas incluem monóxido de carbono, dióxido de carbono e gelo de água, mas o rácio das moléculas varia, diz Stroud. “Cada cometa que vimos de perto com uma nave espacial parecia diferente dos outros.”Os cometas são invulgarmente dinâmicos. As suas formas e luminosidade podem mudar em horas, à medida que a luz solar e o calor remodelam as suas superfícies congeladas e expelem material da parte principal do cometa.“Por vezes, conseguimos ver acontecimentos disruptivos quando pedaços do cometa são arremessados. Parecem ondas na cauda, cuja evolução lenta conseguimos observar”, diz Fuls. “É raro ver algo tão dinâmico no espaço.”Para muitos investigadores que estudam cometas, o próximo Santo Graal da ciência será uma missão de recolha de amostras que traga um pedaço congelado de um cometa e estude o seu gelo e poeira ancestrais, tal como eram quando ele surgiu no espaço.“Quanto mais aprendo sobre [cometas], mais ligada me sinto à história do universo”, diz Stroud. “Seguir a poeira de um cometa é como seguir migalhas para resolver o mistério de como o nosso sistema solar e, por fim, eu e você, nos formámos.” Como ver o cometa LemmonO cometa Lemmon atingirá o ponto mais próximo da Terra no dia 21 de Outubro, coincidindo com uma Lua Nova, um momento de vantagem, pois o céu escuro facilitará a observação de objectos celestes mais pálidos. Procure um brilho verde suave junto às constelações de Escorpião ou Balança, junto ao horizonte a oeste, pouco depois do pôr do Sol. O cometa deverá permanecer visível desde meados de Outubro até ao início de Novembro, empalidecendo gradualmente à medida que se afastar da Terra.“Embora seja divertido vê-lo com só com os olhos, recomendo a utilização de binóculos e a captura de fotografias com bom telemóvel ou uma máquina fotográfica digital. Assim conseguirá ver melhor a cabeleira”, diz Stroud, referindo-se à nuvem brilhante de gás e poeira que rodeia o núcleo gelado de um cometa.Para ajudar ainda mais, o dia 21 de Outubro também assinala o pico da chuva de estrelas das Orionídeas, proporcionando um raro espectáculo duplo no céu nocturno. Para a melhor experiência de visionamento, os astrónomos sugerem a utilização de aplicações de observação celeste ou o calendário Sky Events da NASA, para saber a hora exacta em que o cometa aparece e desaparece do céu no seu local de observação.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Ouro branco

Este montinho não é neve, mas sim sal: milhares de cristais que brilham sobre a terra como fragmentos de luz. Aqui, a produção de sal ocupa extensões imensas e obter uma única remessa de sal marinho requer tempo, paciência e o trabalho coordenado de dezenas de pessoas.Ao contrário do tom rosado característico do sal do Himalaia, o sal de Bangladesh é completamente branco. A sua pureza deve-se à composição dos seus cristais: átomos de sódio e cloro que se ligam numa estrutura perfeita. E embora o resultado final possa parecer simples, cada grão conta a história de um processo artesanal que pode durar um mês inteiro.

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Langmusi: onde o Tibete se divide

Langmusi é uma pequena localidade encaixada num vale, a cerca de 3.300 metros de altitude, no sopé das montanhas Minshan. O que a distingue de tantas outras aldeias tibetanas é a linha invisível que a corta ao meio: de um lado, a província chinesa de Gansu; do outro, a província de Sichuan.Para quem chega, a fronteira é apenas um marco administrativo, mas define a gestão, as infra-estruturas e até o ritmo da vida quotidiana.A aldeia é também conhecida como “a porta do Tibete”, porque preserva tradições religiosas e culturais tibetanas, apesar de estar fora da Região Autónoma. Aqui coexistem duas escolas budistas distintas, representadas por mosteiros em lados opostos do rio: o Mosteiro de Kirti, em Sichuan, e o Mosteiro de Sertri, em Gansu. Essa dualidade dá a Langmusi uma atmosfera única, marcada por rituais, peregrinações e práticas monásticas que ainda atraem devotos e curiosos. Foi o meu caso. O lado de Gansu é geralmente considerado mais desenvolvido, com maior oferta turística e infra-estruturas modernas. O lado de Sichuan mantém um traço mais rural e autêntico, com famílias que vivem sobretudo da pastorícia e do comércio local. Essa disparidade reflecte as diferenças nas políticas e investimentos regionais, visíveis até nas estradas e no tipo de alojamento disponível.Langmusi tornou-se, por isso, um microcosmo das tensões e dos contrastes do planalto tibetano. Ao mesmo tempo que é destino de viajantes em busca de espiritualidade e paisagem, é também um retrato da complexa administração da China sobre territórios de identidade tibetana. Entro nesta aldeia como quem atravessa uma dobra no mapa. Instalo-me num pequeno hotel ainda em construção, onde as paredes são muito finas e deixam passar o frio da altitude. Do balcão da recepção chegam-me vozes de guias locais a oferecer percursos pelas montanhas, histórias de mosteiros e de rios sagrados. Tomo notas, mas sei que vou partir a pé. Quero sentir a fronteira no corpo, não apenas no papel.Langmusi é um retrato da complexa administração da China sobre territórios de identidade tibetana. Deixo a aldeia e sigo o trilho que sobe devagar pelas colinas. O ar rarefeito obriga-me a andar lento, e cada curva abre a vista para pastos com iaques e tendas de pastores. Os guias tinham-me contado que havia uma cabana no cimo de um vale, e é