No subsolo de Lisboa
Asma, hérnias, claustrofobia e mais uma longa lista de condições clínicas fazem parte da ficha individual de autorização que somos obrigados a preencher para aceder ao monumental, mas pouco glamoroso, ambiente que aguarda por nós alguns lanços de escadas abaixo. Esta será a terceira tentativa de descida. As anteriores tiveram de ser canceladas devido às fortes chuvadas que se abateram sobre a capital nos dias anteriores e que alagaram os canais que escorrem por baixo das ruas de Campolide, onde nos encontramos.Fernando Fernandes, um veterano da Divisão de Saneamento do município, é o nosso guia. Nos últimos 35 anos, calcorreou uma boa parte dos 1.650 quilómetros da rede de drenagem da cidade. Trabalhou dez anos no Departamento das Zonas Ajardinadas, mas a rotina e a falta de aventura levaram-no a mudar para o sistema excretor da cidade. “Foi aqui que ganhei os cabelos brancos e que descobri a minha vocação”, diz.No início do século XX, a ribeira de Alcântara corria a céu aberto e, nas suas margens, as lavadeiras tratavam da roupa de famílias mais abastadas, embora se soubesse, logo no século XVIII, que aquele curso de água era insalubre. “Já no século XV Dom João II ordenara que se limpassem ‘os canos de Lisboa’ na sequência de uma epidemia de peste”, comenta o técnico da autarquia. Antes, no século XIII, o largo esteiro que atravessava a actual Praça do Comércio e conduzia os dejectos urbanos até ao rio Tejo era conhecido na cartografia e na documentação com o sugestivo – e perturbador – nome de Rego Merdeiro.Entre 1850 e meados do século XX, o expressivo aumento demográfico da cidade, sobretudo à custa da migração de populações do interior para as grandes cidades, permitiu a duplicação da população da capital e acelerou a necessidade de reforçar os incipientes sistemas de drenagem de efluentes domésticos. Aliás, a percepção da relação entre a eficiência do descarte das águas sujas e a saúde pública é antiga. A obra que viria a ficar conhecida como caneiro de Alcântara começou a ser projectada em 1930, mas só foi inaugurada em 1968.Para descer às profundezas de Lisboa, temos de vestir fato completo de protecção, capacete, luvas, máscara, botas altas de biqueira-de-aço e usar lanternas frontais e um sofisticado dispositivo de detecção de gases tóxicos. Enquanto nos preparamos, lembram-nos de que, em 1997, três operários viram as suas vidas ceifadas pelo gás sulfídrico no interceptor Algés-Alcântara. O acesso que escolhemos é provavelmente o segmento mais fotogénico desta estrutura, onde os canais de Benfica e de Sete Rios se encontram, mas o ar é húmido e pesado e nem as máscaras disfarçam o odor a esgoto. As equipas da autarquia, como a que acompanhamos hoje, fazem visitas de emergência e de monitorização, pois está em curso uma obra com repercussões profundas no sistema de saneamento. No interior da ampla galeria, uma torrente castanha-esverdeada encaminha-se em direcção ao Tejo, mas detém-se na estação de tratamento. O vale é hoje muito diferente do que aquele que se vê nas fotografias com mais de cem anos disponíveis nos arquivos fotográficos. A carga urbanística é incomparável, o arvoredo é mais exuberante do que há um século e as lavadeiras desapareceram.As obras do Plano Geral de Drenagem de Lisboa respondem a uma necessidade básica: a drenagem de águas e efluentes por acção da gravidade em direcção ao rio e ao mar.Até ao final de 2022, a Quinta do Zé Pinto, em Campolide, era um espaço com vista privilegiada sobre Monsanto e o vale de Alcântara, mas agora é uma cratera onde labora uma profusão de maquinaria pesada. Mesmo ao lado, na Quinta da Rabicha, também esventrada pela obra, há memória de um piquenique histórico em 1860 onde terão estado os jovens Ramalho Ortigão e Antero de Quental.Agora, parece a cratera de um meteorito colossal caído na cidade sem que ninguém tenha dado por ele.Esta é uma das faces visíveis do Plano Geral de Drenagem de Lisboa (PGDL). O plano estava no papel desde 2008, o que significa que atravessou os gabinetes de cinco executivos camarários desde então (e o sexto chegará no Outono deste ano), mas a obra só arrancou em pleno em 2022. Literal e metaforicamente, é uma engrenagem complexa que combina bacias de retenção a céu aberto para reforço da capacidade de colectores e melhoria da captação superficial, sarjetas e sumidouros existentes e a incrementar. No entanto, as obras mais desafiantes e mediáticas são dois túneis para desvio de caudais: o túnel Chelas-Beato, com cerca de um quilómetro, e o túnel Monsanto/Santa Apolónia com cerca de cinco quilómetros. Estes túneis com 5,5 metros de diâmetro interior vão trespassar o coração da cidade e implicar a deslocação de milhões de metros cúbicos de terra.A cratera, entalada entre a Rua de Campolide e a estação ferroviária do mesmo bairro, será um enorme reservatório subterrâneo e é também por agora a porta de entrada da tuneladora, uma toupeira gigante que anteriormente ajudou a abrir os túneis do metropolitano de Copenhaga e que tem vindo a escavar em Lisboa à medida que se encaminha com um declive ligeiro para o Tejo. A realização dos túneis de drenagem de Lisboa, que promete uma mudança invisível na cidade, tem um custo global estimado de cerca duzentos milhões de euros.José Silva Ferreira, engenheiro electrotécnico e coordenador do PGDL, recebe-nos no estaleiro. O porte atlético, de que a participação em mais de cem meias-maratonas é um testemunho inequívoco, não deixa antever os seus 73 anos. O funcionário da autarquia, que se licenciou em Luanda e trabalhou em Angola, em Berlim Ocidental e em Macau, precisou de uma autorização especial para se manter ao serviço até aos 75 anos, altura em que espera que a obra esteja concluída. O bolo de camadas sucessivas que corresponde à evolução de Lisboa é riquíssimo e passa-se naturalmente abaixo das actuais ruas da Baixa onde circulam cada vez mais turistas.“Se tudo correr bem, ninguém dará por ela”, lembra o engenheiro. Lisboa tem um longo cadastro de inundações. Na memória dos mais velhos, ainda estão as fatídicas cheias da madrugada de 26 de Novembro de 1967. Quando as águas recuaram, tinham-se perdido pelo menos setecentas vidas.Uma calamidade desta magnitude não tornou a repetir-se, mas as cheias causam todos os anos danos materiais e com frequência ceifam vidas. Estes eventos climáticos são responsáveis em Portugal por 80% das indemnizações atribuídas por catástrofes naturais e o cenário pode agravar-se com as alterações climáticas que estão a produzir fenómenos de concentração da precipitação em intervalos de tempo mais curtos. Os cenários mais pessimistas prevêem subidas drásticas do nível médio das águas do mar e isso afectará muitas cidades costeiras, como Lisboa.No túnel, que avança a um ritmo médio dez metros por dia, só estão autorizadas vinte pessoas de cada vez, por questões de segurança. Cada um de nós transporta um localizador, que assegura que se fique dentro deste limite e que ajudará – no pior cenário – a localizar vítimas em caso de acidente. À data em que caminhamos nas profundezas, a tuneladora já cumpriu mais de meio caminho e a viagem até à frente de obra tem de ser feita num pequeno veículo motorizado. À entrada, um pequeno altar com uma imagem de Santa Bárbara, padroeira dos mineiros – e por arrasto de todos os trabalhadores do subsolo – relembra a importância de manter a vigilância a toda a hora.Ao fundo, uma câmara, que faz lembrar um submarino com capacidade para vinte pessoas onde os operários se devem refugiar em caso de acidente, é mais um lembrete de que este é um ambiente hostil, onde as regras de segurança não são negociáveis.Quando pergunto se já ocorreu algum acidente grave desde o início da empreitada, vejo os semblantes transtornados e arrependo-me de ter perguntado. Logo no início da obra, um operário que chegara do Mali há apenas um mês perdeu a vida, esmagado por uma das máquinas que escavava o buraco por onde descemos. “No fim da obra, teremos deslocado meio milhão de metros cúbicos de terra, um volume 13 vezes superior ao do edifício dos paços do concelho.”