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Sexta-feira, Agosto 8

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Afantasia, a dificuldade de formar imagens mentais

Feche os olhos e imagine uma maçã.Consegue ver a sua forma? De que cor é? Está a flutuar no ar, segurada por uma mão ou em cima de uma mesa?Se tiver dificuldades em fazê-lo, poderá padecer de uma condição recentemente designada como afantasia.As pessoas com afantasia, ou “afantes”, dizem não possuir a capacidade de ver com o olho da mente. Podem ter imaginações vívidas e vidas muito criativas, mas o seu cérebro funciona de uma forma ligeiramente diferente no que diz respeito às imagens visuais.Há 25 anos, Adam Zeman, professor de neurologia cognitiva e comportamental da Universidade de Exeter e actual membro honorário do Centro Clínico de Neurociência, em Edimburgo, tomou conhecimento do caso curioso de um homem que perdera a capacidade de visualização mental após uma cirurgia ao coração. O facto de alguém com uma visão mental vívida a perder subitamente era uma novidade para Zeman e levantou questões sobre a forma como as imagens funcionam no cérebro humano.A investigação de Zeman sobre este paciente, publicada em 2010, teve ressonância: devido à descrição do paciente do estudo, algumas pessoas aperceberam-se de que não tinham subitamente perdido a capacidade de visualizar, mas nunca sequer a tinham tido.“Ao longo dos anos seguintes, as pessoas começaram a entrar em contacto comigo, dizendo sou exactamente como [o paciente], só que sempre fui [não-visualizador]”, recorda Zeman. Ele incorporou 21 destes novos não-visualizadores num estudo, no qual sugeriu uma versão modificada da palavra grega para imaginação – phantasia – para descrever as pessoas que afirmavam não possuir memória visual.Medições da menteGrande parte da investigação inicial sobre a afantasia incluiu estudos psicológicos e relatos na primeira pessoa, mas este tipo de abordagem subjectiva tende a despertar cepticismo entre os leigos, diz Christian Scholz, doutorando da Ruhr University Bochum, na Alemanha, que estuda a condição.Os cépticos sugerem que a verdadeira diferença não reside na capacidade de uma pessoa para produzir uma imagem mental, mas no facto de descreverem de uma maneira diferente a formação de uma imagem mental.“Um dos argumentos contra a afantasia ser real é bem, é tudo uma questão de linguagem”, comenta Scholz, que acrescenta que “as pessoas que tendem a ter imagens [mentais] mais vívidas também podem ser mais cépticas em relação à afantasia” – é difícil para um visualizador acreditar que alguém não tenha essa capacidade.Mais recentemente, os cientistas conseguiram testar as diferenças psicológicas existentes entre pessoas que afirmam ter uma boa imaginação visual e outras que não a têm.“Se olhar para o Sol, as suas pupilas contraem-se. Se tiver a capacidade de formar imagens mentais e imaginar que está a olhar para o Sol, as suas pupilas [também] se contraem – e isso não acontece nas pessoas com afantasia”, explicou Zeman, referindo-se a um estudo realizado em 2022.Outro estudo, realizado em 2021, ligou sensores às pontas dos dedos dos participantes, de forma a medir alterações do estímulo emocional. Alguns participantes ouviram uma história assustadora, enquanto outros viram imagens assustadoras. Quando comparadas com um grupo de controlo composto por sujeitos que afirmavam possuir uma boa memória visual, as pessoas com afantasia não demonstraram reacções de medo às histórias, embora a sua reacção às imagens fosse idêntica à do grupo de controlo.Esta tendência indicou aos investigadores que as imagens mentais eram o factor de mediação entre algo meramente conceptual, como uma história contada em voz alta, e a reacção intuitiva do ouvinte.Outro estudo, publicado este ano, mediu a actividade cerebral no córtex visual através de RMs. Os resultados sugeriram que a visualização pode estar presente nos cérebros com afantasia, mas emníveis demasiado baixos para a mente consciente conseguir descodificar as imagens.“Nas pessoas com hiperfantasia – imagens vívidas – há ligações mais fortes entre as áreas frontais do cérebro e a rede visual [do rombencéfalo] do que nas pessoas com afantasia,” explica Zeman.Uma forma diferente de recordar o mundoSarah Shomstein, professora de psicologia e neurociência na Universidade George Washington, diz que a condição não é uma deficiência e que pode esclarecer-nos sobre a forma como a percepção humana e a imaginação evoluíram e continuam a evoluir.“Não existem lesões, não existe défice”, afirma. “É uma forma diferente [de processar], que tem a ver com as ligações ou com algum limite de activação. E pode ser adaptativa ou não.” Ela sugere que os cérebros dos afantes podem estar a poupar energia processando os estímulos visuais de uma forma diferente das pessoas com visualização forte – redireccionando-as através de áreas diferentes do cérebro que contornam a mente consciente. A ser uma característica adaptativa, é possível que uma maior proporção da população venha a desenvolvê-la no futuro, sugere.Foi com o teste da maçã que Shomstein se apercebeu de que formava imagens mentais de uma maneira diferente da maioria das pessoas. Isto aconteceu muito depois de ela se doutorar em neurociência cognitiva e muitos anos depois de desvalorizar relatos iniciais sobre a “afantasia” como produtos de pseudociência.Isso não significa que ela, ou os afantes em geral, não tenham imaginação. Longe disso. “Eu consigo imaginar coisas, consigo criar imagens muito complexas”, explica. “Só que não é de uma forma visual. Para mim, tudo é preto – mas eu tenho um conceito, eu mentalizo-o.”A consciência singular de um indivíduo Zeman estima que milhões de pessoas em todo o mundo tenham afantasia. Então, porque é que a condição é tão incompreendida?Embora o termo só tenha sido cunhado em 2015, os cientistas já lidam com descrições de diferenças de percepção e de memória há séculos. Francis Galton, o prolífico psicólogo do século XIX e fundador da eugenia, distribuiu um questionário em 1880 que revelou que doze em cada cem homens não conseguiam visualizar a sua própria mesa de pequeno-almoço.W. H. R. Rivers, um proeminente psicoterapeuta que tratou pacientes com traumas de guerra durante a Primeira Guerra Mundial, perdeu a capacidade de visualizar e teorizou que a perdera na infância devido a uma experiência traumática ocorrida em sua casa.No entanto, estas observações não foram replicadas em estudos formais na altura. Tom Ebeyer, fundador do grupo comunitário Aphantasia Network e afante de nascença, pensa que a condição foi ignorada durante muito tempo por não haver impactos negativos documentados.“Quando observamos os resultados, os visualizadores e os não-visualizadores têm resultados muito comuns”, afirma. Milhares de visitantes do site da Aphantasia Network fizeram o Questionário de Vividez da Imagem Visual (Vividness of Visual Imagery Questionnaire), que lhes permitiu identificar o seu próprio nível de visualização e forneceu dados úteis para conhecer a prevalência da afantasia.Segundo Ebeyer, os membros da rede, que conta com 60.000 pessoas, tornam-se artistas, arquitectos, autores e seguem outras carreiras nas quais a visualização é uma componente forte. Tanto os afantes como os visualizadores são capazes de reconhecer o rosto de amigos e parentes e se deslocarem em locais familiares.Outro sítio onde os afantes se juntam é a comunidade doReddit /r/Aphantasia, onde mais de 70.000 membros activos partilham experiências pessoais e discutem os estudos mais recentes sobre a condição.“Sempre presumi que, quando as pessoas contavam ovelhas para dormir ou imaginavam o público nu, estavam a falar metaforicamente”, disse um membro anónimo do subreddit da afantasia.“Poderia ter passado a minha vida inteira sem me aperceber de que era diferente se o tema não tivesse surgido na Internet”, diz Megan Lee, outro membro deste subreddit.Alguns membros da Aphantasia Network temem que a sua visão mental diminuída os prejudique, privando-os de memórias que possam ser mais vívidas para os outros.“Acho que é aí que as pessoas vêem o maior impacto na sua vida quotidiana”, diz. “Talvez romantizemos a capacidade de reviver experiências passadas, revisitar os nossos entes queridos na nossa mente, ver o seu rosto”, uma capacidade que os afantes sentem não possuir.Zeman confirma que, com base nos estudos mais recentes, “a diferença mais gritante e consistente que emerge [..] é que [os afantes] têm uma memória autobiográfica bastante pobre.”O que se segue para a comunidade da afantasia? Unidos por uma experiência partilhada apenas por uma pequena percentagem da população mundial, estão a desenvolver o vocabulário necessário para descreverem as suas experiências e transmiti-las aos investigadores.“É uma diferença invisível e intrigante”, diz Zeman, “e recorda-nos de que todos temos tendência para considerar a nossa experiência como a norma, quando, na verdade, as experiências dos outros podem ser muito diferentes”.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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No subsolo de Lisboa