para lá que caminho. Momentos antes de chegarmos a uma pequena casa no cimo da montanha, o nosso guia pediu que nos baixássemos junto a uma pequena colina. Ao perguntar o porquê da máxima cautela, o guia fala-nos de mastins tibetanos à solta. Enormes, peludos, com juba à volta do pescoço e usados tradicionalmente pelos nómadas para guardar os rebanhos de iaques e ovelhas, têm fama de serem muito territoriais e agressivos com estranhos. Quando o dono desta casa os prendeu, tivemos luz verde para subir e entrar onde iríamos passar a noite. O dono da casa era surdo-mudo. Enormes, usados tradicionalmente pelos nómadas para guardar os rebanhos de iaques e ovelhas, os mastins tibetanos têm fama de serem muito territoriais e agressivos com estranhos. Ora, se já era complicado comunicar em mandarim, o que nos obrigava a usar gestos, comunicar com um surdo-mudo tibetano era toda uma nova experiência na minha vida. Mas de facto, os gestos são tudo! Tudo! Os gestos são de uma clareza que nenhuma língua traduz. São instinto, são o corpo a falar directo. Um braço que se abre pode ser convite, um dedo a apontar pode guiar-nos até a um destino, um mero sorriso basta para selar confiança. A beleza está nesse entendimento totalmente cru: duas pessoas que não partilham palavras podem, ainda assim, construir sentido. É extraordinário ver como um movimento simples carrega a força de uma frase inteira. E mais mágico ainda foi ver como o simpático e acolhedor surdo-mudo foi capaz de pôr cinco pessoas agarradas à barriga com uma anedota contada por gestos. Comunicar com um surdo-mudo tibetano era toda uma nova experiência. Mas de facto, os gestos são tudo!Eis-me aqui, nas montanhas do Tibete oriental, sorridente e aliviado por não ter sido o lanchinho de um cãozinho de 85 quilogramas. Quando desço de novo ao vale, reaparece Langmusi – mas por outro ângulo, como se fosse uma aldeia diferente. Entro pelo lado de Sichuan, cruzo ruas poeirentas, vejo crianças a correr atrás de cabras. Reconheço o sino do mosteiro ao longe e sinto que regresso ao mesmo ponto, embora venha de outro. É essa a magia da viagem: partir e chegar ao mesmo lugar, sabendo que o caminho o transformou noutra coisa.

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19 de Outubro 1921: A “Noite Sangrenta”, ou o começo do fim da 1ª República

A “camioneta-fantasma”. O nome evoca um filme de terror. Mas tratou-se da macabra realidade da noite de 19 de Outubro de 1921. A chamada “Noite Sangrenta”, em que um maldito meio transporte e de morte percorreu Lisboa numa busca sedenta de vingança, faz parte de um contexto contexto de radicalização política que já se arrastava quase desde o início da Primeira República.As sementEs da revoltaComo muitas sublevações em Portugal, a revolta deve-se ao descontentamento no seio do exército e das forças policiais. Os militares foram essenciais para a vitória republicana no golpe de 1910 e, de certa forma, todos os governos que se lhe seguiram mantiveram uma relação estreita com as forças de segurança, que, perante toda a instabilidade do país, se foram tornando numa guarda pretoriana da Primeira República: bem armados, com regalias que mais nenhuma outra profissão tinha, excepcionalmente bem pagos para a realidade nacional.Num tempo em que a crise económica do país era permanente, em que as consequências da Primeira Guerra Mundial, terminada em 1918, pesavam grandemente, isto revela que o executivo dependia da sua capacidade de exercer o poder sobre os cidadãos. Tal significava também que, na prática, embora fosse uma democracia parlamentar, Portugal era, na prática, governado pelas vontades dos líderes da Guarda Nacional Republicana (GNR). Esta força surgira em 1911, sucedendo à Guarda Real de Lisboa, e desde o início que a compunham membros do exército.Entre 1917 e 1922, a GNR era comandada por Liberato Pinto. Membro do Partido Democrático, conseguiu transformar o seu feudo de segurança num braço armado das suas próprias intenções. Quando os Democráticos estavam no poder, Liberato defendia-os ardentemente; quando eram derrotados em eleições ou votos na Assembleia da República, tornava os homens sobre o seu comando em focos de desestabilização e incómodo. Era o que podemos designar por cacique policial; e quando, no final de 1920, foi convidado pelo presidente António José de Almeida para ser primeiro-ministro do país, o seu instinto foi apoiar-se nas forças que controlava. O seu governo militarizado, com a robustez de uma atitude ditatorial, quase destruiu a democracia republicana. Como aconteceu a quase todos os que ocuparam o cargo de chefe de governo da Primeira República, foi demitido e, logo depois, foi-lhe retirado o comando da GNR, em virtude de casos de indisciplina entre os militares. As coisas não melhoraram e, sem o poder que o mando da Guarda Nacional Republicana lhe permitia, deu consigo em tribunal, acusado de desviar fundos da corporação.Reacções extremasOs fiéis de Liberato Pinto entraram em polvorosa. Mais ficaram quando, depois de um período de três meses em que Tomé de Barros Queirós assume o poder, sucede-lhe António Granjo. A reputação deste nome entre as forças militares não era a melhor e esta impopularidade, juntando-se à queda de Liberato Pinto, leva à ideia de virar o governo do avesso e colocar militares de regresso ao poder. A campanha começa na imprensa, atacando Granjo e lançando notícias falsas de que o político estaria a planear