(JOSÉ SILVA FERREIRA)A vítima era um dos representantes da imensa diversidade de nacionalidades que se cruzam aqui. O estaleiro parece uma torre de Babel e diferentes peças desta complexa engrenagem são subcontratadas a empresas estrangeiras. “A tuneladora propriamente dita foi montada e é operada por técnicos franceses, mas a passadeira que cresce todos os dias e que recolhe o solo que vai sendo escavado é da responsabilidade de uma empresa chinesa”, diz José Silva Ferreira. A manutenção de todos estes instrumentos afinados e a capacidade de os articular é uma tarefa desafiante que por vezes justifica que o avanço não se faça ao ritmo pretendido.A passadeira rolante encaminha a terra removida para a entrada. “No fim da obra, terá deslocado meio milhão de metros cúbicos de terra, um volume 13 vezes superior ao do edifício dos Paços do Concelho”, explica o engenheiro. A cada 180 centímetros de avanço da tuneladora, entra no túnel um veículo que transporta seis aduelas de betão, pesando quatro toneladas cada, que constituem mais um anel da estrutura. Num dia sem percalços, esta operação pode repetir-se dez vezes. A obra nunca pára e os funcionários fazem diariamente 3 turnos de 8 horas, 7 dias por semana, a profundidades que podem atingir mais de 70 metros. Por cima das nossas cabeças, estão prédios de habitação num dos pontos em que o túnel passa a maior profundidade.Alguns dias antes, para surpresa de todos no estaleiro, chegou um telefonema com uma queixa de ruído. Os técnicos deslocaram-se ao domicílio do queixoso para verificar se a fonte era efectivamente aquela obra e para sua surpresa, mesmo a 60 metros de profundidade, as vibrações da tuneladora ressoavam nitidamente naquela habitação. “Os níveis de ruído, que se assemelhavam ao de uma máquina de lavar roupa, ficavam, no entanto, aquém dos limites legais e a velocidade da obra não prolongou o incómodo por mais de meia dúzia de dias”, diz Ferreira.Como o caneiro oito décadas antes, as obras do PGDL respondem a uma necessidade básica: a drenagem de águas e efluentes por acção da gravidade em direcção ao rio e ao mar. No entanto, o subsolo de uma metrópole antiga como Lisboa foi cenário de muitas obras contemporâneas e antigas. A característica mais prevalecente de uma cidade é a sua densidade, e isso explica o seu crescimento em altura e profundidade. Além das redes de abastecimento de água, energia, telecomunicações e dados, o subsolo foi conquistado para expandir redes de transportes e lugares de estacionamento.No imaginário colectivo e em obras de ficção, os domínios de Hades são com frequência associados a um lugar mais próprio para sepultar os mortos ou onde subsistem sociedades distópicas, mas em regiões em que as temperaturas sobem acima do suportável a inércia térmica do subsolo é verdadeiramente tentadora. Em Lisboa, porém, é o estacionamento de veículos que tem alimentado muitas das obras de reforço do subsolo e essas obras entreabrem janelas para o passado.No século XVII, o dinamarquês Nicolaus Steno demonstrou que a sucessão do tempo podia ser intuída através da observação dos depósitos geológicos e mais tarde percebeu-se que o mesmo princípio se aplicava ao registo arqueológico. A fixação de populações humanas na região que hoje é Lisboa é muito antiga e todos os empreiteiros experientes sabem e temem que obras que impliquem a mobilização dos solos possam produzir achados arqueológicos e subsequentes derrapagens nos encargos e prazos. Calcula-se que cerca de 3% do orçamento do PGDL seja investido no estudo e resgate dos achados arqueológicos. E alguns desses achados estão a reescrever os manuais de história.