Asma, hérnias, claustrofobia e mais uma longa lista de condições clínicas fazem parte da ficha individual de autorização que somos  obrigados a preencher para aceder ao monumental, mas pouco glamoroso, ambiente que aguarda por nós alguns lanços de escadas abaixo. Esta será a terceira tentativa de descida. As anteriores tiveram de ser canceladas devido às fortes chuvadas que se abateram sobre a capital nos dias anteriores e que alagaram os canais que escorrem por baixo  das ruas de Campolide, onde  nos encontramos.Fernando Fernandes, um veterano da Divisão de Saneamento do município, é o nosso guia. Nos últimos 35 anos, calcorreou uma boa parte dos 1.650 quilómetros da rede de drenagem da cidade. Trabalhou dez anos no Departamento das Zonas Ajardinadas, mas a rotina e a falta de aventura levaram-no a mudar para o sistema excretor da cidade. “Foi aqui que ganhei os cabelos brancos e que descobri a minha vocação”, diz.No início do século XX, a ribeira de Alcântara corria a céu aberto e, nas suas margens, as lavadeiras tratavam da roupa de famílias mais abastadas, embora se soubesse, logo no século XVIII, que aquele curso de água era insalubre. “Já no século XV Dom João II ordenara que se limpassem ‘os canos de Lisboa’ na sequência de uma epidemia de peste”, comenta o técnico da autarquia. Antes, no século XIII, o largo esteiro que atravessava a actual Praça do Comércio e conduzia os dejectos urbanos até ao rio Tejo era conhecido na cartografia e na documentação com o sugestivo – e perturbador – nome de Rego Merdeiro.Entre 1850 e meados do século XX, o expressivo aumento demográfico da cidade, sobretudo à custa da migração de populações do interior para as grandes cidades, permitiu a duplicação da população da capital e acelerou a necessidade de reforçar os incipientes sistemas de drenagem de efluentes domésticos. Aliás, a percepção da relação entre a eficiência do descarte das águas sujas e a saúde pública é antiga. A obra que viria a ficar conhecida como caneiro de Alcântara começou a ser projectada em 1930, mas só foi inaugurada em 1968.Para descer às profundezas de Lisboa, temos de vestir fato completo de protecção, capacete, luvas, máscara, botas altas de biqueira-de-aço e usar lanternas frontais e um sofisticado dispositivo de detecção de gases tóxicos. Enquanto nos preparamos, lembram-nos de que, em 1997, três operários viram as suas vidas ceifadas pelo gás sulfídrico no interceptor Algés-Alcântara. O acesso que escolhemos é provavelmente o segmento mais fotogénico desta estrutura, onde os canais de Benfica e de Sete Rios se encontram, mas o ar é húmido e pesado e nem as máscaras disfarçam o odor a esgoto. As equipas da autarquia, como a que acompanhamos hoje, fazem visitas de emergência e de monitorização, pois está em curso uma obra com repercussões profundas no sistema de saneamento. No interior da ampla galeria, uma torrente castanha-esverdeada encaminha-se em direcção ao Tejo, mas detém-se na estação de tratamento. O vale é hoje muito diferente do que aquele que se vê nas fotografias com mais de cem anos disponíveis nos arquivos fotográficos. A carga urbanística é incomparável, o arvoredo é mais exuberante do que há um século e as lavadeiras desapareceram.As obras do Plano Geral de Drenagem de Lisboa respondem a uma necessidade básica: a drenagem de águas e efluentes por acção da gravidade em direcção ao rio e ao mar.Até ao final de 2022, a Quinta do Zé Pinto, em Campolide, era um espaço com vista privilegiada sobre Monsanto e o vale de Alcântara, mas agora é uma cratera onde labora uma profusão de maquinaria pesada. Mesmo ao lado, na Quinta da Rabicha, também esventrada pela obra, há memória de um piquenique histórico em 1860 onde terão estado os jovens Ramalho Ortigão e Antero de Quental.Agora, parece a cratera de um meteorito colossal caído na cidade sem que ninguém tenha dado por ele.Esta é uma das faces visíveis do Plano Geral de Drenagem de Lisboa (PGDL). O plano estava no papel desde 2008, o que significa que atravessou os gabinetes de cinco executivos camarários desde então (e o sexto chegará no Outono deste ano), mas a obra só arrancou em pleno em 2022. Literal e metaforicamente, é uma engrenagem complexa que combina bacias de retenção a céu aberto para reforço da capacidade de colectores e melhoria da captação superficial, sarjetas e sumidouros existentes e a incrementar. No entanto, as obras mais desafiantes e mediáticas são dois túneis para desvio de caudais: o túnel Chelas-Beato, com cerca de um quilómetro, e o túnel Monsanto/Santa Apolónia com cerca de cinco quilómetros. Estes túneis com 5,5 metros de diâmetro interior vão trespassar o coração da cidade e implicar a deslocação de milhões de metros cúbicos de terra.A cratera, entalada entre a Rua de Campolide e a estação ferroviária do mesmo bairro, será um enorme reservatório subterrâneo e é também por agora a porta de entrada da tuneladora, uma toupeira gigante que anteriormente ajudou a abrir os túneis do metropolitano de Copenhaga e que tem vindo a escavar em Lisboa à medida que se encaminha com um declive ligeiro para o Tejo. A realização dos túneis de drenagem de Lisboa, que promete uma mudança invisível na cidade, tem um custo global estimado de cerca duzentos milhões de euros.José Silva Ferreira, engenheiro electrotécnico e coordenador do PGDL, recebe-nos no estaleiro. O porte atlético, de que a participação em mais de cem meias-maratonas é um testemunho inequívoco, não deixa antever os seus 73 anos. O funcionário da autarquia, que se licenciou em Luanda e trabalhou em Angola, em Berlim Ocidental e em Macau, precisou de uma autorização  especial para se manter ao serviço até aos 75 anos, altura em que espera que a obra  esteja concluída. O bolo de camadas sucessivas que corresponde à evolução de Lisboa é riquíssimo e passa-se naturalmente abaixo das actuais ruas da Baixa onde circulam cada vez mais turistas.“Se tudo correr bem, ninguém dará por ela”, lembra o engenheiro. Lisboa tem um longo cadastro de inundações. Na memória dos mais velhos, ainda estão as fatídicas cheias da madrugada de 26 de Novembro de 1967. Quando as águas recuaram, tinham-se perdido pelo menos setecentas vidas.Uma calamidade desta magnitude não tornou a repetir-se, mas as cheias causam todos os anos danos materiais e com frequência ceifam vidas. Estes eventos climáticos são responsáveis em Portugal por 80% das indemnizações atribuídas por catástrofes naturais e o cenário pode agravar-se com as alterações climáticas que estão a produzir fenómenos de concentração da precipitação em intervalos de tempo mais curtos. Os cenários mais pessimistas prevêem subidas drásticas do nível médio das águas do mar e isso afectará muitas cidades costeiras, como Lisboa.No túnel, que avança a um ritmo médio dez metros por dia, só estão autorizadas vinte pessoas de cada vez, por questões de segurança. Cada um de nós transporta um localizador, que assegura que se fique dentro deste limite e que ajudará – no pior cenário – a localizar vítimas em caso de acidente. À data em que caminhamos nas profundezas, a tuneladora já cumpriu mais de meio caminho e a viagem até à frente de obra tem de ser feita num pequeno veículo motorizado. À entrada, um pequeno altar com uma imagem de Santa Bárbara, padroeira dos mineiros – e por arrasto de todos os trabalhadores do subsolo – relembra a importância de manter a vigilância a toda a hora.Ao fundo, uma câmara, que faz lembrar um submarino com capacidade para vinte pessoas onde os operários se devem refugiar em caso de acidente, é mais um lembrete de que este é um ambiente hostil, onde as regras de segurança não são negociáveis.Quando pergunto se já ocorreu algum acidente grave desde o início da empreitada, vejo os semblantes transtornados e arrependo-me de ter perguntado. Logo no início da obra, um operário que chegara do Mali há apenas um mês perdeu a vida, esmagado por uma das máquinas que escavava o buraco por onde descemos. “No fim da obra, teremos deslocado meio milhão de metros cúbicos de terra, um volume 13 vezes superior ao do edifício dos paços do concelho.”(JOSÉ SILVA FERREIRA)A vítima era um dos representantes da imensa diversidade de nacionalidades que se cruzam aqui. O estaleiro parece uma torre de Babel e diferentes peças desta complexa engrenagem são subcontratadas a empresas estrangeiras. “A tuneladora propriamente dita foi montada e é operada por técnicos franceses, mas a passadeira que cresce todos os dias e que recolhe o solo que vai sendo escavado é da responsabilidade de uma empresa chinesa”, diz José Silva Ferreira. A manutenção de todos estes instrumentos afinados e a capacidade de os articular é uma tarefa desafiante que por vezes justifica que o avanço não se faça ao ritmo pretendido.A passadeira rolante encaminha a terra removida para a entrada. “No fim da obra, terá deslocado meio milhão de metros cúbicos de terra, um volume 13 vezes superior ao do edifício dos Paços do Concelho”, explica o engenheiro.  A cada 180 centímetros de avanço da tuneladora, entra no túnel um veículo que transporta seis aduelas de betão, pesando quatro toneladas cada, que constituem mais um anel da estrutura. Num dia sem percalços, esta operação pode repetir-se dez vezes. A obra nunca pára e os funcionários fazem diariamente 3 turnos de 8 horas, 7 dias por semana, a profundidades que podem atingir mais de 70 metros. Por cima das nossas cabeças, estão prédios de habitação num dos pontos em que o túnel passa a maior profundidade.Alguns dias antes, para surpresa de todos no estaleiro, chegou um telefonema com uma queixa de ruído. Os técnicos deslocaram-se ao domicílio do queixoso para verificar se a fonte era efectivamente aquela obra e para sua surpresa, mesmo a 60 metros de profundidade, as vibrações da tuneladora ressoavam nitidamente naquela habitação. “Os níveis de ruído, que se assemelhavam ao de uma máquina de lavar roupa, ficavam, no entanto, aquém dos limites legais e a velocidade da obra não prolongou o incómodo por mais de meia dúzia de dias”, diz Ferreira.Como o caneiro oito décadas antes, as obras do PGDL respondem a uma necessidade básica: a drenagem de águas e efluentes por acção da gravidade em direcção ao rio e ao mar. No entanto, o subsolo de uma metrópole antiga como Lisboa foi cenário de muitas obras contemporâneas e antigas. A característica mais prevalecente de uma cidade é a sua densidade, e isso explica o seu crescimento em altura e profundidade. Além das redes de abastecimento de água, energia, telecomunicações e dados, o subsolo foi conquistado para expandir redes de transportes e lugares de estacionamento.No imaginário colectivo e em obras de ficção, os domínios de Hades são com frequência associados a um lugar mais próprio para sepultar os mortos ou onde subsistem sociedades distópicas, mas em regiões em que as temperaturas sobem acima do suportável a inércia térmica do subsolo é verdadeiramente tentadora. Em Lisboa, porém, é o estacionamento de veículos que tem alimentado muitas das obras de reforço do subsolo e essas obras entreabrem janelas para o passado.No século XVII, o dinamarquês Nicolaus Steno demonstrou que a sucessão do tempo podia ser intuída através da observação dos depósitos geológicos e mais tarde percebeu-se que o mesmo princípio se aplicava ao registo arqueológico. A fixação de populações humanas na região que hoje é Lisboa é muito antiga e todos os empreiteiros experientes sabem e temem que obras que impliquem a mobilização dos solos possam produzir achados arqueológicos e subsequentes derrapagens nos encargos e prazos. Calcula-se que cerca de 3% do orçamento do PGDL seja investido no estudo e resgate dos achados arqueológicos. E alguns desses achados estão a reescrever os manuais de história.“Desde os fenícios que a chegada e partida de navios foi uma constante e marcou o ritmo da vida na cidade. O rio é o sistema circulatório e agora temos mais peças desse puzzle.”Paulo Almeida FernandesEm 2015, durante o restauro de um edifício na frente ribeirinha próxima da Casa dos Bicos, foi descoberta uma estela fenícia que mereceu destaque nas páginas desta revista. Quase uma década mais tarde, essa peça faz parte do valioso espólio exposto no Hotel Aurea Museum, o empreendimento que nasceu depois desse afã construtivo. É aqui que encontramos o historiador de arte Paulo Almeida Fernandes. Três metros abaixo do que é hoje o nível da rua, existe um espaço expositivo que preserva as cetárias romanas para salga e preparados de pescado. Paulo trabalhou no Instituto Português do Património e na Câmara Municipal de Mafra antes de rumar em 2014 à sua cidade natal, onde coordena o serviço de investigação e inventário do Museu de Lisboa. É também o maior especialista português no Caminho de Santiago.O terramoto de 1755 foi uma tragédia, mas também uma oportunidade para aceder a um passado escondido no subsolo que incluiu a descoberta do teatro e criptopórtico romanos. No século XX, as obras de construção da rede do metropolitano abriram literalmente novas vias de acesso ao registo do passado preservado sob os nossos pés. “A arqueologia em Lisboa tem andado à velocidade dos parques de estacionamento e dos hotéis”, lamenta o historiador. Embora a história do passado da cidade esteja delineada em linhas gerais, é expectável que futuras obras, algumas das quais já anunciadas, possam esclarecer as dúvidas que apaixonam os historiadores, como a localização do fórum romano. “A história e a arqueologia têm provado que esta foi sempre uma cidade multiétnica, multirracial, multiconfessional”, diz Fernandes. “Desde os fenícios que a chegada e partida de navios foi uma constante e marcou o ritmo da vida na cidade. O rio é o sistema circulatório e, agora, temos mais peças desse puzzle.”As cidades reconstroem-se nos despojos de grandes catástrofes e Lisboa tem sido ciclicamente assolada por infortúnios. Em 1988, um incêndio cravou uma estaca no coração da cidade. O incêndio da madrugada de 25 de Agosto consumiu 18 edifícios, incluindo os icónicos armazéns do Chiado e do Grandella e ceifou duas vidas. A reconstrução foi polémica e arrastou-se por mais de uma década. Vale a pena reconhecer que, em finais da década de 1980, ainda antes deste sinistro, já a Baixa e o Chiado davam sinais de uma crise identitária e de decadência. As antigas lojas e pastelarias de prestígio perdiam brilho para os novos centros comerciais e até a banca, historicamente sediada na Baixa Pombalina, procurava agora edifícios mais modernos noutras áreas da cidade.