cercar Lisboa com o exército para desarmar e prender a GNR. O coronel Manuel Maria Coelho lidera esta conjura, juntamente com outros oficiais.O 19 de Outubro aparece então depois de uma tentativa falhada. Vários tiros de canhão são lançados sobre várias zonas de Lisboa e, após breves escaramuças, os revoltosos parecem vencer praticamente sem haver luta. António Granjo pede então a demissão ao presidente da República e este aceita. No entanto, António José de Almeida recusa ceder aos insurrectos e aceitar um governo saído de uma chantagem pela força. O dia arrasta-se e existe no ar a possibilidade de os revoltosos tentarem forçar a mão e a vontade de Almeida de uma forma mais drástica. O presidente cede e indigita Manuel Maria Coelho como primeiro-ministro. E é a partir daqui que a história se dissolve entre o diz-que-diz, quem é que foi responsável ou não, quem mandou e quem obedeceu. Mas o que se sabe é que António Granjo fora informado que tinha a cabeça a prémio e procura então refúgio em casa de Cunha Leal, adversário político mas reconhecido homem de honra e integridade. Fora primeiro-ministro e deputado em várias legislaturas e Granjo sabia que era um homem tido em conta pela GNR – sabemos hoje que o sondaram para liderar esta conjura, mas Leal, fazendo jus ao seu nome, recusara.A camioneta-fantasmaÀs nove danoite, batem à porta. Um oficial da marinha afirma que lhe ordenaram levar António Granjo para a fragata Vasco da Gama. Granjo aceita, mas Cunha Leal suspeita de algo e insiste que se levam um, levam o outro. Mas era, claro, um engodo. Em vez da fragata, os homens são levados ao Terreiro do Paço, onde os líderes da revolta se encontravam, juntamente com as suas forças. O par é separado, Cunha Leal resiste, tentando salvar Granjo e recebe vários tiros pela sua valentia. Granjo é levado para um quarto. Minutos depois, vários guardas e soldados entram, fuzilam-no ali mesmo, num canto da divisão. Ouve-se de um dos soldados: “Venham ver de que cor é o sangue do porco!”A infame camioneta continuou a sua deambulação pela capital, em busca daqueles que eram considerados inimigos da GNR. A vítima seguinte será Carlos da Maia, que fora um dos heróis do 5 de Outubro e ministro de Sidónio Pais. O líder do cortejo homicida era Abel Olímpio, conhecido como o “Dente de Ouro”. Maia é arrastado para a camioneta sob falsos pretextos e tenta resistir, debatendo-se com os seus raptores. Depois de uma coronhada na cabeça com uma carabina, alguém saca de uma pistola e atinge-o na cabeça. A reputação da camioneta já se espalhara por Lisboa. Jornalistas numa moto com sidecar acompanham a sua missão. O nome seguinte na lista era Machado Santos, um dos responsáveis militares pela resistência da capital ao golpe da Monarquia do Norte.Os assassinos da camioneta estavam perdidos, sem saber para onde se dirigir em busca da sua presa. No entanto, os jornalistas rapidamente se mostraram inexcedíveis ao informá-los do paradeiro do militar. Machado Santos tenta impor a sua autoridade militar como almirante, mas é levado para a carrinha, que avaria já perto do Terreiro do Paço. Sem perder tempo, o rosnante “Dente de Ouro” abate-o ali mesmo, sem qualquer tipo de misericórdia. Seguiram-se outros e vários nomes da lista escaparam por acaso, porque não estavam em casa nessa noite.O choque da realidade cai sobre LisboaO primeiro instinto dos participantes foi publicitarem nos jornais os seus actos: Lisboa, no entanto, acordou horrorizada com o banho de sangue. A população queria saber quem foram os responsáveis, quais os motivos, como se passara todo aquele massacre. Acima tudo, como fora possível, numa Lisboa republicana e progressista, um regresso à barbárie. Muitos apontaram o dedo ao clima crispado da política nacional, onde as acusações eram recorrentes, o insulto fácil e os golpes palacianos um costume. Cunha Leal, que acabou por sobreviver aos seus ferimentos, resumiria bem a situação no funeral de António Granjo: “o sangue incorreu pela inconsciência da turba (...). Todos nós temos culpa. É esta maldita política que nos envergonha e me salpica de lama”. As consequências provaram que não se aprendera nada com este mea culpa de Leal. A imprensa vangloriou-se do sucesso desta noite maculada, mas sem nunca desenvolver as suas horrendas consequências. Afinal, não se sentiram os ocupantes da camioneta tão seguros de si que se dirigiram à redacção do jornal A Imprensa da Manhã para descreverem com gosto todos os passos do seu cortejo macabro? Não fora um sidecar com repórteres a indicar o paradeiro de Machado Santos? Como tal, claro que nenhum dos culpados esperava ser condenado ou sequer passar tempo na prisão. Mas era necessário imputar aqueles eventos disruptivos e consequentes a alguém; e ainda que, depois da condenação, os soldados, particularmente o “Dente de Ouro”, vociferassem que havia oficiais no tribunal tão responsáveis quanto eles, de nada valeu.Como nota final, o novo primeiro-ministro imposto pelas armas, Manuel Maria Coelho, não conseguiu formar governo estável. Ninguém queria estar associado a um nome que, para todos os efeitos, teve colado a si o estigma da “Noite Sangrenta”. Numa ironia que não foi acidental, sucedeu-lhe Cunha Leal, o homem que tentou proteger Granjo com a sua própria vida. E para evitar novos problemas do género, a GNR foi desmantelada e transformada, num papel que ainda hoje desempenha, numa força de garantia de segurança rural.