“Desde os fenícios que a chegada e partida de navios foi uma constante e marcou o ritmo da vida na cidade. O rio é o sistema circulatório e agora temos mais peças desse puzzle.”Paulo Almeida FernandesEm 2015, durante o restauro de um edifício na frente ribeirinha próxima da Casa dos Bicos, foi descoberta uma estela fenícia que mereceu destaque nas páginas desta revista. Quase uma década mais tarde, essa peça faz parte do valioso espólio exposto no Hotel Aurea Museum, o empreendimento que nasceu depois desse afã construtivo. É aqui que encontramos o historiador de arte Paulo Almeida Fernandes. Três metros abaixo do que é hoje o nível da rua, existe um espaço expositivo que preserva as cetárias romanas para salga e preparados de pescado. Paulo trabalhou no Instituto Português do Património e na Câmara Municipal de Mafra antes de rumar em 2014 à sua cidade natal, onde coordena o serviço de investigação e inventário do Museu de Lisboa. É também o maior especialista português no Caminho de Santiago.O terramoto de 1755 foi uma tragédia, mas também uma oportunidade para aceder a um passado escondido no subsolo que incluiu a descoberta do teatro e criptopórtico romanos. No século XX, as obras de construção da rede do metropolitano abriram literalmente novas vias de acesso ao registo do passado preservado sob os nossos pés. “A arqueologia em Lisboa tem andado à velocidade dos parques de estacionamento e dos hotéis”, lamenta o historiador. Embora a história do passado da cidade esteja delineada em linhas gerais, é expectável que futuras obras, algumas das quais já anunciadas, possam esclarecer as dúvidas que apaixonam os historiadores, como a localização do fórum romano. “A história e a arqueologia têm provado que esta foi sempre uma cidade multiétnica, multirracial, multiconfessional”, diz Fernandes. “Desde os fenícios que a chegada e partida de navios foi uma constante e marcou o ritmo da vida na cidade. O rio é o sistema circulatório e, agora, temos mais peças desse puzzle.”As cidades reconstroem-se nos despojos de grandes catástrofes e Lisboa tem sido ciclicamente assolada por infortúnios. Em 1988, um incêndio cravou uma estaca no coração da cidade. O incêndio da madrugada de 25 de Agosto consumiu 18 edifícios, incluindo os icónicos armazéns do Chiado e do Grandella e ceifou duas vidas. A reconstrução foi polémica e arrastou-se por mais de uma década. Vale a pena reconhecer que, em finais da década de 1980, ainda antes deste sinistro, já a Baixa e o Chiado davam sinais de uma crise identitária e de decadência. As antigas lojas e pastelarias de prestígio perdiam brilho para os novos centros comerciais e até a banca, historicamente sediada na Baixa Pombalina, procurava agora edifícios mais modernos noutras áreas da cidade.É expectável que futuras obras possam esclarecer as dúvidas que apaixonam os historiadores, como a localização do fórum romano.Foi justamente nesse momento, e em contra-ciclo, que o Millennium BCP decidiu investir na requalificação do seu edifício-sede em plena Baixa Pombalina, a 150 metros dos quarteirões queimados pelas chamas. Vivia-se o apogeu da cultura do automóvel e uma das componentes do projecto era um generoso estacionamento subterrâneo. O sonho foi precocemente amputado e hoje existe apenas um exíguo estacionamento reservado à administração porque os achados arqueológicos foram tão extraordinários que não eram compatíveis com o simples estudo e preservação de objectos ex situ.A escavação, de onde foram retirados três mil metros cúbicos de terra, iniciou-se em 1991 e, em 1995, foi inaugurado o Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (NARC). A solidez da engenharia romana deixou vestígios espalhados pela parte baixa da cidade onde se incluem as chamadas Termas dos Cássios e o magnífico teatro romano, cuja implantação na colina do Castelo o manteve a salvo do sepultamento em profundidade. O NARC não é o único local da cidade onde podem ser visitados vestígios arqueológicos milenares, mas nenhum outro lugar preserva no mesmo espaço e de forma tão eloquente 25 séculos de