É expectável que futuras obras possam esclarecer as dúvidas que apaixonam os historiadores, como a localização do fórum romano.Foi justamente nesse momento, e em contra-ciclo, que o Millennium BCP decidiu investir na requalificação do seu edifício-sede em plena Baixa Pombalina, a 150 metros dos quarteirões queimados pelas chamas. Vivia-se o apogeu da cultura do automóvel e uma das componentes do projecto era um generoso estacionamento subterrâneo. O sonho foi precocemente amputado e hoje existe apenas um exíguo estacionamento reservado à administração porque os achados arqueológicos foram tão extraordinários que não eram compatíveis com o simples estudo e preservação de objectos ex situ.A escavação, de onde foram retirados três mil metros cúbicos de terra, iniciou-se em 1991 e, em 1995, foi inaugurado o Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (NARC). A solidez da engenharia romana deixou vestígios espalhados pela parte baixa da cidade onde se incluem as chamadas Termas dos Cássios e o magnífico teatro romano, cuja implantação na colina do Castelo o manteve a salvo do sepultamento em profundidade. O NARC não é o único local da cidade onde podem ser visitados vestígios arqueológicos milenares, mas nenhum outro lugar preserva no mesmo espaço e de forma tão eloquente 25 séculos de história. De um complexo habitacional da Idade do Ferro às estruturas pombalinas, passando pela presença fenícia, pelos contextos romanos e medievais, a diversidade de artefactos serve de testemunho da passagem do tempo. Poucos lugares no subsolo relatam melhor o bolo de camadas sucessivas que corresponde à evolução de Lisboa e tudo isto se passa naturalmente abaixo das actuais ruas da Baixa onde circulam cada vez mais turistas.A arqueóloga que nos serve de guia confessa com frustração que pouco tempo antes, durante uma visita, lhe perguntaram porque viviam os romanos debaixo de terra. Este equívoco poderia ser repetido noutro vestígio da ocupação romana, mesmo ao virar da esquina – as Galerias Romanas. Esta estrutura foi descoberta em 1771 na sequência dos apressados trabalhos de reconstrução da cidade no rescaldo do terra-moto e o seu propósito foi objecto de intenso debate. Alguns olisipógrafos propuseram que se trataria de um complexo termal, mas hoje parece mais provável que o que resta seja um criptopórtico sobre o qual assentariam edifícios públicos entretanto desaparecidos. As galerias estão parcialmente submersas e abrem para visitas duas vezes por ano. Nessas alturas, a água tem de ser bombeada.O Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros  preserva, no mínimo, 25 séculos de história.O incêndio que se seguiu ao terramoto de 1755 deixou a cidade traumatizada e o tecto das galerias foi aberto em alguns locais para dar acesso a poços pombalinos que não só permitiam acesso ao nível freático para consumo humano, mas também para combater eventuais fogos. Exemplos completos destes poços podem ainda ver-se no NARC. Mas há uma área da cidade onde esse passado está mais marcado.O escritor Arturo Pérez-Reverte pode não concordar, mas o verdadeiro cemitério dos barcos sem nome fica em Lisboa, na Praia da Boavista. Corresponde ao cotovelo que o rio Tejo faz à entrada de Lisboa, delimitado pelas actuais ruas de São Paulo e da Boavista pelo Largo Conde-Barão e pela Calçada do Marquês de Abrantes. As representações iconográficas mais antigas da cidade posicionam sempre navios nesta praia, o que não é de estranhar.À entrada do século XVI, Dom Manuel I proibiu a construção na praia e ordenou que aquele fosse espaço para os navios serem “espalmados e corrigidos”, como se dizia na época. Foi o estaleiro da cidade até à instalação no local de numerosas fábricas, já no século XIX. Para dar o exemplo, o próprio rei instalou-se no Palácio de Santos, hoje a sede da embaixada de França.Ninguém poderia adivinhar, porém, a sucessão de descobertas que as campanhas arqueológicas do século XXI ali produziram. Desde 2002, toda a área tem sido esventrada para a construção de sedes de empresas de energia eléctrica, de correios ou de escritórios de advogados. No subsolo, protegidos por camadas de lodo, começaram a aparecer vestígios desse mundo esquecido. A arqueóloga Inês Mendes da Silva, da empresa ERA Arqueologia, defendeu no Inverno deste ano a sua dissertação de doutoramento sobre a Praia da Boavista. Conhece, como poucos, aquele solo porque acompanhou dezenas de campanhas de arqueologia de salvaguarda, “à chuva, à lama, ao sol, antes, durante e depois da pandemia”, brinca.A obra do Plano de Drenagem nunca pára e os funcionários fazem diariamente 3 turnos de 8 horas, 7 dias por semana, a profundidades que podem atingir mais de 70 metros.Onde hoje assenta o Mercado da Ribeira emergiu entre 2002 e 2003 um extraordinário cais do século XVI. “Hoje, com tudo o que já sabemos sobre os palácios de nobres e os edifícios comerciais que ali foram implantados desde o reinado manuelino, sabemos que o cais estava associado ao Forte de São Paulo, uma estrutura ali erguida durante a Guerra da Restauração para proteger a Companhia Geral do Comércio do Brasil e outros entrepostos comerciais.” Depois desse, apareceram outros cais, passadiços e paliçadas e um extraordinário fundeadouro romano por baixo da actual Praça Dom Luís.As intervenções seguintes, sempre ao sabor das obras em curso, foram destapando novas páginas do mil-folhas que constitui a Praia da Boavista. Na chamada Rua Cor de Rosa, a via pedonal adjacente ao Cais do Sodré, as equipas arqueológicas detectaram as fundações dos primeiros palácios que ali se instalaram depois de Dom Manuel aliciar os nobres endinheirados para se juntarem a ele naquela zona da cidade. “Foi uma frente muito afectada pelo terramoto de 1755, que destruiu essas construções”, diz Inês. Entretanto, emergiram vestígios de embarcações que davam colorido àquela zona de estaleiro. Nas intervenções realizadas no âmbito da construção da sede da EDP, apareceram em 2013 vestígios de dois navios de porte médio dos séculos XVII-XVIII (Boavista 1 e 2). Anos mais tarde, durante a pandemia, surgiu o Boavista 5, que merece um capítulo à parte.“À primeira vista, fazia lembrar o esqueleto de um enorme dinossauro encravado entre as fundações de dois edifícios”, lembra Miguel Lago, director da ERA Arqueologia. Medindo cerca de 22 metros, mas com as extremidades ainda por baixo dos edifícios adjacentes, corresponde ao cavername completo de um navio que ali foi deixado e ter-se-á lentamente afundado no lodo. “Cremos que será de finais do século XVII pelos artefactos associados e que estaria relacionado com o comércio do Atlântico”, diz Inês Mendes da Silva. Durante meses, em plena pandemia, a equipa cartografou e desmontou as 1.500 peças do navio, armazenando-as em 12 contentores marítimos, dois dos quais personalizados para permitir a submersão das peças de madeira, garantindo a conservação do conjunto.Nos últimos vinte anos, emergiram nove esqueletos de embarcações só na Praia da Boavista – alguns, pequenos, próprios para o transvase de mercadorias entre os navios de grande calado e os cais; e outros, como o Boavista 5, aptos para viagens transatlânticas. “Hoje, falamos muito de reciclagem e reutilização de materiais, mas os lisboetas dos séculos XVI a XIX punham-na em prática”, diz Inês Mendes da Silva. “As embarcações que têm aparecido deverão ter estado à vista durante muito tempo e delas foi retirado tudo o que pudesse ser aplicado noutras reparações e nas novas construções portuárias ou nos alicerces das fábricas que ali existiram no século XIX.”Por baixo destas camadas do período moderno, emergiu ainda um cemitério de ânforas e vestígios de embarcações romanas, outra das novidades recentes. “Há uma certa emoção quando percebemos que aquela praia foi usada pelas embarcações que chegaram ou partiram de Lisboa durante pelo menos dois milénios”, diz Inês Mendes da Silva. Com imaginação, consegue-se escutar ainda o ruído das reparações e calafetagens, o cheiro intenso da madeira e dos resíduos das lixeiras vizinhas (a zona era conhecida pelos odores pestilentos) e o bulício próprio das cidades portuárias, onde cada viagem anuncia novas aventuras.“À primeira vista, fazia lembrar o esqueleto de um dinossauro encravado entre as fundações de dois edifícios. Mas era um navio colossal  com mais de 22 metros.”(Miguel Lago)Esta viagem começou com as águas sujas que desciam o vale de Alcântara, mas nenhuma cidade prescinde de um abastecimento regular, abundante e seguro de água potável. Outra obra monumental mostra precisamente a sua face mais visível na transposição deste vale. Mandado construir por Dom João V no século XVIII, o Aqueduto das Águas Livres trazia diariamente 1.300 metros cúbicos de água de Belas e resistiu ao terramoto. Foi mesmo o modelo arquitectónico que fez o rei Dom José confiar nos seus engenheiros para o esforço de reconstrução posterior. A distribuição das águas a partir da Mãe d’Água, no Jardim das Amoreiras, fazia-se por cinco galerias subterrâneas principais que totalizam cerca de 12 quilómetros. Construída em 1746, a Galeria do Loreto tem 2.835 metros de extensão e distribuía água por uma rede de seis chafarizes, alguns já desaparecidos, e também por conventos e palácios. Hoje, esta galeria está equipada com iluminação artificial e pode ser visitada num segmento de 1.250 metros, entre a Casa do Registo e o Jardim de São Pedro de Alcântara. Por aqui passaram conspiradores e amantes discretos que evitavam as ruas à superfície para os seus encontros carnais.Sensivelmente a meio caminho, à passagem pelo Jardim do Príncipe Real, a estreita galeria abre-se numa enorme cisterna com capacidade para 884 metros cúbicos de água. O Reservatório da Patriarcal foi construído entre 1860 e 1864 e a sua planta octogonal replica o polígono desenhado pelo gradeamento à superfície no centro do jardim. No interior, 31 pilares com mais de nove metros de altura suportam os arcos de cantaria que sustentam o tecto abobadado. A tranquilidade monástica e a monumentalidade do espaço é surpreendente. A cisterna deixou de regular os caudais de abastecimento da zona baixa da cidade na década de 1940 e passou a fazer parte do Museu da Água em 1994, acolhendo concertos e outros eventos que aproveitam a sonoridade especial da sala.No âmbito da iniciativa Real Fado, o fadista vilacondense Francisco Moreira extrai hoje da sua guitarra portuguesa sons imemoriais que ecoam por estas galerias, fazendo lembrar o poema de Fernando Girão: “Quem vê o Fado como coisa do passado,/ Não entende que este Fado / É o agora do futuro.” É a sina de Lisboa.À passagem pelo Jardim do Príncipe Real, a estreita galeria abre-se numa enorme cisterna com capacidade para 884 metros cúbicos de água. É o Reservatório da Patriarcal, hoje parte do Museu da água.Voltamos à penumbra da galeria que prossegue num declive suave por mais umas centenas de metros até ao Jardim de São Pedro de Alcântara. Quando a porta se abre sobre uma das mais belas panorâmicas da cidade, a luz do dia cega-nos. Além da vital água, é impossível saber tudo o que estas galerias transportaram ao longo de quase 280 anos de existência. Longe de olhares indiscretos, monges e nobres entraram e saíram dos palácios e conventos vizinhos sem alarido. Mas nem só da circulação de águas, dramas palacianos e estruturas antigas se faz a vida subterrânea da cidade.No estertor do século XX, Lisboa reinventou-se mais uma vez, expandindo-se para oriente e conquistando áreas industriais decadentes. A pretexto dos 500 anos da chegada de Vasco da Gama à Índia, a Exposição Internacional de Lisboa de 1998 apostou num modelo pensado para preservar quase todas as construções após o evento. No fim da Expo’98, o Parque das Nações tornou-se um ambicioso projecto urbanístico e um dos sítios da cidade onde o preço do metro quadrado é mais elevado. Neste contexto, foi projectada de raiz uma infra-estrutura notável: a Galeria Técnica do Parque das Nações.De betão armado, enterrada no solo com uma secção de 405 por 340 centímetros, tem 6.200 metros de comprimento. No interior da Galeria, que faz lembrar um acelerador de partículas, há condutas que transportam água potável e para rega, climatização, resíduos sólidos urbanos, energia eléctrica, televisão, telecomunicações e sinalização semafórica. Há uma imensidão de cabos. Apesar do custo inicial significativo, a prazo, a redução do tempo, dos custos, do transtorno e do tempo despendido na abertura e fecho de valas para aceder às condutas parece irrecusável. Talvez um dia este sistema possa ser prolongado a outras zonas da cidade, facilitando os trabalhos de manutenção e alargamento das redes de distribuição dos mais diversos serviços, com o propósito de retirar da superfície, mas manter acessíveis, as estruturas subterrâneas.Os britânicos foram visionários quando inauguraram em 1863 o metropolitano de Londres, mas, entretanto, este meio de transporte alastrou a quase duzentas cidades espalhadas por cinco continentes e calcula-se que cerca de 170 milhões de passageiros viajem diariamente de metro. A primeira proposta para a construção de um metropolitano em Lisboa remonta a 1885. Em 1888, foi apresentado um projecto à Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, prevendo um metropolitano em viadutos e túneis de via dupla.Apesar de não ter tido sequência por razões económicas, o projecto destacou-se pelo seu carácter pioneiro e pela visão antecipada das necessidades de mobilidade urbana. No entanto, foi preciso esperar até 1955 para se iniciarem as obras, sendo necessária uma espera adicional de quatro anos até à inauguração da primeira rede do Metropolitano de Lisboa, em 1959, com um traçado em forma de Y, constituído então por 11 estações e 6,5 quilómetros de extensão. Essa primeira rede ligava as extremidades setentrionais em Entrecampos e Sete Rios (actualmente estação Jardim Zoológico) à extremidade meridional nos Restauradores.Nas décadas seguintes, a rede expandiu-se e conta hoje com 56 estações divididas por quatro linhas que totalizam quase 45 quilómetros de extensão. Basta consultar uma agência imobiliária para verificar que a proximidade de uma estação é um elemento diferenciador. A rede não pára de crescer e foi ampliada sobretudo à custa do prolongamento para a periferia. Agora, porém, os planos passam por densificar a malha em algumas zonas do centro.Apesar de estar já previsto o alargamento da Linha Vermelha até Alcântara, com passagem por Campolide/Amoreiras, Campo de Ourique, Infante Santo e Alcântara, a obra em curso é a transformação da Linha Verde num trajecto circular, com a ligação entre o Rato (Linha Amarela) e o Cais do Sodré e a criação das novas estações da Estrela e de Santos. Em frente da Basílica, junto do antigo Hospital Militar, uma enorme abertura no solo com 30 metros de diâmetro e onde caberia um prédio de 20 andares é guardada à entrada por mais uma imagem de Santa Bárbara. Voltamos a vestir capacetes, coletes reflectores e calçado de protecção e vamos descendo lanços de escadas. Quando chegamos a 60 metros de profundidade, já ao nível da estação da Estrela, registo mentalmente que se houver um holocausto nuclear e eu tiver tempo, é aqui que irei esconder-me. O túnel está praticamente pronto, o betão está imaculado mas ainda não há sinal de sulipas nem de carris.Ao fim de 500 metros de comprimento, a galeria está coberta com uma tela têxtil. Do outro lado da parede, ouvem-se máquinas. A obra está dividida em diferentes segmentos, com várias empresas responsáveis por cada empreitada.Quando chegamos a 60 metros de profundidade, já ao nível da estação da Estrela, registo mentalmente que se houver um holocausto nuclear e eu tiver tempo, é aqui que irei esconder-me.Do outro lado da tela, o estaleiro mais tosco marca a entrada da estação de Santos que ficará paredes-meias com o antigo edifício do Batalhão dos Sapadores de Lisboa. Junto da Avenida Dom Carlos I, enfeitada com os seus jacarandás em flor, uma vala romana e um poço medieval aguardam parecer dos arqueólogos para que a obra possa prosseguir. Num armazém adjacente, centenas de fragmentos de cerâmica, ossos de animais e outros achados arqueológicos também estão a ser estudados. Na rua, as pessoas passam aparentemente indiferentes à gigantesca obra que se desenrola sob os pés. Prevê-se que o empreendimento de 331 milhões de euros esteja concluído em 2026. Em breve, estas estações serão percorridas diariamente por milhares de pessoas que talvez reparem no seu virtuosismo arquitectónico, nas obras de azulejaria ou escultura que as decoram, ou talvez estejam apenas concentradas em tentar não chegar atrasadas a mais um dia de trabalho. Dificilmente pensarão nas toupeiras humanas que aqui esgravataram o solo e fizeram uma obra para a posteridade.No subsolo da cidade, ficam guardadas memórias de um passado que precede a fundação de Portugal. Mantêm-se as cicatrizes de terramotos e embarcações. E cria-se o cenário do engenho tecnológico que tenta resolver os desafios da vida urbana desta geração e das próximas. Artigo publicado originalmente na edição de Julho de 2025 da revista National Geographic.