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Lâminas e espinhos

A história dos ouriços-do-mar e das florestas de algas é a seguinte: primeiro, as lontras marinhas, que comem ouriços-do-mar, foram caçadas quase até à extinção ao longo de grande parte da costa ocidental. Depois, na década de 2010, a doença da estrela-do-mar destruiu a estrela-do-sol (Pycnopodia helianthoides), que se alimenta de ouriços, fazendo disparar a população de ouriços-do-mar. A alga gigante (Macrocystis pyrifera) foi também gravemente afectada pelas ondas de calor marítimas.Em conjunto, todos estes factores deixaram "terrenos baldios de ouriços-do-mar" onde outrora prosperavam exuberantes florestas subaquáticas. Entre 2008 e 2019, cerca de 95% das florestas de kelp desapareceram do norte da Califórnia.Os conservacionistas estão agora a tentar uma variedade de técnicas para fazer reviver as florestas perdidas, desde a criação de estrelas de girassol em cativeiro até à concepção de um robô para esmagar ouriços e recrutar mergulhadores para os recolher. A fotógrafa conservacionista Kate Vylet, no entanto, está preocupada com a narrativa de que os ouriços-do-mar são os maus da fita nesta história. "Os ouriços pertencem à floresta de algas tanto quanto as próprias algas", diz Vylet.Um dia, depois de mergulhar numa exuberante floresta de kelp ao largo da costa da Baía de Carmel, na Califórnia, Vylet estava a nadar de volta para a costa quando viu uma folha de algas a ser comida por ouriços-do-mar roxos (Strongylocentrotus purpuratus) e vermelhos (Mesocentrotus franciscanus). Para ela, isto ilustrava o papel que os ouriços ainda podem desempenhar num ecossistema equilibrado, e preparou a sua câmara para captar a natureza em acção em todos os seus complexos fluxos.Fotografia vencedora na categoria: Vida Selvagem Acuática do concurso de fotografia de natureza BigPicture 2023, organizado pela Academia de Ciências da Califórnia.

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Eureka!

Nesta imagem microscópica, obtida por Bruno Cisterna, vemos células tumorais do cérebro de um rato, mostrando como as alterações no citoesqueleto das células podem levar a doenças como a doença de Alzheimer e a ELA.A fotografia, vencedora do concurso Small World in Motion 2024, foi selecionada em parte devido ao seu significado científico: os resultados da investigação no âmbito da qual esta imagem foi tirada poderão transformar muitas vidas no futuro, contribuindo para a nossa compreensão destas doenças.