história. De um complexo habitacional da Idade do Ferro às estruturas pombalinas, passando pela presença fenícia, pelos contextos romanos e medievais, a diversidade de artefactos serve de testemunho da passagem do tempo. Poucos lugares no subsolo relatam melhor o bolo de camadas sucessivas que corresponde à evolução de Lisboa e tudo isto se passa naturalmente abaixo das actuais ruas da Baixa onde circulam cada vez mais turistas.A arqueóloga que nos serve de guia confessa com frustração que pouco tempo antes, durante uma visita, lhe perguntaram porque viviam os romanos debaixo de terra. Este equívoco poderia ser repetido noutro vestígio da ocupação romana, mesmo ao virar da esquina – as Galerias Romanas. Esta estrutura foi descoberta em 1771 na sequência dos apressados trabalhos de reconstrução da cidade no rescaldo do terra-moto e o seu propósito foi objecto de intenso debate. Alguns olisipógrafos propuseram que se trataria de um complexo termal, mas hoje parece mais provável que o que resta seja um criptopórtico sobre o qual assentariam edifícios públicos entretanto desaparecidos. As galerias estão parcialmente submersas e abrem para visitas duas vezes por ano. Nessas alturas, a água tem de ser bombeada.O Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros preserva, no mínimo, 25 séculos de história.O incêndio que se seguiu ao terramoto de 1755 deixou a cidade traumatizada e o tecto das galerias foi aberto em alguns locais para dar acesso a poços pombalinos que não só permitiam acesso ao nível freático para consumo humano, mas também para combater eventuais fogos. Exemplos completos destes poços podem ainda ver-se no NARC. Mas há uma área da cidade onde esse passado está mais marcado.O escritor Arturo Pérez-Reverte pode não concordar, mas o verdadeiro cemitério dos barcos sem nome fica em Lisboa, na Praia da Boavista. Corresponde ao cotovelo que o rio Tejo faz à entrada de Lisboa, delimitado pelas actuais ruas de São Paulo e da Boavista pelo Largo Conde-Barão e pela Calçada do Marquês de Abrantes. As representações iconográficas mais antigas da cidade posicionam sempre navios nesta praia, o que não é de estranhar.À entrada do século XVI, Dom Manuel I proibiu a construção na praia e ordenou que aquele fosse espaço para os navios serem “espalmados e corrigidos”, como se dizia na época. Foi o estaleiro da cidade até à instalação no local de numerosas fábricas, já no século XIX. Para dar o exemplo, o próprio rei instalou-se no Palácio de Santos, hoje a sede da embaixada de França.Ninguém poderia adivinhar, porém, a sucessão de descobertas que as campanhas arqueológicas do século XXI ali produziram. Desde 2002, toda a área tem sido esventrada para a construção de sedes de empresas de energia eléctrica, de correios ou de escritórios de advogados. No subsolo, protegidos por camadas de lodo, começaram a aparecer vestígios desse mundo esquecido. A arqueóloga Inês Mendes da Silva, da empresa ERA Arqueologia, defendeu no Inverno deste ano a sua dissertação de doutoramento sobre a Praia da Boavista. Conhece, como poucos, aquele solo porque acompanhou dezenas de campanhas de arqueologia de salvaguarda, “à chuva, à lama, ao sol, antes, durante e depois da pandemia”, brinca.A obra do Plano de Drenagem nunca pára e os funcionários fazem diariamente 3 turnos de 8 horas, 7 dias por semana, a profundidades que podem atingir mais de 70 metros.Onde hoje assenta o Mercado da Ribeira emergiu entre 2002 e 2003 um extraordinário cais do século XVI. “Hoje, com tudo o que já sabemos sobre os palácios de nobres e os edifícios comerciais que ali foram implantados desde o reinado manuelino, sabemos que o cais estava associado ao Forte de São Paulo, uma estrutura ali erguida durante a Guerra da Restauração para proteger a Companhia Geral do Comércio do Brasil e outros entrepostos comerciais.” Depois desse, apareceram outros cais, passadiços e paliçadas e um extraordinário fundeadouro romano por baixo da actual