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Onde ver vida selvagem na Europa neste Verão – lá fora e cá dentro

Embora densamente povoada, a Europa não tem falta de ilhas solitárias, cordilheiras distantes e florestas escuras e aparentemente impenetráveis – e muitas delas acolhem espectáculos de actividade animal de primeira categoria. Terá de estar bem equipado para desfrutar deles e precisará, quase de certeza, de viajar na companhia de um guia experiente ou de um operador turístico especializado – para o manter seguro e explicar-lhe aquilo que está a ver. No entanto, se cumprir os requisitos básicos, a Mãe Natureza ainda tem capacidades de impressionar.1. St Kilda, EscóciaÉ tanto o cenário como a vida selvagem que tornam St Kilda magnífica. Aqui, 64 quilómetros a oeste das Hébridas Exteriores, uma cidadela com penhascos altíssimos e ilhotas mantém-se firme contra os mares agitados – e está cheia de aves marinhas nidificantes. A última contagem apurou 17 espécies nidificantes, incluindo 100.000 pares de papagaios-do-mar, que formam a maior colónia do Reino Unido.O Verão é a melhor altura para visitar a ilha: numa excursão de um dia, numa viagem mais longa para observar a vida selvagem das Hébridas ou conseguindo um espaço para montar a tenda no popular parque de campismo do National Trust for Scotland (é fundamental reservar com antecedência). Independentemente do tipo de visita que pretenda fazer, a probabilidade de ver golfinhos, orcas, focas e baleias-jubarte durante a viagem torna as emoções ainda mais fortes. Visite também a longa rua de casas abandonadas acima da costa oriental da ilha principal: embora estejam habitadas por guardas e investigadores, os últimos motivos de St Kilda foram evacuados em 1930, após 4.000 anos de habitação humana maltratada pelo clima.2. Montanhas Făgăraș, RoméniaOs conservacionistas têm esperanças de criar o Yellowstone da Europa na região meridional dos Cárpatos, a oeste de Brașov — um parque nacional com cerca de 200.000 hectares, cuja biodiversidade não teria rival no continente. No entanto, não precisa de esperar até o seu trabalho estar concluído para visitar a região. Este troço florestado das montanhas já é o lar de um incrível leque de espécies.Numa noite de Verão, enquanto aguarda a visão dos ursos-pardos a partir de um esconderijo na floresta, ficará surpreendido – e enternecido – por ver o ar tornar-se denso, repleto de insectos, apesar de as populações mundiais continuarem a diminuir. O terreno com cerca de 28.000 hectares da Foundation Conservation Carpathia é uma das áreas mais gratificantes de explorar, algo que pode fazer com a empresa parceira da fundação, a Travel Carpathia. Este parque nacional não só é o lar de linces, lobos e ursos, como de bisontes e castores recentemente reintroduzidos no local. Os próximos da lista de recuperação da natureza serão os abutres.3. Açores, PortugalDez milhões de anos de actividade vulcânica criaram um arquipélago isolado no local onde as placas tectónicas da Eurásia, de África e da América do Norte se encontram. Como seria de esperar, 1.400 quilómetros Atlântico dentro, há muito tráfego aquático em redor das ilhas.No final da Primavera e no Verão, baleias-comuns, jubarte, azuis e piloto encontram-se de passagem e os cachalotes vivem nas águas locais durante todo o ano. Acrescente ao pacote as populações residentes de golfinhos, bem como tubarões-martelo, e terá um destino de vida selvagem excepcional, que se encontra na maior área marinha protegida do Atlântico Norte.Caso a sua prioridade seja ver baleias, deve instalar-se na ilha do Faial. Os mergulhadores, por outro lado, devem dirigir-se a Santa Maria: há possibilidades de avistar tubarões-baleia em Agosto, juntamente com diabos-do-mar, barracudas e tartarugas-comuns.4. Floresta Bergslagen, SuéciaNão precisa de afastar-se muito de Estocolmo para descobrir a vida selvagem da Suécia. Situada a pouco mais de duas horas da capital, a vila de Skinnskatteberg é uma excelente base de lançamento para visitar Bergslagen– uma região outrora famosa pelo seu minério de ferroque foi, entretanto, reconquistada pela Mãe Natureza. A manta de retalhos de pastagens, floresta densa e lagos tranquilos é o lar de populações prósperas de lobos, castores e ursos, bem como um dos melhores sítios para ver alces na Escandinávia.Os guias locais explicam-lhe como encontrar estas criaturas enormes, que podem atingir 1,80 metros à altura do ombro, e conduzem-no, em segurança, até zonas onde os avistamentos são comuns. Também poderá encontrá-los quando estiver a praticar canoagem. Esses encontros na água são os mais excitantes, pois os alces assustam-se muito menos quando as pessoas estão no rio.5. Parque Nacional de Vanoise, FrançaÉ difícil de imaginar, quando estamos numa estância de esqui grande e animada como Val d’Isère ou Méribel, mas muitos dos destinos de esqui mais movimentados de França situam-se mesmo ao lado da maior paisagem protegida dos Alpes. A sua criação resultou da junção de dois parques nacionais contíguos – Vanoise, em França, e Gran Paradiso, em Itália –, e, durante o Verão, proporciona uma sensação serena e espectacular de fuga, com a vantagem adicional de ser bastante acessível.Situada junto à fronteira de Vanoise, Bonneval-sur-Arc é uma bela base, com algumas das zonas mais sossegadas do parque mesmo à porta. Junte-se a uma caminhada orientada durante um dia e aprenderá sobre as consideráveis populações de íbex e camurça, bem como a reintrodução bem-sucedida dos quebra-ossos (uma espécie de abutre), que foram caçados até a extinção no local no início do século XX. Também poderá encontrar evidências do regresso de outra espécie, que não tem sido unanimemente bem-vinda: os lobos. Os seus excrementos são fáceis de identificar e costumam conter pêlo e fragmentos de ossos das suas presas.6. Svalbard, NoruegaSituado a meio caminho entre o círculo Árctico e o Pólo Norte, este posto avançado norueguês tornou-se um destino popular para observar os animais selvagens do Árctico – e não admira. Os programas de férias especializados na observação de vida selvagem abundam, bem como excursões organizadas localmente. O norte de Spitsbergen (a ilha principal) é o foco da actividade estival.Ali em cima, onde continuam a existir banquisas de gelo, encontrará grande parte da população residente de ursos polares de Svalbard, composta por 270 animais (existem até 3.000 na região alargada do Mar de Barents), bem como morsas, baleias, aves marinhas e raposas do Árctico. Os pequenos navios de cruzeiro são caros, mas proporcionam a melhor forma de explorar a região, permitindo misturar a observação de baleias com visitas a locais isolados da costa em botes insufláveis rígidos. Prepare-se para um dia iluminado pela luz solar do princípio ao fim e um clima em constante mudança. As temperaturas médias em Julho oscilam entre os 3 e os 7ºC.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Selena Gomez tem uma missão

A Selena Gomez de hoje, actriz premiada, filantropa multimilionária e empresária, não seria possível sem a Selena Gomez de há vários anos, quando a jovem cantora enfrentou problemas de saúde mental.Em 2018, sofreu um episódio de psicose, uma condição na qual o paciente se dissocia da realidade. Descobriu, mais tarde, que padecia de doença bipolar. A actriz decidiu interromper a carreira e afastou-se dos holofotes. Explorou diferentes tratamentos, incluindo terapia dialéctica comportamental, uma forma de psicoterapia para pacientes em sofrimento emocional intenso até, por fim, encontrar um conjunto de estratégias e um plano de tratamento que resultasse. “Foi intenso durante algum tempo”, diz Selena, agora com 33 anos. “Não foi fácil. Mas, felizmente, agora estou com um estado de espírito muito mais saudável e tento simplesmente não prestar atenção ao ruído.”Quando a sua carreira começou a recuperar, com papéis aclamados pela crítica, como na série Homicídio ao Domicílio e no recente musical Emilia Pérez, Selena sentiu-se compelida a partilhar a sua experiência de uma forma que pudesse ajudar os outros. Fê-lo de uma maneira íntima, através do documentário Selena Gomez: My Mind and Me, de 2022. “Senti-me aterrorizada”, conta. “Porém, não queria que mais ninguém controlasse a narrativa da minha experiência. Quis assumir o controlo e ser sincera. Essa é a minha maneira de agir.”Selena também destinou lucros da sua empresa de cosmética, a Rare Beauty, para criar o Rare Impact Fund, uma organização sem fins lucrativos que disponibiliza recursos de saúde mental a jovens de todo o mundo. “Acima de tudo, adoro aquilo que faço, mas é importante ter um propósito subjacente a uma marca de cosmética”, afirma. “Queria que os outros não me vissem como algo inatingível, com o qual ninguém se pudesse identificar.”Desde o lançamento, em 2020, a Rare Impact já contribuiu com milhões de euros para trinta organizações em cinco continentes, ajudando grupos que se dedicam à educação, resposta a situações de crise e prevenção de suicídios.  Entre os destinatários incluem-se o Ever Forward Club, em Oakland (EUA) que apoia homens jovens em risco, e a Kolkata Sanved, que utiliza a dança como terapia para reabilitar crianças vulneráveis na Índia e na Ásia Austral. Elyse Cohen, presidente da Rare Impact, realça que, ao consciencializar a opinião pública para estas questões, Selena Gomez está também a lidar com o “desafio constante” de como angariar fundos económicos para desenvolver soluções. Graças ao seu trabalho, quem nunca sofreu problemas de saúde mental consegue agora perceber melhor a necessidade de investir.No que lhe diz respeito, Selena diz que só quer que  a opinião pública saiba que há ajuda disponível e que as soluções tanto passam pela partilha do problema em público como por aconselhamento em privado. “Ainda não percebi tudo”, diz. “Mas ajudou a conseguir ligar-me às minhas emoções.”

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Pelos meus filhos

Os trabalhadores destes fornos carregam lama, moldam os tijolos e cozem-nos num calor abrasador. O Bangladesh produz milhões de tijolos todos os anos, e grande parte da indústria ainda depende de métodos manuais. O trabalho é exaustivo e muitas vezes perigoso: trabalhadores como este, com o rosto coberto de pó branco, estão expostos a altas temperaturas e a partículas finas que minam a sua saúde.Ainda assim, para muitos, é uma fonte de rendimento estável num país onde as oportunidades são limitadas. A indústria do tijolo emprega centenas de milhares de pessoas no Bangladesh, muitas delas migrantes rurais que vêm para as cidades em busca de uma saída para a pobreza extrema.Muitos trabalhadores provêm de grupos sociais marginalizados e a discriminação estrutural dificulta ainda mais o seu acesso aos serviços básicos e às oportunidades de promoção social. No entanto, apesar das duras condições, muitos nutrem uma forte esperança: a de que os seus filhos possam quebrar o ciclo. Por isso, fazem sacrifícios, poupam o que podem e, quando possível, mandam os filhos para a escola.

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Como poderá a sobrecarga fotográfica estar a distorcer a sua capacidade de se lembrar

Quando Lavania Oluban vê as fotografias da sua infância, as memórias parecem-lhe incompletas. “Os contornos estão desfocados – estou a substituir as peças que faltam no puzzle por uma memória que não é exactamente real”, afirma.Oluban, de 37 anos, só tem meia dúzia de fotografias dos seus aniversários de quando era pequena, mas o seu filho de 7 anos, Arlo, tem “na boa 200”, captadas pelos telemóveis de diferentes pessoas que estiveram nas festas. “Praticamente todos os segundos da sua vida estão documentados”, diz ela. “O Arlo quase tem uma representação de realidade virtual de um evento, porque existem tantas fotografias e vídeos. Acho que, para ele, é bastante vívido.”Estima-se que, em 2023, pessoas de todo o mundo tenham tirado 5.300 milhões de fotografias, cerca de 61.400 por segundo, segundo o website de dados fotográficos Photutorial. Oluban tem mais de 140.000 no seu telefone: selfies com Arlo, pores do Sol, borboletas, gelados. São instantaneamente acessíveis, pesquisáveis e partilháveis.“As pessoas gravam muitos mais dados sobre as suas vidas do que qualquer geração anterior”, diz Fabian Hutmacher, psicólogo da Universidade de Würzburg, que estuda a forma como os meios digitais moldam as nossas memórias. “É natural que perguntemos: será que isso muda a forma como nos lembramos das nossas vidas?”Como as fotografias digitais estão a reformular as nossas memóriasA memória autobiográfica – as nossas recordações de acontecimentos da nossa vida pessoal – é essencial para o nosso auto-conhecimento. “As memórias são fundamentais para definir quem somos”, diz Hutmacher. “São uma espécie de reservatório que consultamos sempre que pensamos nas nossas vidas.”No entanto, a memória não é como reproduzir um vídeo. Estudos neurocientíficos mostram que este tipo de memória depende de interacções entre o hipocampo, que ajuda a consolidar experiências novas, e o córtex pré-frontal, que as organiza em narrativas de vida coerentes. Estes sistemas são particularmente sensíveis à atenção e ao envolvimento emocional – factores que podem ser prejudicados quando estamos mais concentrados em fotografar um momento do que em vivê-lo.“A nossa memória não é fiel”, diz Júlia Soares, professora assistente de psicologia na Mississippi State University. “Está ligada a quem somos e a nossa criação de histórias ao longo da vida. É a nossa autobiografia.”As fotografias podem contribuir para esta narrativa reconstrutiva. Os investigadores concordam que as imagens ajudam frequentemente a activar a memória, trazendo à superfície pormenores ou emoções que poderíamos, de outro modo, esquecer. “Tiro-as [as fotografias] parcialmente para documentar, mas também para me agarrar a momentos que sei que vou querer revisitar”, diz Alina Nguyen, de 20 anos. “É como uma cápsula do tempo. Às vezes, lembro-me de sentimentos específicos ou pormenores de que me esquecera completamente até ver uma imagem… acho que aprendi muito sobre mim própria só por reparar em padrões ou alterações nas fotografias ao longo do tempo.”Para Hutmacher, porém, as fotografias são mais do que um rastilho para as memórias. Ele defende que, na era digital, as fotografias estão efectivamente a mudar a maneira como forjamos memórias. Recordar, diz ele, já não é algo puramente interno, mas uma interacção entre as nossas mentes e recursos como as fotografias, o que significa que não se baseia apenas naquilo que armazenamos nos nossos cérebros, mas também daquilo que guardamos em dispositivos como os smartphones.Embora descarregar as memórias para suportes exteriores possa reduzir o fardo cognitivo, estudos sugerem que também pode enfraquecer a nossa capacidade de recordar pormenores, a não ser que estejamos activamente a rever o material mais tarde. Como tal, quando consultamos imagens digitais para reconstruir um evento, esses ficheiros não se limitam a ajudar a nossa memória – tornam-se parte dela.Esta mudança levanta novas questões. Se as nossas memórias são parcialmente criadas através daquilo que fotografamos – e aquilo que escolhemos revisitar – então os nossos dispositivos não estão apenas a reflectir o nosso passado. Estão a moldar os momentos de que nos lembramos, quão vividamente o fazemos e, supostamente, quão bem deveremos interpretar as nossas histórias pessoais.Quando demasiadas fotografias se tornam prejudiciaisApesar disso, a existência de mais imagens não significa, necessariamente, memórias mais fortes. Um estudo realizado em 2013 pela psicóloga cognitiva Linda Henkel concluiu que fotografar objectos pode, efectivamente, prejudicar a memória, pois os participantes parecem “depender de um dispositivo externo, a câmara, para os ‘recordadem’ por eles”. No entanto, quando os participantes interagiam com os objectos que fotografaram, lembravam-se melhor deles. “Se for a um concerto e passar 90 minutos a filmar, concentrando-se em obter um bom ângulo, isso irá reduzir o prazer que tira do momento, bem como as memórias que guardará dele”, diz Hutmacher. “Por outro lado, se gravar um trecho curto porque é a sua música preferida, isso pode contribuir para a sua memória mais tarde”.Mesmo assim, a maioria das pessoas não revê regularmente as suas fotografias. E se não forem revistas e organizadas as fotografias podem tornar-se demasiadas, dificultando a tarefa de encontrar as que são, de facto, importantes. “Pode ser uma rosa com um espinho”, diz Soares. “As fotografias fornecem rastilhos incríveis à memória. Mas se nunca mais as vir, não estará a colher esse benefício e poderá, na verdade, estar a perder algo no acto de tirar a fotografia.”A especialista em parentalidade Kirsty Ketley compreende essa contrapartida. Com milhares de imagens guardadas no seu telefone – e com cópias de segurança na nuvem – ela começa a sentir o peso do seu arquivo digital. “Torna-se mesmo avassalador”, diz. Quando foi alertada que o seu espaço de armazenamento estava a chegar ao fim, decidiu tirar menos fotografias, concentrando-se em ocasiões especiais e eventos. “Os pais tiram fotografias sem pensar”, diz ela. “Acho que posso apreciar mais o presente porque não estou tão preocupada com o enquadramento. Estou ali, naquele momento… isso ajuda mesmo a manter essas memórias vivas.”Escolher aquilo de que nos lembramos — e nos esquecemosHá muito que os psicólogos reconhecem que esquecer é fundamental para o funcionamento da memória. No entanto, num mundo saturado de imagens digitais, aquilo que escolhemos captar – e aquilo que escolhemos voltar a ver ou apagar – pode estar a reformular subtilmente esse processo, diz Soares.Os nossos hábitos fotográficos já não se limitam a preservar memórias: fazem parte da forma como as criamos. Por exemplo, existem provas de que nos lembramos melhor das experiências quando partilhamos fotografias nas redes sociais. Por outro lado, no seu estudo realizado em 2023, Soares descobriu que apagar fotografias fazia as pessoas lembrarem-se das experiências de forma menos vívida. Alguns participantes tinham apagado intencionalmente fotografias que queriam esquecer, como de um antigo companheiro ou de uma noite que correra mal.“As pessoas estão a tentar escolher as suas fotografias para se recordarem das coisas da maneira que querem”, diz Soares. “Esses eventos fotografados podem criar montes – e depois podem existir vales onde se encontram as histórias ou acontecimentos não fotografados. Ainda não sabemos até onde isto se aplica.”Para Nguyen, o medo de esquecer é suficiente para guardar todas as fotografias. “Preocupo-me com esquecer coisas que não foram fotografadas”, diz Nguyen, que tem 33.000 fotografias no seu telefone. “Acho que é por isso que se me sinto tão atraída por fotografar – para assegurar que um pedaço daquilo fica comigo. Esquecer pode ser assustador, sobretudo quando diz respeito a pessoas ou momentos que me moldaram.”Este artigo, publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com, faz parte da série A Sua Memória, Reprogramada, uma exploração de National Geographic sobre as fronteiras difusas e fascinantes da ciência da memória – incluindo conselhos sobre como tornar a sua própria memória mais potente.