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Fotorreportagem: Florestas-fantasma

Maltratados, mas insubmissos, os ciprestes-dos-pântanos guardam a margem de um lago na Florida. As tempestades que os deformaram talvez os tenham poupado às serras dos lenhadores. Resta apenas uma pequena fracção das florestas de ciprestes ancestrais da América do Norte.Viajando no tempo numa floresta de ciprestesNum dia fresco de Dezembro, David Stahle sobe por uma escada encostada a um cipreste-dos-pântanos que tem de diâmetro o equivalente à sua altura. Equipado com um berbequim, David começa lentamente a perfurar… o tempo. Os primeiros 2,5 centímetros levam-no até antes da Primeira Guerra Mundial e o quinto centímetro à fundação dos EUA. Doze centímetros mais tarde, este dendrocronologista da Universidade de Arkansas chega à viagem de Colombo até ao Novo Mundo. Quando acaba de extrair a amostra, fina como um lápis, tem anéis suficientes para estimar que o cipreste retorcido emergiu do seu leito encharcado quando os primeiros cruzados se dirigiram a Jerusalém, há cerca de mil anos. No entanto, é a fatia com um centímetro de diâmetro mais próxima da casca, datada de cerca de 1900 a 1935, que merece a sua atenção. Este sítio é uma área menosprezada junto do rio Black, na Carolina do Norte, onde se encontram as árvores mais antigas a leste das montanhas Rochosas. Com efeito, o cipreste-dos-pântanos é a quinta espécie mais antiga das árvores sexualmente reprodutoras que se conhecem no planeta. A árvore da qual David Stahle acaba de extrair a amostra ainda mal atingiu o meio da vida. Um cipreste descoberto neste lugar, em 2017, data, pelo menos, de 605 a.C. David encontrou vários outros com uma idade semelhante nas proximidades. Os dados fornecidos pelas amostras e por outros ciprestes do Sudeste dos EUA compõem um dos maiores e mais rigorosos registos científicos da humidade do solo. Décadas de seca, bem como períodos húmidos, estão inscritos nos anéis das árvores, com o rigor dos anos exactos. Há igualmente testemunhos de uma seca que poderá ter condenado a primeira povoação inglesa no Novo Mundo, em 1587, e uma segunda ocorrida no século XVI, que foi ainda pior. “O século XX não é representativo dos extremos que estas árvores suportaram”, diz David, que já extraiu amostras de árvores antigas em todo o mundo. Uma seca catastrófica ocorrida no século XVI “fez-se sentir do México ao Canadá, do Atlântico ao Pacífico e durou quase 40 anos. Nunca vimos nada assim na época contemporânea”.Embora estas árvores ancestrais abram uma janela para o nosso passado climático, as suas irmãs que vivem mais perto da costa estão a ensinar-nos uma lição igualmente importante sobre o nosso futuro. Apesar de os ciprestes-dos-pântanos serem das árvores mais resilientes do planeta, capazes de suportar as piores condições que a natureza consegue criar, as florestas de ciprestes estão a morrer junto da orla costeira, deixando esqueletos brancos como ossos na paisagem.Estas florestas-fantasma talvez sejam o sinal mais evidente da inexorável subida do nível médio das águas do mar, que está a empurrar água salgada para o interior de ecossistemas que eram, anteriormente, de água doce. Embora os ciprestes-dos-pântanos sejam mais tolerantes ao sal do que as outras espécies que partilham o seu lar nas florestas das zonas húmidas, não conseguem sobreviver muito tempo com mais de duas partes por milhar (ppt) de sal na sua água. O oceano Atlântico pode ultrapassar as 35 ppt e o nível do mar está a subir mais depressa junto da costa leste dos EUA do que em quase qualquer outro lugar do planeta. O nível do mar em Wilmington, o maior porto da Carolina do Norte, subiu cerca de 30 centímetros desde 1950 e prevê-se que suba pelo menos mais 30 centímetros até 2050. Por agora, as árvores do rio Black ainda não sofrem a ameaça da água salgada. O rio continua a ser um típico rio de águas negras. Mais a jusante, porém, na bacia hidrográfica inferior do rio Cape Fear, pelo menos 300 hectares de zonas húmidas florestadas transformaram-se em pântanos salgados desde a década de 1950, à medida que a água se tornava mais salobra, segundo um estudo recente realizado pela Universidade de Carolina do Norte. Quando a salinidade média anual atingir as 2 ppt, a transformação de floresta em pântano será inevitável. No microcosmo das florestas-fantasma do rio Cape Fear, esta tendência é muito mais abrangente. Um estudo recente conduzido por investigadores da Universidade da Virgínia e da Universidade Duke, utilizando imagens recolhidas por satélite, descobriu que a costa do golfo e a planície costeira atlântica perderam mais de 13 mil quilómetros quadrados, ou 8%, de zonas húmidas florestadas entre 1996 e 2016. E quase 700 quilómetros quadrados continuam a desaparecer todos os anos – mais do triplo da velocidade com que estão a perder-se os mangues, há muito considerados um dos ecossistemas mais ameaçados do planeta. Os investigadores concluíram que, a esse ritmo, sem esforços concertados de conservação ou recuperação, poderemos perder todas as zonas húmidas florestadas costeiras até final deste século. Os pântanos dos ciprestes-dos-pântanos eram a Amazónia da América do Norte há 120 anos, cobrindo uma área estimada