Praça Dom Luís.As intervenções seguintes, sempre ao sabor das obras em curso, foram destapando novas páginas do mil-folhas que constitui a Praia da Boavista. Na chamada Rua Cor de Rosa, a via pedonal adjacente ao Cais do Sodré, as equipas arqueológicas detectaram as fundações dos primeiros palácios que ali se instalaram depois de Dom Manuel aliciar os nobres endinheirados para se juntarem a ele naquela zona da cidade. “Foi uma frente muito afectada pelo terramoto de 1755, que destruiu essas construções”, diz Inês. Entretanto, emergiram vestígios de embarcações que davam colorido àquela zona de estaleiro. Nas intervenções realizadas no âmbito da construção da sede da EDP, apareceram em 2013 vestígios de dois navios de porte médio dos séculos XVII-XVIII (Boavista 1 e 2). Anos mais tarde, durante a pandemia, surgiu o Boavista 5, que merece um capítulo à parte.“À primeira vista, fazia lembrar o esqueleto de um enorme dinossauro encravado entre as fundações de dois edifícios”, lembra Miguel Lago, director da ERA Arqueologia. Medindo cerca de 22 metros, mas com as extremidades ainda por baixo dos edifícios adjacentes, corresponde ao cavername completo de um navio que ali foi deixado e ter-se-á lentamente afundado no lodo. “Cremos que será de finais do século XVII pelos artefactos associados e que estaria relacionado com o comércio do Atlântico”, diz Inês Mendes da Silva. Durante meses, em plena pandemia, a equipa cartografou e desmontou as 1.500 peças do navio, armazenando-as em 12 contentores marítimos, dois dos quais personalizados para permitir a submersão das peças de madeira, garantindo a conservação do conjunto.Nos últimos vinte anos, emergiram nove esqueletos de embarcações só na Praia da Boavista – alguns, pequenos, próprios para o transvase de mercadorias entre os navios de grande calado e os cais; e outros, como o Boavista 5, aptos para viagens transatlânticas. “Hoje, falamos muito de reciclagem e reutilização de materiais, mas os lisboetas dos séculos XVI a XIX punham-na em prática”, diz Inês Mendes da Silva. “As embarcações que têm aparecido deverão ter estado à vista durante muito tempo e delas foi retirado tudo o que pudesse ser aplicado noutras reparações e nas novas construções portuárias ou nos alicerces das fábricas que ali existiram no século XIX.”Por baixo destas camadas do período moderno, emergiu ainda um cemitério de ânforas e vestígios de embarcações romanas, outra das novidades recentes. “Há uma certa emoção quando percebemos que aquela praia foi usada pelas embarcações que chegaram ou partiram de Lisboa durante pelo menos dois milénios”, diz Inês Mendes da Silva. Com imaginação, consegue-se escutar ainda o ruído das reparações e calafetagens, o cheiro intenso da madeira e dos resíduos das lixeiras vizinhas (a zona era conhecida pelos odores pestilentos) e o bulício próprio das cidades portuárias, onde cada viagem anuncia novas aventuras.“À primeira vista, fazia lembrar o esqueleto de um dinossauro encravado entre as fundações de dois edifícios. Mas era um navio colossal com mais de 22 metros.”(Miguel Lago)Esta viagem começou com as águas sujas que desciam o vale de Alcântara, mas nenhuma cidade prescinde de um abastecimento regular, abundante e seguro de água potável. Outra obra monumental mostra precisamente a sua face mais visível na transposição deste vale. Mandado construir por Dom João V no século XVIII, o Aqueduto das Águas Livres trazia diariamente 1.300 metros cúbicos de água de Belas e resistiu ao terramoto. Foi mesmo o modelo arquitectónico que fez o rei Dom José confiar nos seus engenheiros para o esforço de reconstrução posterior. A distribuição das águas a partir da Mãe d’Água, no Jardim das Amoreiras, fazia-se por cinco galerias subterrâneas principais que totalizam cerca de 12 quilómetros. Construída em 1746, a Galeria do Loreto tem 2.835 metros de extensão e distribuía água por uma rede de seis chafarizes, alguns já desaparecidos, e também por conventos