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Cientistas encontraram marcas de corte num osso de pescoço humano com 850.000 anos. Terá sido… canibalismo?

Segundo arqueólogos espanhóis, o osso do pescoço de uma criança pequena com marcas evidentes de corte, datado de há cerca de 850.000 anos, pode provar que uma espécie antiga de hominíneo, o Homo antecessor, canibalizou uma criança.Os investigadores dizem que a descoberta, anunciada no dia 24 de Julho, é mais um indício de canibalismo paleolítico na gruta de Gran Dolina, na Sierra de Atapuerca, em Espanha, onde vestígios de seres humanos antigos esquartejando outros já são encontrados há décadas. “São evidências directas de que a criança foi tratada como qualquer outra presa”, diz Palmira Saladié, arqueóloga do Instituto Catalão de Paleoecologia Humana e Evolução Social (IPHES-CERCA) e um dos líderes das escavações no sítio onde o osso do pescoço foi desenterrado.A decapitação nem sempre significava que a carne de um indivíduo morto fosse consumida, afirma, mas, no caso desta criança, que tinha entre dois e quatro anos, ela tem quase a certeza de que o indivíduo também foi comido.A vértebra da criança foi encontrada junto dos ossos de nove outros indivíduos, numa camada de sedimentos no interior da caverna datada de há cerca de 850.000 anos. A maior parte dos ossos também tinha marcas de cortes, bem como fracturas que, segundo os investigadores, parecem ter sido feitas para alcançar o tutano no seu interior. No entanto, nem todos concordam com as conclusões da equipa.A gruta doHomo antecessorGran Dolina e o sítio de Atapuerca, nos arredores da cidade de Burgos, no norte de Espanha, foram descobertos na década de 1890, quando foi aberto um troço para a nova linha de caminho-de-ferro numas montanhas situadas nas proximidades. Desde a década de 1960 que as escavações revelavam provas amplamente aceites de canibalismo entre o grupo de Homo antecessor que ali viveu desde há cerca de 900.000 anos até a sua espécie se extinguir, possivelmente pouco mais de 100.000 anos depois.Não existe um consenso científico sobre se o Homo antecessor seria um antepassado directo dos seres humanos anatomicamente modernos– Homo sapiens – ou uma espécie aparentada que se extinguiu.Em qualquer dos casos, as evidências descobertas em sítios arqueológicos pré-históricos – incluindo a gruta mesolítica de Gough, na região ocidental de Inglaterra, e o sítio neolítico de Herxheim, na Alemanha– indicam que essa espécie primitiva de Homo sapiens, era por vezes, canibal. Foram encontrados sinais de canibalismo entre espécies humanas antigas, como os neandertais, em sítios arqueológicos de todo o mundo, incluindo em algumas das evidências mais antigas, descobertas no Quénia.Em alguns casos, aquilo que se considerou outrora evidências de canibalismo entre hominíneos poderá ser outra coisa: remoção da carne dos ossos para um “novo enterramento”, uma hipótese que tem sido proposta para restos neolíticos descobertos em França.Polémica de canibalismoAlguns especialistas discordam quanto à possibilidade de as marcas de corte recentemente encontradas serem provas de que a criança foi canibalizada.“O canibalismo é muito raro”, diz Michael Pante, paleoantropólogo da Colorado State University, que não participou na descoberta. “Não é uma coisa comum de se ver.”Ele diz que, embora os cientistas afirmem ter encontrado evidências de canibalismo em restos mortais de vários sítios arqueológicos, sobretudo em Atapuerca, as provas directas são invulgares.“Esta decapitação não significa que tenham consumido aquele indivíduo”, diz Pante. “É evidente que cortaram a criança por alguma razão, mas existem várias razões para o terem feito.” Uma das possibilidades é um ritual funerário.Pante concorda com uma sugestão feita pelos investigadores, segundo a qual os seres humanos primitivos de Atapuerca caçavam rivais humanos como recurso alimentar.“Não existem muitas provas disso”, afirma. O canibalismo entre os seres humanos – mesmo entre seres humanos muito antigos como estes – era invulgar por motivos nutricionais e poderá ter ocorrido apenas em rituais, acrescenta.Outros investigadores estão mais convencidos.James Cole, arqueólogo e especialista em canibalismo humano ancestral que também não participou no trabalho, diz que as primeiras provas de canibalismo em Atapuerca foram encontradas há quase 30 anos.“Esta nova descoberta talvez não surpreenda”, diz ele, “mas é absolutamente fascinante e sugere a história rica sobre o nosso passado evolutivo que este sítio ainda tem para contar”.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Cor da vida

Esta é a única espécie herbívora de tartaruga-marinha e alimenta-se principalmente de ervas marinhas e algas, o que lhe confere a sua característica gordura corporal verde... daí o seu nome.As tartarugas-verdes encontram-se em todo o mundo, embora habitem principalmente os oceanos Atlântico, Pacífico e Índico, bem como o mar Mediterrâneo.A sua vasta distribuição, associada à diversidade de ameaças que enfrentam (capturas acessórias da pesca, caça ilegal, perda e degradação de habitats, poluição, alterações climáticas...), são os dois principais factores que determinam a necessidade de protecção internacional.

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Hiroxima e Nagasáqui: O homem que sobreviveu duas vezes