em 16 milhões de hectares das curvilíneas zonas húmidas florestadas do Sul. Eram o lar do magnífico pica-pau-bico-de-marfim, da delicada mariquita de Bachman e de bandos de periquitos da Carolina, para não mencionar uma grande diversidade de espécies aquáticas. No entanto, a protecção dos pântanos sempre foi difícil de promover. É possivelmente o único ecossistema que tem sido considerado um alvo a abater pelo governo federal. O Swamp Land Act de 1850, e outras leis semelhantes, entregaram zonas húmidas federais não-reclamadas a diversos estados do Sul, exigindo que as receitas da venda dos terrenos fossem utilizadas para a sua drenagem. Melhor do que ninguém, o senador Daniel Webster resumiu o sentimento generalizado em 1851: “Nada de belo ou útil cresce ali. O viajante que o atravessa respira miasma e caminha entre todas as coisas prejudiciais e repugnantes.”“As espécies que estão connosco há muito tempo tiveram de se adaptar”, recorda Julie Moore, bióloga aposentada do Serviço de Pescas e Vida Selvagem dos EUA.Assim que os lenhadores desenvolveram um sistema de transporte de troncos através de cabos suspensos, carros a vapor e outras tecnologias que lhes permitiram chegar às profundezas dos pântanos, avançaram como castores, transformando hectares de ciprestes de crescimento antigo em tapumes, coberturas e até caixas de bananas, até só restarem as bolsas mais isoladas destas árvores ancestrais. Os periquitos da Carolina, os pica-paus-de-bico-de-marfim e as mariquitas de Bachman acabaram também por desaparecer.Num dia fresco  de Outono, Mac Stone, explorador da National Geographic, David Stahle e Charles Robbins, um guia local, lançam os seus caiaques no labirinto de canais do rio Black, deixando-se levar pela água. O objectivo é visitar as árvores com dois mil anos descobertas por David em 2017 e extrair amostras de outros três habitantes detectados por Mac durante um levantamento aéreo da região, conhecido localmente como Three Sisters Swamp (Pântano das Três Irmãs). A calma do pântano é interrompida apenas pelo som dos remos e dos patos de cores vibrantes. Sem os conhecimentos de Charles, iríamos perder-nos aqui. O nosso guia vive em Wilmington desde a década de 1980 e tem visto as florestas-fantasma crescerem ao longo do rio Cape Fear, afectadas pela subida do nível dos mares, pela dragagem de canais e pelos furacões frequentes.“Levaram uma tareia durante o Bertha e o Fran”, diz, referindo-se aos dois furacões que afectaram a região de Cape Fear em 1996. “As copas de muitas árvores partiram-se e elas foram borrifadas pelo sal. Começaram a enfraquecer.” A água em redor de Three Sisters não é salgada, mas é afectada por descargas de nutrientes pesados a montante, nos condados de Sampson e Duplin, onde existe a maior densidade de suiniculturas do país e inúmeras aviculturas. Quase todos os dejectos de milhões de porcos, frangos e perus são espalhados pelos campos. As florestas de ciprestes maduras são incrivelmente boas a limpar a água e algumas até foram utilizadas para tratar águas residuais municipais no Louisiana. No entanto, níveis tão elevados de nutrientes são convidativos para a fixação de erva-de-jacaré, uma espécie invasora, que pode suplantar os jovens rebentos de cipreste. A caminho das árvores de Mac Stone, as nossas embarcações acabam por ficar bloqueadas por uma fileira de ciprestes. As árvores forçam o grupo a abandonar os caiaques e a patinhar pela lama, até à localização de GPS aproximada do mapa. David pensa que um dos segredos para a sobrevivência das árvores mais antigas é terem um certo “factor de retorcimento” que as torna imprestáveis enquanto madeira. As árvores que encontram não constituem excepção. Têm as bases inchadas e estriadas. A copa da primeira árvore apresenta-se esfarrapada: foi desfeita por uma tempestade e voltou a crescer aleatoriamente. O tronco da segunda abre-se em dois, a 15 metros de altura, e ambas as partes sobem em espiral, abraçadas, como flamingos gigantes. A última tem uma parte oca que em tempos alojou um urso-preto suficientemente grande para deixar a marca das suas garras a dois metros do solo. Embora não consiga obter uma amostra da árvore oca, David estima que seja provavelmente tão velha como as outras duas, que já viveram, pelo menos, mil anos.“É isso que fascina nas árvores antigas”, diz Julie Moore, bióloga aposentada do Serviço de Pescas e Vida Selvagem dos EUA, que destacou David para o rio Black no início da década de 1980. “Elas não teriam vivido tanto tempo se não conseguissem aguentar. As espécies que convivem connosco há muito tempo precisam de se adaptar.”Muitas dessas adaptações poderão revelar-se inestimáveis para os seres humanos num clima mais quente, mais seco e mais tempestuoso. Um estudo descobriu que até os ciprestes jovens conseguem sobreviver durante vários meses inundados a dez metros de profundidade, enquanto os seus troncos, “joelhos” e os solos pantanosos em redor das suas raízes absorvem a água das tempestades e o carbono como uma esponja. David demonstrou que têm capacidade para sobreviver a décadas de seca, enquanto outros investigadores determinaram que os ciprestes podem contribuir para reabastecer os lençóis freáticos e até filtrar alguns poluentes. A sua