e palácios. Hoje, esta galeria está equipada com iluminação artificial e pode ser visitada num segmento de 1.250 metros, entre a Casa do Registo e o Jardim de São Pedro de Alcântara. Por aqui passaram conspiradores e amantes discretos que evitavam as ruas à superfície para os seus encontros carnais.Sensivelmente a meio caminho, à passagem pelo Jardim do Príncipe Real, a estreita galeria abre-se numa enorme cisterna com capacidade para 884 metros cúbicos de água. O Reservatório da Patriarcal foi construído entre 1860 e 1864 e a sua planta octogonal replica o polígono desenhado pelo gradeamento à superfície no centro do jardim. No interior, 31 pilares com mais de nove metros de altura suportam os arcos de cantaria que sustentam o tecto abobadado. A tranquilidade monástica e a monumentalidade do espaço é surpreendente. A cisterna deixou de regular os caudais de abastecimento da zona baixa da cidade na década de 1940 e passou a fazer parte do Museu da Água em 1994, acolhendo concertos e outros eventos que aproveitam a sonoridade especial da sala.No âmbito da iniciativa Real Fado, o fadista vilacondense Francisco Moreira extrai hoje da sua guitarra portuguesa sons imemoriais que ecoam por estas galerias, fazendo lembrar o poema de Fernando Girão: “Quem vê o Fado como coisa do passado,/ Não entende que este Fado / É o agora do futuro.” É a sina de Lisboa.À passagem pelo Jardim do Príncipe Real, a estreita galeria abre-se numa enorme cisterna com capacidade para 884 metros cúbicos de água. É o Reservatório da Patriarcal, hoje parte do Museu da água.Voltamos à penumbra da galeria que prossegue num declive suave por mais umas centenas de metros até ao Jardim de São Pedro de Alcântara. Quando a porta se abre sobre uma das mais belas panorâmicas da cidade, a luz do dia cega-nos. Além da vital água, é impossível saber tudo o que estas galerias transportaram ao longo de quase 280 anos de existência. Longe de olhares indiscretos, monges e nobres entraram e saíram dos palácios e conventos vizinhos sem alarido. Mas nem só da circulação de águas, dramas palacianos e estruturas antigas se faz a vida subterrânea da cidade.No estertor do século XX, Lisboa reinventou-se mais uma vez, expandindo-se para oriente e conquistando áreas industriais decadentes. A pretexto dos 500 anos da chegada de Vasco da Gama à Índia, a Exposição Internacional de Lisboa de 1998 apostou num modelo pensado para preservar quase todas as construções após o evento. No fim da Expo’98, o Parque das Nações tornou-se um ambicioso projecto urbanístico e um dos sítios da cidade onde o preço do metro quadrado é mais elevado. Neste contexto, foi projectada de raiz uma infra-estrutura notável: a Galeria Técnica do Parque das Nações.De betão armado, enterrada no solo com uma secção de 405 por 340 centímetros, tem 6.200 metros de comprimento. No interior da Galeria, que faz lembrar um acelerador de partículas, há condutas que transportam água potável e para rega, climatização, resíduos sólidos urbanos, energia eléctrica, televisão, telecomunicações e sinalização semafórica. Há uma imensidão de cabos. Apesar do custo inicial significativo, a prazo, a redução do tempo, dos custos, do transtorno e do tempo despendido na abertura e fecho de valas para aceder às condutas parece irrecusável. Talvez um dia este sistema possa ser prolongado a outras zonas da cidade, facilitando os trabalhos de manutenção e alargamento das redes de distribuição dos mais diversos serviços, com o propósito de retirar da superfície, mas manter acessíveis, as estruturas subterrâneas.Os britânicos foram visionários quando inauguraram em 1863 o metropolitano de Londres, mas, entretanto, este meio de transporte alastrou a quase duzentas cidades espalhadas por cinco continentes e calcula-se que cerca de 170 milhões de passageiros viajem diariamente de metro. A primeira proposta para a construção de um metropolitano em Lisboa remonta a 1885. Em 1888, foi apresentado um