Perguntava Sting na sua famosa canção “Russians”, em 1985, “How can I save my little boy from Oppenheimer’s deadly toys?” (Como posso salvar o meu filho dos brinquedos mortais de Oppenheimer?). Referia-se à bomba atómica, à qual quarenta anos antes um cidadão japonês conseguiu escapar... duas vezes. Na superfície, o indivíduo em questão é uma anomalia história. É o homem que sobreviveu a ambas as explosões nucleares em Hiroxima em Nagasáqui, mas a sua história encerra uma lição bem mais profunda e importante para o que somos e seremos como Humanidade.UMA MANHÃ SOALHEIRA EM HIROxIMA E UMA LUZ MAIS INTENSA QUE MIL SÓISChamava-se Tsutomu Yamaguchi. Natural de Nagasáqui, trabalhava desde 1930 na Mitsubishi no design de petroleiros; mas no dia 6 de Agosto de 1945, estava em Hiroxima, a caminho do trabalho. Atrasado, caminhava veloz rumo ao escritório da Mitsubishi, onde contava finalizar os pormenores de um projecto que devia entregar nesse dia. A sua expectativa era terminar o mais rápido possível e regressar à sua cidade natal, estar com a sua família. No meio deste bulício, escutou o barulho de motores sobre si. Era um bombardeiro B-29; e do seu ventre saiu um pequeno objecto com dois pára-quedas que descia lentamente sobre o solo.Eram 8h15 da manhã, o dia instalava-se, mas segundos depois, Yamaguchi assistiu a um relâmpago de luz e um estrondo tremendo que cavalgaram na sua direcção sobre a cidade. A três quilómetros do ponto de impacto, o engenheiro foi projectado violentamente antes de se proteger, por instinto, numa vala de irrigação.Quando a comoção terminou e despertou da inconsciência, horas depois, arrastou-se para o exterior e sentiu dores no corpo todo. Um dos seus tímpanos rebentara, a parte superior do corpo tinha queimaduras graves. Procurou um lugar onde pudesse abrigar-se. Pelo caminho, foi ajudando a desenterrar cadáveres que se encontravam entre destroços. A Hiroxima onde começara a manhã era agora um imenso espaço terraplanado.Finalmente, encontrou um abrigo militar, preparado para proteger de ataques aéreos. Enquanto encontrou alguns colegas, questionando o que lhe acontecera, não se sentiu seguro. Tinha a certeza de que aquele local, supostamente de protecção, não serviria contra a bomba que testemunhara. Era completamente diferente de qualquer outra que conhecia ou ouvira falar. E tinha razão. Yamaguchi assistira à detonação da Little boy, a primeira bomba atómica a ser usada em cenário de guerra. A contagem futura de vítimas seria de cento e quarenta mil mortos, sendo que muitas dezenas de milhar morreriam nas décadas seguintes como consequência de envenenamento por radiação.Hiroxima, à altura uma das mais importantes cidades industriais do Japão e em séculos anteriores centro de operações militares, seria no futuro conhecida como a primeira mártir do átomo. Porém, Harry Truman, presidente dos EUA, escolhera-a, juntamente com o Estado-Maior das Forças Armadas americanas, precisamente pela sua posição estratégia como lar de uma das forças militares mais importantes da estratégia nipónica de defesa do Sul do País.Às vítimas mais imediatas, na ordem dos cento e quarenta mil, seguiram-se muitas dezenas de milhar nas décadas seguintes como consequência de envenenamento por radiação.No entanto, a maior parte das vítimas eram civis. Como Truman mais tarde repetiria, era necessária uma demonstração de força para obrigar o Japão a render-se. Para obrigar ao final de uma guerra que o Imperador nipónico afirmara publicamente querer levar até aos limites drásticos: vencer ou morrer tentando. Hiroxima era, na sua visão, esse exemplo.Figuras que o rodearam nesse período – como o seu sucessor na presidência Dwight Eisenhower ou o general Douglas MacArthur, que comandava todo o teatro de operações dos EUA no Pacífico – afirmaram mais tarde ter-se oposto à bomba antes de esta ser lançada. No entanto, não existem quaisquer provas nesse sentido. Sendo que também não há evidências de que a campanha de bombardeamentos incendiários constantes que os americanos haviam usado nas semanas anteriores a 6 de Agosto de 1945 não estivesse a forçar os Japoneses até ao ponto de ruptura.…E NOVAMENTE EM NAGASáquiTudo isto eram considerações geopolíticas e morais que não eram prioritárias para Yamaguchi. No dia seguinte, embora ferido, quis regressar a Nagasáqui. Estava preocupado com a situação da sua família. Traumatizado pelo que lhe acontecera, soube que, incrivelmente, algumas linhas de comboio se mantinham abertas, incluindo a que viajava até à sua cidade natal. Deslocou-se a pé e pelo caminho assistiu a um cenário atroz. Atravessou rios a nado, porque as pontes haviam sido todas destruídas – contaria mais tarde as visões dos corpos inchados acumulados, alguns deles fundidos.A visão ficaria com ele para sempre, mas só lhe interessava chegar à estação e voltar para casa, onde chegou a 8 de Agosto. A primeira coisa que fez foi dirigir-se ao hospital e tratar dos seus ferimentos. Os médicos recomendaram-lhe repouso, mas o engenheiro de 29 anos não queria conviver com as imagens de Hiroxima, precisava de se concentrar em algo. Na manhã seguinte, então, foi trabalhar na sua fábrica; e enquanto explicava ao patrão tudo o que acontecera na manhã de seis de Agosto, encontrando neste a incapacidade de acreditar que uma só bomba conseguiria destruir uma cidade inteira, Fat Man, o segundo engenho nuclear a ser usado na História em cenário de guerra, detonou.Novamente, a mais ou menos três quilómetros de onde Yamaguchi se encontrava. Novamente, o mesmo cenário: corpos em seu redor, um silêncio mortal, mórbido, nos segundos a seguir à explosão. A fábrica foi obliterada, mas desta vez, a fortuna de Yamaguchi protegeu-o por completo: saiu incólume. Desmaiara de novo, mas sobrevivera uma segunda vez. O problema maior que teve no imediato foi uma infecção. Esta deveu-se a não conseguir substituir as ligaduras que lhe protegiam as queimaduras; e como tal, passou a semana seguinte a vomitar.Em Nagasáqui, morreram à volta de quarenta mil pessoas no impacto inicial. Yamaguchi resistiu. A sua esposa também, juntamente com o filho bébé de ambos. Yamaguchi, traumatizado, mal foi capaz de pronunciar palavra nos dias seguintes à explosão de Nagasáqui; e durante quase 50 anos, foi incapaz de falar sobre o assunto. Depois do fim do conflito, num toque surreal, trabalhou como tradutor para o exército aliado que estava de plantão no Japão.O casal teve mais duas filhas e quando em 1957 o governo japonês criou o conceito legal de hibakusha, designando os sobreviventes de uma explosão atómica, Yamaguchi candidatou-se aos vários privilégios que o estatuto concedia. Nessa altura, voltara a trabalhar para a Mitsubishi e vivia relativamente saudável com a família, mergulhado nos seus traumas, mas feliz o suficiente para deixar o passado para trás. No entanto, com o passar do tempo e o fantasma da guerra nuclear a pairar sobre o mundo, Yamaguchi foi sentindo a necessidade de falar da sua experiência, lembrar as vítimas, aqueles que não tinha tido a sua sorte. Ou azar. Conta que em 1981 ouviu um discurso de João Paulo II tratando a tragédia de Hiroxima como o da mão humana. Acordou nele uma vontade de fazer algo, mas sentiu vergonha, embaraço pelo facto de não se considerar uma real vítima atómica – tirando o tímpano rebentado, não sofrera outros danos visíveis – e e também pelo estigma que durante várias décadas as vítimas de Hiroxima e Nagasáqui carregaram no país, como doentes infecciosos da radiação, como se pudessem espalhar a sua doença a outros. Por isso mesmo eram muitas vezes preteridos em empregos ou simplesmente… em casamento. VENCENDO O ESTIGMA DA VÍTIMATodos estes obstáculos desapareceram em 2005, quando o filho de Yamaguchi, aquele que era bébé aquando de Nagasáqui, morreu de cancro. Abriu-se à exposição pública, surgindo em dois documentários sobre as explosões e com 90 anos – espantoso, quando pensamos no que passou naqueles quatro dias em 1945. Pediu pela primeira vez o passaporte e viajou até Nova Iorque, onde discursou perante uma audiência no edifício das Nações Unidas. A sua figura impressionou jornalistas e cineastas que o entrevistaram. Enquanto que com outros sobreviventes as memórias parecem distantes, uma colecção de fragmentos dispersos, Yamaguchi vive ainda o passado, é uma prova do mesmo, uma encarnação daquele fantasma luminoso que levou Oppenheimer a considerar-se a Morte destruidora de mundos.Em 2009, foi reconhecido como o único duplo sobrevivente atómico pelo Governo japonês. No ano ano seguinte, faleceria de cancro no estômago, com a impressionante idade de 93 anos. A sua esposa falecera dois anos antes e tantos eles como os filhos sofreram de problemas relacionados com radiação após 1945.  Tendo-se tornado numa celebridade momentânea, correspondendo-se com Barack Obama ou recebendo a visita de James Cameron, a luta interior de Yamaguchi reflecte-se na totalidade nos poemas que escreveu já idoso. As recordações vivas, mais do que presentes:“Os corpos estão empilhados uns sobre os outros. E o chão nunca secará Está empapado da gordura de todas as pessoas que arderam e morreram”Tsutomu Yamaguchi, o homem duas vezes amaldiçoado e abençoado, mas eternamente assombrado pelo fantasma da bomba atómica.

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Fotogaleria: 8 sobreviventes da bomba atómica partilham as suas histórias

Quando os EUA largaram bombas atómicas sobre o Japão nos dias 6 e 9 de Agosto de 1945, pessoas foram despedaçadas, queimadas e esmagadas. Detritos e cinzas desceram dos céus como precipitação radioactiva – a chamada chuva negra. O calor extremo das explosões desencadeou incensos gigantescos que obrigaram as pessoas a fugir para os rios, onde muitas se afogaram.No final do ano, o número de pessoas mortas em Hiroxima e Nagasáqui excedia as 200.000. No entanto, não se ficou por ali. Muitos sobreviventes viriam a sucumbir mais tarde devido a doenças causadas pela radiação. Por vezes, também os seus filhos padeceram de maleitas relacionadas. Hibakusha é o termo japonês para “sobreviventes da bomba atómica” – mas, tendo em conta os efeitos duradouros da exposição à radiação, talvez seja mais rigoroso traduzi-lo como “sofredores da bomba atómica”.Quando Hiroxima foi bombardeada, a minha mãe tinha seis anos e estava em casa, a cerca de 1,5 quilómetros do hipocentro (o ponto no solo directamente abaixo da explosão) – pelo menos, era isso que eu pensava. Ela nunca me falou sobre a sua experiência e eu nunca lhe perguntei nada, pois a ideia de imaginá-la num momento de vulnerabilidade assustava-me. Assisti ao sofrimento da minha mãe ao longo de toda a sua vida – desde a doença de Ménière na casa dos 30 anos aos “reforços de sangue” aos quarentas e os diversos cancros aos cinquentas. Ela morreu com 62 anos. A minha tia disse-me mais tarde que a minha mãe poderá ter estado ainda mais perto do hipocentro, numa escola primária onde centenas de crianças morreram.O meu avô morreu devido a síndrome aguda de radiação. A minha avó morreu com cancro no pulmão. A minha prima, cuja mãe estava em Hiroxima naquele dia, desenvolveu uma doença auto-imune que lhe tirou a vida quando tinha 50 e poucos anos. Senti-me grata por chegar aos 50. Nunca pensei sobreviver tanto tempo.Conhecendo os horrores das bombas atómicas, muitos hibakusha defendem a paz. A sua visão concretizou-se parcialmente no dia 22 de Janeiro de 2021, quando o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares, da ONU, entrou em efeito, mas nem os EUA nem o Japão o ratificaram.Conto as histórias dos hibakusha nas aulas que dou na universidade e nas viagens didácticas que organizo no Japão. A fotógrafa Haruka Sakaguchi viajou até lá em 2017 * em busca de hibakusha dispostos a partilhar as suas experiências, que preservou no seu projecto documental 1945.Exploradora da National Geographic, Sakaguchi presta homenagem a esta comunidade cada vez mais pequena através de retratos, testemunhos e mensagens para as gerações futuras. Estou grato pelo seu trabalho, que serve o nosso objectivo partilhado: assegurar que esta atrocidade e a luta destas pessoas não são esquecidas.* As idades remontam a 2017, o ano em que os retratos foram captados.

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De Bucareste a Budapeste: algumas notas sobre um cruzeiro pelo Danúbio

Navegar pelo Danúbio é uma forma de conhecer uma certa Europa para além dos grandes centros urbanos. Ao longo de quase três mil quilómetros, o segundo maior rio do continente atravessa dez países e oferece uma perspectiva privilegiada sobre regiões ainda pouco exploradas pelo turismo. Num cruzeiro fluvial com paragens na Roménia, Bulgária, Sérvia, Croácia e Hungria, é possível aceder directamente ao centro das cidades e vilas, explorando o lado mais autêntico de cada destino.Um rio tão abrangente como este só podia ter desempenhado um papel central na história europeia, como tão bem nos narra o italiano Claudio Magris na sua obra magna Danúbio. Foi rota comercial, fronteira de impérios e palco de conflitos. Hoje, é um corredor de viagem lento e confortável, ideal para quem procura profundidade cultural, paisagens marcantes e um contacto mais próximo com o quotidiano das populações locais. Longe da pressa e dos circuitos turísticos convencionais, um périplo fluvial permite observar a forma como o passado e o presente coexistem nas margens deste rio com séculos de história.Bucareste: entre a herança comunista e a renovaçãoEsta viagem tem início em terra firme, na capital da Roménia. Bucareste é uma cidade de contrastes marcantes, onde o peso da história recente se faz sentir a cada esquina. Um city tour permite um primeiro mergulho nessa fase complexa, revelando tanto os vestígios do regime comunista como os sinais de um país a reinventar-se.O Palácio do Parlamento é o edifício mais importante da era de Ceaușescu. Mandado construir pelo ditador, é actualmente a sede do Parlamento e o segundo maior prédio administrativo do mundo, apenas atrás do Pentágono, nos Estados Unidos. Sinónimo de poder e luxo, o local tem nada menos do que 1.100 quartos, 400 deles transformados em escritórios. O edifício simboliza o autoritarismo e a megalomania de um regime que impôs décadas de repressão e escassez à população romena.Mas para entender o quotidiano do poder durante essa época, a visita à Casa de Ceaușescu é uma boa porta de entrada. A antiga residência oficial do casal Ceaușescu, convertida em museu, mantém intactos os ambientes privados da família: salas de estar luxuosamente decoradas, jardins interiores, uma piscina coberta, colecções de arte e até um closet com os trajes da primeira-dama Elena Ceaușescu. Um contraste gritante com a realidade vivida pela maioria dos romenos nos anos 1980, marcada pelo racionamento de alimentos e pela vigilância constante da polícia secreta.O passeio termina na Praça da Revolução, local simbólico onde, em Dezembro de 1989, milhares de pessoas se manifestaram contra o regime. Foi ali que Ceaușescu fez o seu último discurso público antes de tentar fugir, sendo capturado e executado dias depois.Entre memórias do comunismo e sinais de renovação, Bucareste oferece um primeiro olhar sobre a complexidade da Europa de Leste, um olhar que se aprofundará ao longo de uma rota fluvial muito diversa.Veliko Tarnovo e Arbanasi: o coração medieval da BulgáriaJá a bordo do cruzeiro, a embarcação segue rumo à Bulgária, onde visitamos duas das localidades mais emblemáticas do país: Veliko Tarnovo e Arbanasi. Situadas numa região montanhosa e coberta por vegetação densa, ambas oferecem uma perspectiva única sobre o passado medieval da Península Balcânica.Veliko Tarnovo, antiga capital do Segundo Império Búlgaro, destaca-se pela sua topografia dramática, com casas empoleiradas nas encostas e o rio Yantra a serpentear pelo vale. No ponto mais alto ergue-se a Fortaleza de Tsarevets, que, apesar das sucessivas destruições ao longo dos séculos, mantém vestígios da sua importância histórica. No século XII, era o centro político da Bulgária, e actualmente continua a ser um símbolo da identidade nacional.A poucos quilómetros de Veliko Tarnovo, Arbanasi distingue-se pela sua atmosfera serena e bem preservada, como se o tempo ali tivesse abrandado. Entre as suas principais referências está a Igreja da Natividade, uma das mais antigas e bem conservadas da aldeia. Construída no século XV, impressiona pelos seus frescos ricamente detalhados, que retratam cenas bíblicas com cores intensas.A presença desta e de outras igrejas ortodoxas reflecte a forte tradição religiosa do país. Cerca de 60% da população búlgara identifica-se como cristã ortodoxa, fé que foi oficialmente adoptada em 864, durante o reinado do czar Boris I. Antes disso, o território era dominado por práticas pagãs.Porta de Ferro: o estreito mais impressionante do DanúbioUma das secções mais impressionantes deste cruzeiro fluvial pelas entranhas dos Balcãs é, sem dúvida, a travessia da Porta de Ferro, um estreito desfiladeiro que marca a fronteira entre a Sérvia e a Roménia. Ao longo de cerca de 130 quilómetros, o Danúbio flui entre escarpas íngremes, com paredes rochosas que se erguem abruptamente dos dois lados do rio.Nesta zona, encontra-se a enorme escultura do rosto de Decébalo, talhada directamente na rocha. Com 55 metros de altura, representa o último rei da Dácia, que resistiu à conquista romana no século I. A obra foi concluída no início dos anos 2000, com financiamento privado de um empresário romeno, e acabou por se tornar um marco visual contemporâneo nesta paisagem de forte carga histórica.Nas margens sérvias do DanúbioAo entrar na Sérvia, uma das paragens marcantes é Donji Milanovac, ponto de acesso ao sítio arqueológico de Lepenski Vir. Este é um dos vestígios mais antigos de ocupação humana na Europa, datado entre 7000 e 6000 a.C.O museu, construído de forma a proteger e expor as estruturas originais escavadas no local, apresenta as fundações de habitações com planta trapezoidal, uma característica única desta cultura pré-histórica, e uma colecção de esculturas em pedra, com figuras humanas e animais de traços estilizados. As descobertas revelam não só a sofisticação artística da época, mas também uma organização social surpreendente para o período.Seguindo o curso do rio, o navio aproxima-se das ruínas do castelo de Golubac, uma impressionante fortaleza medieval construída sobre a margem rochosa, num ponto estratégico onde o Danúbio se estreita. As suas torres defensivas, algumas restauradas nos últimos anos, marcam a paisagem e evocam o tempo em que o rio era linha de confronto entre impérios rivais. A última paragem em solo sérvio é Belgrado, a capital do país e uma das cidades mais antigas da Europa. Hoje, revela-se dinâmica e em constante renovação (com algumas polémicas à mistura). Entre os locais visitados, a Catedral de São Sava impressiona pela sua dimensão e presença. É um dos maiores templos ortodoxos do mundo e a sua cúpula é visível de vários pontos da cidade.Nenhuma viagem à Sérvia estaria completa sem uma passagem pelo Museu da Jugoslávia, onde estão expostos objectos e documentos ligados a Josip Broz Tito, líder vitalício da Segunda Jugoslávia entre o período imediatamente a seguir à Segunda Guerra Mundial e a sua morte, em 1980. Durante o seu governo, o país seguiu uma via socialista própria, fora da alçada da União Soviética, mantendo uma posição de neutralidade durante a Guerra Fria. No mesmo complexo encontra-se o memorial onde estão sepultados Tito e a sua última esposa, Jovanka, um espaço que continua a atrair curiosos pelo passado político da região. O museu ajuda a contextualizar o papel que Tito desempenhou na construção da Jugoslávia moderna e como a sua figura ainda suscita interpretações divergentes.Vukovar: memórias de uma cidade em reconstruçãoJá em território croata, o cruzeiro atraca em Vukovar, cidade que se tornou retrato da destruição durante a guerra pela independência da Croácia, nos anos 1990. Foi uma das localidades mais atingidas, alvo de um cerco prolongado e intensos bombardeamentos. Embora muitos edifícios tenham sido reconstruídos, ainda se encontram marcas visíveis dos combates, como fachadas perfuradas por balas e estruturas parcialmente destruídas. Durante a visita, é possível entrar em casas de moradores que viveram a guerra de perto. Com generosidade, servem-nos pratos típicos, partilham relatos pessoais sobre o conflito e mostram-nos como conseguiram reconstruir os seus lares e as suas vidas.Kalocsa e a Puszta: a alma rural da HungriaNum adeus à Croácia, o navio parte rumo à Hungria, fazendo escala em Kalocsa, uma pequena cidade famosa pela sua ligação à paprika, a especiaria símbolo do país. Esta região preserva uma forte autenticidade rural, onde as cores, os bordados e os sabores continuam a celebrar as tradições húngaras. A viagem prossegue até à vasta planície da Puszta, uma região marcada por grandes espaços abertos, pastagens e pela cultura dos csikós, cavaleiros que preservam técnicas tradicionais de equitação e pecuária. Após oito dias a navegar, o cruzeiro termina em Budapeste, com a cidade iluminada a receber os passageiros já noite dentro. Ao longo das margens, pontes, termas e edifícios públicos marcam o ritmo da etapa final da viagem. Última paragem de um percurso que atravessou regiões menos visitadas do continente, onde a vida à beira-rio, os traços do passado recente e a identidade local ajudam a compor um olhar mais atento sobre a Europa para lá dos roteiros mais convencionais.