elevada tolerância ao sal torna-os com frequência as últimas árvores a desaparecer numa floresta-fantasma. No entanto, é a sua fantástica capacidade para sobreviver às tempestades mais violentas do planeta que os torna verdadeiramente únicos. William Conner foi entrevistado para um trabalho de investigação no Instituto Belle W. Baruch para as Ciências de Ecologia Costeira e Florestal da Universidade Clemson, em Georgetown, na Carolina do Sul, duas semanas depois de o furacão Hugo arrasar o estado, em 1989. Esta tempestade, classificada na Categoria 4, chegou à costa com ventos de quase 225 quilómetros por hora, danificando cerca de 1,7 milhões de hectares de floresta e destruindo 15 milhões de metros cúbicos de madeira comercial, que teriam sido suficientes para construir cerca de 660 mil casas. “Quando atravessei de carro a Floresta Nacional Francis Marion, todos os pinheiros tinham tombado no solo”, diz o cientista, agora professoremérito do Instituto. “Todos os ciprestes que se encontravam junto dos ribeiros ainda estavam de pé. São incrivelmente resistentes ao vento, com as suas bases, ‘joelhos’ e sistemas de raízes entrelaçadas. Só vi duas árvores arrancadas por tempestades ao longo da minha carreira e estavam ambas sozinhas, isoladas.” Isso torna-as particularmente úteis para projectos de restauro em locais como o Louisiana, que poderá em tempos ter acolhido as maiores florestas de ciprestes do continente. O furacão Katrina conseguiu inundar 80% da região metropolitana de Nova Orleães, em grande parte porque a cidade, construída sobre antigos pântanos de ciprestes abatidos e drenados, acabou por se afundar vários metros abaixo do nível do mar. Entretanto, grupos de conservação têm estado a plantar ciprestes de forma gradual, num esforço para restaurar as zonas de protecção contra furacões. A Pontchartrain Conservancy plantou cerca de 92 mil árvores desde 2010.Enquanto as sombras se alongam sobre o rio Black, David, Charles e Mac remam em direcção ao bosque de Three Sisters para montarem acampamento num banco de areia onde um conjunto de ciprestes antigos esconde as estrelas. Depois de David descobrir as primeiras árvores da época romana em meados da década de 1980, a Nature Conservancy começou a comprar terrenos e direitos de conservação em volta do bosque. Actualmente, é proprietária de quase sete mil hectares ao longo do rio Black, incluindo a zona em redor das árvores mais antigas. David teme que isso não seja suficiente. “Eles estão a dois metros de altura, junto da costa. Por isso, estão ameaçados [pela subida do nível do mar]”, acrescenta David. “A esse nível, estaremos a perder cidades e não podemos deixar que isso aconteça. Mas até o mais pequeno vestígio da floresta de crescimento antigo pode ser uma área fulcral para um plano mais abrangente de recuperação do ecossistema. Gostaria que fosse protegido como reserva ou monumento nacional.” Uma das árvores mais antigas do planeta encontra-se a 30 metros do lugar onde agora estamos, no mesmo sítio onde enfrentou todos os estragos dos últimos 2.600 anos. O seu topo, partido, está salpicado por fetos-da-ressurreição. Segundo David Stahle, as plantas receberam este nome por poderem perder quase toda a água dos seus tecidos durante uma seca, ficarem cinzentas como se estivessem mortas e depois voltarem à vida, como novas, com as primeiras chuvas. Parecem um acessório adequado para este parente ancestral de uma espécie há muito conhecida como “a madeira eterna”, a qual, com cuidados e conservação, poderá contribuir para a nossa adaptação a um mundo mais quente e mais tempestuoso.Artigo publicado originalmente na edição de Outubro de 2023 da revista National Geographic.

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Um movimento de cada vez: a ciência de cair bem

Durante uma palestra sobre prevenção de quedas, Jacob Sosnoff, vice-reitor de investigação e professor da Faculdade de Profissões de Saúde da Universidade do Kansas, nos EUA, pediu ao público que partilhasse as suas experiências com quedas. Um homem na casa dos 70 anos, apoiado numa bengala, levantou a mão. Admitiu que caía com frequência, mas nunca se magoava gravemente. Sosnoff tinha de saber o seu segredo.O homem explicou que tivera o privilégio de saltar de um avião com o Exército dos EUA aos 19 anos e que eles o tinham ensinado a cair de forma segura. Esse comentário ficou fixado na mente de Sosnoff. Há anos que os especialistas tentam evitar que os idosos caiam – quase uma em cada quatro pessoas com mais de 65 anos cai uma vez por ano, segundo os Centros para o Controlo de Doenças. As quedas continuam a ser a principal causa de mortes relacionadas com ferimentos entre os idosos e enviam cerca de três milhões de pessoas por ano para as urgências hospitalares. Anos de programas de prevenção – como exercícios de equilíbrio, treino de força e alterações na segurança doméstica – ajudaram, mas não resolveram o problema. “Não estamos a livrar-nos da gravidade”, diz Sosnoff. “As quedas vão acontecer de qualquer maneira.”E se, em vez de nos focarmos apenas na prevenção, ensinássemos as pessoas a cair de forma segura? Sosnoff e outros investigadores estão a mostrar que, com um pouco de treino, podemos cair de forma mais