projecto à Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, prevendo um metropolitano em viadutos e túneis de via dupla.Apesar de não ter tido sequência por razões económicas, o projecto destacou-se pelo seu carácter pioneiro e pela visão antecipada das necessidades de mobilidade urbana. No entanto, foi preciso esperar até 1955 para se iniciarem as obras, sendo necessária uma espera adicional de quatro anos até à inauguração da primeira rede do Metropolitano de Lisboa, em 1959, com um traçado em forma de Y, constituído então por 11 estações e 6,5 quilómetros de extensão. Essa primeira rede ligava as extremidades setentrionais em Entrecampos e Sete Rios (actualmente estação Jardim Zoológico) à extremidade meridional nos Restauradores.Nas décadas seguintes, a rede expandiu-se e conta hoje com 56 estações divididas por quatro linhas que totalizam quase 45 quilómetros de extensão. Basta consultar uma agência imobiliária para verificar que a proximidade de uma estação é um elemento diferenciador. A rede não pára de crescer e foi ampliada sobretudo à custa do prolongamento para a periferia. Agora, porém, os planos passam por densificar a malha em algumas zonas do centro.Apesar de estar já previsto o alargamento da Linha Vermelha até Alcântara, com passagem por Campolide/Amoreiras, Campo de Ourique, Infante Santo e Alcântara, a obra em curso é a transformação da Linha Verde num trajecto circular, com a ligação entre o Rato (Linha Amarela) e o Cais do Sodré e a criação das novas estações da Estrela e de Santos. Em frente da Basílica, junto do antigo Hospital Militar, uma enorme abertura no solo com 30 metros de diâmetro e onde caberia um prédio de 20 andares é guardada à entrada por mais uma imagem de Santa Bárbara. Voltamos a vestir capacetes, coletes reflectores e calçado de protecção e vamos descendo lanços de escadas. Quando chegamos a 60 metros de profundidade, já ao nível da estação da Estrela, registo mentalmente que se houver um holocausto nuclear e eu tiver tempo, é aqui que irei esconder-me. O túnel está praticamente pronto, o betão está imaculado mas ainda não há sinal de sulipas nem de carris.Ao fim de 500 metros de comprimento, a galeria está coberta com uma tela têxtil. Do outro lado da parede, ouvem-se máquinas. A obra está dividida em diferentes segmentos, com várias empresas responsáveis por cada empreitada.Quando chegamos a 60 metros de profundidade, já ao nível da estação da Estrela, registo mentalmente que se houver um holocausto nuclear e eu tiver tempo, é aqui que irei esconder-me.Do outro lado da tela, o estaleiro mais tosco marca a entrada da estação de Santos que ficará paredes-meias com o antigo edifício do Batalhão dos Sapadores de Lisboa. Junto da Avenida Dom Carlos I, enfeitada com os seus jacarandás em flor, uma vala romana e um poço medieval aguardam parecer dos arqueólogos para que a obra possa prosseguir. Num armazém adjacente, centenas de fragmentos de cerâmica, ossos de animais e outros achados arqueológicos também estão a ser estudados. Na rua, as pessoas passam aparentemente indiferentes à gigantesca obra que se desenrola sob os pés. Prevê-se que o empreendimento de 331 milhões de euros esteja concluído em 2026. Em breve, estas estações serão percorridas diariamente por milhares de pessoas que talvez reparem no seu virtuosismo arquitectónico, nas obras de azulejaria ou escultura que as decoram, ou talvez estejam apenas concentradas em tentar não chegar atrasadas a mais um dia de trabalho. Dificilmente pensarão nas toupeiras humanas que aqui esgravataram o solo e fizeram uma obra para a posteridade.No subsolo da cidade, ficam guardadas memórias de um passado que precede a fundação de Portugal. Mantêm-se as cicatrizes de terramotos e embarcações. E cria-se o cenário do engenho tecnológico que tenta resolver os desafios da vida urbana desta geração e das próximas. Artigo publicado originalmente na edição de Julho de 2025 da revista National Geographic.