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Os cientistas descobriram de onde vieram as batatas – e a resposta é curiosa

Do tomate para a batata? Parece que podemos agradecer ao tomate pela nossa adorada batata.Um recente estudo publicado na revista Cell, encontrou a origem genética das batatas modernas. Os resultados mostraram que um cruzamento ocorrido há entre oito e nove milhões de anos entre um antepassado do tomate e outra planta antiga deu origem à primeira batata. Esse romance vegetal resultou numa combinação genética que se tornou um tubérculo denso e amiláceo– o nascimento da icónica batata que todos conhecemos e adoramos.Como os investigadores descobriram a linhagem da batataMais do que um ingrediente delicioso nas nossas refeições preferidas, as batatas são a terceira cultura essencial mais importante do mundo. Podem ser cultivadas colocando parte de um tubérculo no solo, que cresce e se transforma numa nova planta – um clone da primeira, que pode acumular mutações nocivas ao longo do tempo.A batata, tal como a conhecemos actualmente, contém muitas mutações que podem tornar a planta mais delicada. “Gostaríamos de purificá-la”, diz Sanwen Huang, especialista genómico do Instituto de Genómica Agrícola de Shenzhen, na China, que participou no estudo. A sua missão é desenvolver uma nova batata híbrida, com menos mutações nocivas, que possa ser cultivada a partir de sementes, ao contrário das batatas modernas – que não podem.Se mais batatas fossem cultivadas a partir de sementes, os cientistas poderiam remover as mutações nocivas, bem como os riscos de doença aos quais os clones são propensos. Afinal, ninguém quer outra Fome da Batata como a que aconteceu na Irlanda.As batatas pertencem ao género Solanum, o mesmo género dos tomates, das beringelas e dos pimentos, para mencionar apenas alguns. É “um dos géneros de plantas angiospérmicas que tem mais de mil espécies”, explica Sandra Knapp, taxonomista vegetal no Museu de História Natural de Londres, que participou no estudo.Knapp está interessada em descobrir as relações entre as plantas do género, por isso juntou-se a Huang. “Ele está interessado nas batatas. Nós estamos interessados na Solanum”, diz Knapp. “Apercebemo-nos de que havia aqui algo interessante.”Utilizando sequências genómicas completas, Knapp e os seus colegas construíram uma árvore genealógica com seis espécies de batata e compararam-na com 21 outras espécies de Solanum. Também compararam 128 outros genomas a fim de descobrirem a proximidade entre a espécie das batatas e as restantes.As batatas são parentes do grupo dos tomates e de um outro grupo de plantas chamado Etuberosum. “É uma linhagem pequenina, com apenas três espécies”, diz Knapp.Acima do solo, a Etuberosum é igual às batatas, mas, ao contrário das batatas modernas, as Etuberosum antigas e modernas e os tomates não produzem tubérculos.No entanto, quando aquele tomate ancestral e uma Etuberosum se cruzaram há muitos, muitos anos, formou-se um grupo híbrido denominado “Petota”. Este novo grupo deu origem ao tubérculo.A ciência da batataMas se o tomate ancestral e a Etuberosum não conseguiam produzir tubérculos saborosos, porque conseguiu a Petota? Os cientistas descobriram que o novo grupo herdou uma mistura de genes dos dois grupos ancestrais, dando origem a uma batata robusta. Por exemplo, o tomate doou o SP6A, um gene que activa a tuberização (sim, é este o termo técnico), e a Etuberosum contribuiu com o IT1, que controla o crescimento do tubérculo.Esta combinação genética ocorreu na altura certa. O grupo dos tomateiros costuma preferir condições quentes e secas, comenta Knapp, enquanto a Etuberosum gosta de frio e humidade. Há cerca de 10 milhões de anos, a cordilheira dos Andes começou a elevar-se na costa ocidental da América do Sul.As novas altitudes proporcionaram condições frias, mas secas. Os tubérculos capazes de armazenar energia da Petota “permitiram que as novas plantas se expandissem para estes novos ambientes nas terras altas dos Andes”, explica Knapp.O futuro das batatasMuitas vezes, a hibridização não tem bons resultados, diz James Mallet, biólogo evolutivo da Universidade de Harvard, que não participou no estudo.“Não é bom fazer mixórdias de genes daquela maneira”, afirma. Contudo, “de vez em quando, acontecem combinações genéticas estranhas, que não poderiam ter evoluído dentro de cada linhagem – é como agitar os dados novamente”. Estas novas combinações podem fazer uma grande diferença se houver novos habitats para colonizar, podendo dar origem a uma nova espécie.E foi isso que aconteceu. Actualmente, existem 107 espécies de batata selvagem.Ole Seehausen, ecologista evolutivo da Universidade de Berna, na Suíça, diz que o estudo foi o primeiro a demonstrar uma invenção evolutiva essencial – o tubérculo – resultante da hibridização de duas espécies. Esses tubérculos poderão ter ajudado as batatas a serem bem-sucedidas após aquele agitar dos dados genéticos.A reprodução exclusiva através de tubérculos tem desvantagens devido às doenças, mas também fez com que a nova Petota não precisasse de acasalar imediatamente para transmitir a sua nova composição genética. A capacidade de se clonarem “permite às linhagens híbridas que não conseguem reproduzir-se sexualmente sobreviverem”, comenta, até recuperarem a fertilidade.Huang espera usar este novo conhecimento do caminho percorrido entre o tomate e a batata para criar batateiras mais saudáveis. Ele poderá utilizar o tomateiro como plataforma para novos genes e reintroduzi-los na batata, “uma vez que o tomate é praticamente isento de mutações prejudiciais”, afirma.No final, ele espera criar sementes de batata – uma hibridização feita pelos seres humanos para ajudarmos as nossas batatas fritas a eliminarem as suas mutações nocivas.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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O famoso Mercedes-Benz que protegeu presidentes, reis e imperadores no século XX

Em Julho de 1937, um atentado bombista contra António de Oliveira Salazar quase logrou assassinar o ditador português à saída do automóvel para assistir à missa, na capela de um amigo, na Avenida Barbosa do Bocage, em Lisboa. A viatura ficou desfeita e a polícia política do regime decidiu encomendar à Mercedes-Benz dois veículos especialmente adaptados para transporte e protecção de altos dignitários: o Mercedes-Benz 770 Großer. A equipa do Museu do Caramulo identificou, há alguns anos, a nota de encomenda do Estado português.Blindados, com níveis de conforto inéditos para a época e duas filas de bancos que permitiam transportar seis passageiros face a face, os dois Mercedes-Benz encomendados foram entregues a Salazar e ao presidente da República, Óscar Carmona. Mas o exemplar do presidente do Conselho quase não foi usado. Limitou-se ao transporte de dignitários para o Palacete de São Bento. Só na visita de Francisco Franco, em 1949, o veículo foi visto na rua em missão oficial. Por isso, em 1955, quando foi vendido pela Direcção-Geral da Fazenda, acumulava pouco mais de seis mil quilómetros.Arrematado em hasta pública por um sucateiro, foi destinado à corporação de bombeiros do Beato e Olivais, mas o peso excessivo, o consumo de combustível e o elevado custo da reconfiguração travaram essa intenção. Em Junho de 1956, o seu proprietário decidiu vendê-lo e o carro foi então adquirido in extremis por João de Lacerda, um dos fundadores do Museu do Caramulo.Este museu privado consagrado à arte foi inaugurado em 1959, exibindo obras notáveis da colecção dos seus fundadores, mas, na data da inauguração, para manter ocupado o piso térreo do Museu, João de Lacerda colocou ali alguns dos automóveis da sua colecção. A reacção entusiasmada do público levou-o a pensar na possibilidade de juntar duas paixões – arte e automobilismo – na mesma instituição. Curiosamente, o MB 770 era então o carro mais recente da colecção. Hoje, com 87 anos, é o modelo mais bem preservado do mundo desta linha especialmente criada para proteger chefes de Estado.Artigo publicado originalmente na edição de Agosto de 2025 da revista National Geographic.

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Esperanto: o nascimento e a evolução de uma língua universal