inteligente, melhorando as nossas probabilidades de nos levantarmos sem sofrer lesões graves. Saiba como desenvolver essa capacidade, um movimento de cada vez.Passo 1: Pratique num local seguroA primeira regra de aprender a cair: não comece no chão da sua sala de estar. Praticar em superfícies duras é meio caminho andado para se magoar. Escolha sítios onde possa aterrar suavemente – e com supervisão especializada.No laboratório de Sosnoff, os idosos equipam-se como atletas: capacetes de espuma na cabeça e protectores de ancas bem apertados. “Asseguramo-nos de que os ensinamos passo a passo, de uma forma muito progressiva – como ensinaríamos qualquer outra capacidade motora”, afirma. Eles decompõem o movimento em peças mais pequenas e depois juntam-nas quando já lhes parecem naturais.Pense nisto como aprender a devolver uma bola de ténis: treinamos o passo, a rotação, o impulso e o acompanhamento de forma separada e deliberada até se juntarem num único movimento suave quando a bola voa na nossa direcção.“Todas as quedas são diferentes”, acrescenta Sosnoff. “Não existe uma única técnica que se possa aplicar a qualquer queda e que nos proteja”, por isso o objectivo é desenvolver memória muscular que se adapte aos acidentes do mundo real.Passo 2: Baixe o seu centro de gravidade Assim que tiver a sensação de que vai cair, o melhor a fazer não é lutar – é ceder. “Vai baixar aquilo a que chamamos centro de gravidade”, diz Sosnoff. “Pense nisso como tentar aproximar a cintura ou o umbigo do solo.” Quanto menor for a distância da queda, menor será o impacto.Em termos práticos, isso significa dobrar os joelhos e as ancas, “um pouco como a posição inicial do futebol americano”, diz Christina Pedini, vice-presidente assistente de reabilitação e neurociências na Universidade do Maryland Upper Chesapeake Health, para já estar a meio caminho do solo quando embater.Passo 3: Recolha o queixo Quando deixou de estudar alunos universitários e começou a trabalhar com reformados, Sosnoff reparou em algo alarmante. “Descobrimos que os idosos têm três vezes mais probabilidades de bater com a cabeça quando caem”, diz Sosnoff. Isso faz com que protegê-la seja a prioridade número um. Quando cair, recolha o queixo em direcção ao peito para que a parte de trás do seu crânio nunca bata no chão.Durante o Falling Safety Training Trial, Sosnoff descobriu que uma técnica adequada reduzia o número de impactos na cabeça dos participantes e a velocidade da aceleração da cabeça durante uma queda.Passo 4: Proteja os seus pulsosO nosso primeiro instinto quando caímos é, frequentemente, o pior: esticar os braços para amparar a queda. Essa posição rígida é uma das principais causas de fracturas nos pulsos e antebraços.“O que queremos fazer é dobrar-nos”, diz Sosnoff, ou seja, manter os cotovelos relaxados e os braços ligeiramente curvados, recolhidos em direcção ao tronco em vez de esticá-los. Tente deixar áreas maiores, como os músculos do braço, absorver o impacto inicial.Passo 5: Rebole para dispersar a energiaUma das piores maneiras de cair é aterrar com o peso todo num único ponto de apoio – como a anca ou o ombro – porque a força concentrada aumenta a probabilidade de fracturas. A estratégia mais segura é ir distribuindo esse impacto ao longo do tempo. “Rebolar, num movimento semelhante ao das artes marciais, pode diminuir a probabilidade de lesões”, diz Pedini.Durante a queda, enrole o corpo de modo a embater com uma superfície ampla, como os seus flancos ou glúteos. Deixe que o impulso o faça rebolar suavemente, sobre a parte de trás da anca ou do ombro, para que o impacto não seja muito forte numa única área.Passo 6: Levante-se devagarDepois de aterrar, deixe-se estar quieto por um instante. Uma verificação rápida pode salvá-lo de agravar uma situação potencialmente má.“Se uma pessoa tiver perdido a consciência e acordar, deve pedir ajuda e não tentar levantar-se, pois pode ter uma lesão mais grave”, diz Pedini. O mesmo se aplica a qualquer dor grave, hemorragia ou impacto na cabeça. Mexer-se demasiado depressa pode exacerbar uma potencial fractura ou lesão, sobretudo se tiver magoado o pescoço ou a coluna.Passo 7: Como se levantarA recuperação de uma queda não se limita a saber cair em segurança – também é importante saber levantar-se sem se arriscar a cair novamente. Primeiro, vire-se e coloque-se em posição de gatinhar, apoiado nas mãos e nos joelhos. Depois, “ajoelhado sobre as pernas, levante uma perna (posição semi-ajoelhada) e use uma cadeira, um degrau ou outra coisa para se apoiar”, diz Pedini.Essa posição semi-ajoelhada ajuda a baixar o centro de gravidade e a distribuir o seu peso uniformemente, diminuindo as probabilidades de cambalear. Também lhe permite verificar se sente dores em algum membro antes de aplicar todo o seu peso sobre ele.Depois de dedicar algum tempo à aprendizagem da técnica, esta costuma interiorizar-se. Sosnoff dá um curso de oito semanas e chama os participantes três meses mais tarde para voltar a testar as suas capacidades. “Todas as pessoas que ensinamos a cair, lembram-se de como cair em segurança”, diz ele. “É mais ou menos como andar de bicicleta.”Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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