Ao contrário de outras passagens bíblicas, os estudiosos do mais sagrado livro da cristianismo concordam que a mítica Torre de Babel – a ambiciosa construção humana que chegaria ao céu – não se baseia em qualquer evento que tenha percorrido a História do Médio Oriente. Destina-se apenas a explicar os motivos da divisão tão grande de culturas e a incapacidade de os indivíduos comunicarem numa língua comum. Sempre foi um enorme problema, para lá de qualquer crença religiosa. Há, aliás, casos em que as palavras desarmam mesmo: em Novembro de 1956, Nikita Khrushchev, o líder soviético, discursava na embaixada polaca em Moscovo quando proclamou uma frase que, perdida na tradução, viria a ser imortalizada na letra da canção “Russians”, de Sting: “We will bury you”. A sala, cheia de representantes diplomáticos ocidentais, tremeu. Parecia uma ameaça séria, clara, em plena Guerra Fria. O medo nuclear efervescente ficou plasmado nas capas dos jornais mundiais no dia seguinte. O problema é que as intenções e até as palavras do líder do Politburo eram muito mais ideológicas: a expressão usada no discurso significava “dig in”, que utilizada no contexto da frase completa (“Gostem ou não, a História está do nosso lado: iremos colocar-vos num buraco”) se torna muito menos agressiva. “Bury you” significa o mesmo, mas de uma forma muito mais violenta (“...iremos enterrar-vos!”). Um simples capricho ideológico, que alude ao Manifesto Comunista, virou declaração de guerra e Khrushchev passou os anos seguintes a ter de explicar a confusão... tudo por causa de um tradutor.O doutor chegou...L.L Zamenhoff, um oftalmologista russo, tinha em mente, já no final do século XIX, esta exacta questão. Num período em que a Europa estava envolvida por pequenos conflitos que se tornavam cada vez mais inescapáveis, um homem bem intencionado ambicionava unir as pessoas através de um idioma comum. Fomentar a paz através do entendimento, criando uma comunidade de falantes que unida pela mesma língua pudesse trabalhar para o bem da Humanidade, era mais do que um sonho – era uma missão. Zamenhoff nasceu judeu e a diversidade de dialectos que separavam as diferentes comunidades judaicas europeias mostrou-lhe como até as mais pequenas variações linguísticas podiam causar as maiores separações. Não poucas vezes, estas misturaram o seu hebraico com as línguas dos países onde se instalaram – o Yiddish, da Alemanha Ocidental, é um resultado deste cruzamento. Antes de mais, o oftalmologista ecuménico fixou-se na ideia de reavivar o Latim, a língua franca dos antigos territórios do Império Romano. Mas achou-o demasiado complicado de aprender e optou então por focar-se nos idiomas que derivaram do romance e do germânico, em larga escala os mais ensinados nas escolas de todo o mundo. Para resolver o problema de um largo vocabulário, usou um truque muito comum no seu russo: os afixos. Esta nova língua devia ser fácil de aprender, reconhecível de imediato e simples, para que qualquer pessoa tivesse bases suficientes para se tornar um falante. O trabalho que Zamenhoff desenvolveu desde a sua adolescência demorou vários anos a terminar e enfrentou obstáculos: a censura czarista proibiu-o de publicar o seu livro explicando o recém-nascido idioma. Entretanto, traduzir obras literárias permitiu-lhe melhorar os fundamentos da sua criação. Assim, em Julho de 1887, lançou Unua libro (“O primeiro livro”), onde declarava que “ma língua internacional, como qualquer língua nacional, é propriedade da sociedade, e o autor renuncia para sempre a todos os direitos pessoais sobre ela”. Para escapar à censura, usou um pseudónimo, “Doktoro Esperanto”, que na gramática nova significava “Aquele que é esperançoso”. No entanto, a palavra, forte e marcante, viria a baptizar então esta língua artificial. De início, o livro tornou-se uma curiosidade apenas nos territórios eslavos, mas foi-se espalhando para vários continentes, gerando até uma revista, La Esperantisto. Novas vozes e novos adeptos levaram a discussões sobre como melhorar o esperanto e Zamenhoff, com alguma relutância, foi incorporando as mais populares. Em 1905, com o Congresso de Bolonha, o esperanto ficou estabelecido tal como o conhecemos hoje. Esperanto: como funcionaNão temos espaço para explicar como este idioma está construído. De uma forma simplificada, o esperanto possui um vocabulário derivado maioritariamente das línguas latinas, com o restante vindo do germânico, do grego e das línguas eslavas. Como todas as línguas latinas, a estrutura frásica é “sujeito-verbo-objecto”. Apesar disto, as propriedades linguísticas e frásicas derivam de 13 outras linguagens, que vão desde desde o hebraico ao lituano, passando por outra língua artificial chamada volapük, criada por volta da mesma altura por um sacerdote católico alemão.O esperanto confunde os linguistas e é um óptimo caso de estudo sobre como uma forma de comunicar pode surgir incorporando elementos e até características aparentemente incompatíveis. Pela sua estrutura, podia ser facilmente incluído na família das línguas indo-europeias; no entanto, a formação de palavras tem muito mais em comum com o mandarim e a estrutura linguística é reminiscente do eslavo. Não deixa de ser uma língua criada por um europeu, que reflecte uma mentalidade eurocêntrica; mas ainda assim, para se facilitar e destacar, utiliza estratégias intuitivas que, algures na História, civilizações bem distantes da Europa usaram para construir a sua própria comunicação. Hoje, o esperanto é, de longe, a língua artificial mais popular em todo o mundo. Existem clubes de faladores em todos os continentes, principalmente Europa e Ásia, tendo países recém-independentes após a Primeira Guerra Mundial, como o Irão, ponderado usá-lo como língua oficial para unificar populações culturalmente diversas. Calcula-se que o número de falantes varie entre 63.000 e 2.000.000, podendo encontrar alguns exemplos aqui e aqui. Desses, garantidamente dois mil são falantes aprenderam-no desde crianças.OUTRAS LÍNGUAS ARTIFICIAISExistem várias toponímias baptizadas em honra do esperanto e do seu criador, e até objectos cósmicos, como os asteróides 1421 Esperanto e 1462 Zamenhoff, os celebram. Se o assunto lhe interessar, pode investigar outras línguas artificiais. Algumas delas antigas como a lingua ignota, criada sem estrutura aparente por Hildegarda de Bingen; ou mais contemporâneas como o eurolengo, uma mistura de inglês e espanhol da autoria de Leslie Jones; e claro, qualquer nerd digno dos seus galões conhecerá o quenya de Tolkien, o klingon da saga Star Trek ou o na'vi, que o linguista Paul Frommer construiu para servir o mundo de Avatar, de James Cameron.

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Este bizarro verme ancestral tinha dentes pontiagudos e uma garganta retráctil

Em Setembro de 2023, Giovanni Mussini, paleontólogo e doutorando na Universidade de Cambridge, juntou-se a uma expedição nas vastas profundezas do Grand Canyon. Ele e outros investigadores embarcaram num barco insuflável e desceram o túrbido rio Colorado, parando ocasionalmente para escalar rochas perigosamente escamosas em busca de fósseis com 500 milhões de anos do período câmbrico, a alvorada da vida animal complexa.Os resultados dessa expedição, publicados a 23 de Julho na revista Science Advances, incluíam os restos minúsculos de crustáceos semelhantes a artémias e moluscos semelhantes a caracóis. No entanto, as descobertas mais interessantes – feitas quando Mussini dissolveu rochas do Grand Canyon em ácido e as examinou em busca de fósseis – foram dois tipos de dentes minúsculos e misteriosos. Um dos conjuntos era afiado. O outro tinha protuberâncias emplumadas nos lados. Ambos, veio a descobrir-se, pertenciam ao mesmo monstro de aparência obscena.A criatura era um verme priapulídeo, frequentemente conhecido, por razões óbvias, como “verme-pénis.”“Têm… uma forma peculiar”, diz Mussini.Após a sugestão de um colega obcecado pela Guerra das Estrelas, Mussini chamou ao verme recém-descoberto no Grand Canyon Kraytdraco spectatus, uma alusão ao “dragão krayt”, um enorme dragão escavador da série The Mandalorian. Um K. spectatus adulto teria aproximadamente 15 a 20 centímetros de comprimento, diz Mussini.Uma espécie de garganta retráctil emergiria rapidamente do seu corpo, fazendo lembrar o xenomorfo de Alien. Esta garganta, ou faringe, possuía espirais de dentes. No entanto, o verme do Grand Canyon era diferente da maioria dos seus congéneres. Embora tivesse os habituais dentes pontiagudos em volta do anel da garganta retráctil, o interior estava cheio de filas concêntricas de dentes aparentemente emplumados, “que nunca foram observados em nenhum outro sítio”, afirma Mussini.A faringe do priapulídeoCom um nome que alude a Priapo, o deus romano da fertilidade, os priapulídeos são muito, muito mais antigos do que os genitais dos vertebrados aos quais se assemelham. Vestígios de fósseis e restos de corpos anteriores ao início do período câmbrico sugerem que foram dos primeiros predadores especializados e engenheiros que escavavam ecossistemas, devorando tudo o que pudessem engolir. Alguns viviam como caranguejos eremitas nas carapaças de animais. Outros alojavam acumulações simbióticas de vermes mais pequenos.“Existem priapulídeos por todo o lado nestes excepcionais depósitos de preservação, como na China e nos Xistos de Burgess”, diz Mussini.Num vídeo no qual a sua equipa reproduziu esta nova espécie de priapulídeo, a faringe do animal ergue-se em direcção à câmara como se perseguisse uma presa, mostrando as filas concêntricas de dentes emplumados no seu interior. Enquanto os dentes maiores e mais robustos à volta da borda eram capazes de raspar sedimentos ou pedaços de carcaças de animais, os anéis mais delicados poderiam filtrar “as partículas mais finas nas quais o animal estava realmente interessado”, afirma Mussini.Uma vez saciado, “dobrava a faringe para dentro, recolhendo-a, como o dedo de uma luva”, E o verme recuperava uma aparência mais bulbosa.Embora o seu nome seja inspirado numa personagem da Guerra das Estrelas, Mussini diz que o verme-pénis é mais parecido com os vermes de areia de Duna, com a sua boca semelhante a um esfíncter cheia de pequenos dentes que peneiram a areia. Infelizmente para a equipa de investigação, o nome “Shai-Hulud” já fora reivindicado pelo fóssil de um verme não aparentado.“Esse nome ficaria melhor a um priapulídeo”, diz Mussini, “porque a semelhança é mesmo incrível.”Os vermes priapulídeos ainda existem, acrescenta Mussini. Há cerca de 20 espécies vivas, embora tenham encolhido e agora meçam poucos milímetros.“Poderá ter havido alguma tendência para a miniaturização à medida que os milénios foram passando”, diz ele sobre os vermes priapulídeos que resistiram a 500 milhões de anos de evolução.Por outras palavras, no que diz respeito aos vermes-pénis, o tamanho não era necessariamente tudo.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Os porcos nadadores das Bahamas

Estes animais têm uma camada de gordura superficial e pulmões grandes que lhes conferem boa flutuabilidade. Nadam com confiança ao lado dos banhistas, aproximam-se dos barcos e tornaram-se uma das atracções turísticas mais curiosas do arquipélago.Mas como é que foram parar lá? Ninguém sabe ao certo, mas a versão mais difundida fala de marinheiros que os deixaram para criá-los mais tarde e nunca mais voltaram. E, embora a imagem destes porcos nadadores seja tão cativante quanto surrealista, a sua situação levanta algumas questões: a praia não é o seu habitat natural e a interacção constante com turistas, somada a uma dieta inadequada à base de pão e snacks, tem causado, por vezes, doenças ou mesmo mortes entre os animais. Em resposta, o governo das Bahamas impôs recentemente algumas regulamentações: é proibido dar-lhes comida directamente na água e eles devem ter um cercado em terra firme com alimentação e sombra adequadas.

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Raios: o que são, qual a sua origem, que tipos existem e como nos devemos proteger deles

Relâmpagos iluminando um céu escuro criam uma imagem inesquecível. Dado todo o seu dramatismo e a sua intensidade, não admira que as pessoas lhes tenham atribuído um significado simbólico. São associados a divindades mitológicas, como Zeus e Thor, e até a um emoji na cultura popular.Na vida quotidiana, estas correntes eléctricas podem ser perigosas, causando incêndios florestais intensos e mortes. O facto de existirem muitos mitos sobre o comportamento relacionado com os raios não ajuda.Desde as suas causas a dicas de segurança, segue um guia para entender melhor estas explosões vindas do nada.O que são os raios e o que os provoca?Os raios são uma descarga eléctrica gerada por desequilíbrios entre nuvens de tempestade e o solo ou no interior das próprias nuvens. A maioria ocorre dentro das nuvens.Durante uma tempestade, a colisão de partículas de chuva, gelo ou neve no interior das nuvens de tempestade aumenta o desequilíbrio entre as nuvens e o solo, conferindo frequentemente uma carga negativa à parte inferior das nuvens.Os objectos existentes no solo, como torres, árvores e a própria Terra ganham carga positiva. Isso cria um desequilíbrio que a natureza tenta corrigir transmitindo correntes entre as duas cargas.Estes raios são extremamente quentes. Podem aquecer a atmosfera à sua volta até 27.760º C – cinco vezes mais quente do que a superfície do Sol. Este calor faz com que o ar em seu redor se expanda rapidamente e vibre, originando o trovão que ouvimos pouco depois de ver um relâmpago.Tipos de raioOsraios nuvem-solo são comuns – cerca de cem atingem a superfície da Terra a cada segundo. Contudo, a sua potência é extraordinária. Cada raio contém até mil milhões de volts de electricidade.Um raio nuvem-solo típico começa quando uma série de cargas negativas escalonadas, iniciada por um raio líder, descem da parte de baixo de uma nuvem em direcção à Terra ao longo de um canal a cerca de 300.000 km/h. Cada um destes segmentos tem cerca de 46 metros de comprimento.Quando o degrau mais baixo fica a 46 metros de um objecto com carga positiva, é recebido por uma corrente ascendente de electricidade positiva, conhecida como canal ascendente, que pode subir através de um edifício, uma árvore ou até uma pessoa.Quando os dois se encontram, a corrente eléctrica flui sob a forma de cargas negativas, que descem pelo canal em direcção à terra, e um clarão visível sobe, conduzindo electricidade sob a forma de um raio, ao longo do processo.Alguns tipos, incluindo os mais comuns, nunca saem das nuvens. Em vez disso, viajam entre zonas com cargas diferentes dentro de uma nuvem ou entre nuvens. Algumas outras formas raras podem ser desencadeadas por incêndios florestais extremos, erupções vulcânicas e nevões.“Relâmpago difuso” descreve um raio distante que ilumina toda a parte inferior de uma nuvem. Outros raios visíveis podem manifestar-se como relâmpagos conta, fita ou foguete. Cerca de um a 20 raios nuvem-solo são “raios positivos”, um tipo gerado no cimo das nuvens de tempestade, com carga positiva.Estas descargas invertem o fluxo da carga dos raios típicos e são muito mais potentes e destrutivos. Os raios positivos podem propagar-se pelo céu e surgir “do nada” a mais de 15 quilómetros da sua nuvem de origem. Por esta razão, os raios positivos são um dos tipos mais raros.Os relâmpagos globulares são outro tipo raro: pequenas esferas carregadas de electricidade que flutuam, brilham e saltitam, ignorando as leis da física. Este tipo de raio ainda intriga os cientistas.O que acontece quando alguém é atingido por um raioOs raios causam cerca de 24.000 mortes em todo o mundo anualmente. Muitas outras centenas de pessoas sobrevivem, mas sofrem uma série de sintomas persistentes, incluindo perda de memória, tonturas, fraqueza, dormência e outras maleitas que afectam a qualidade de vida.Nos humanos, os raios podem causar ataques cardíacos e queimaduras graves, mas nove em cada dez pessoas sobrevivem. Já quanto às árvores, o calor extremo de um raio vaporiza a água existente no seu interior, criando vapor que pode rachá-las ao meio. Também envia rapidamente correntes eléctricas através da água e do metal.Dicas de segurançaAo contrário da crença popular, os raios podem cair várias vezes no mesmo sítio.Quando há relâmpagos ou trovoadas, as autoridades aconselham as pessoas a evitarem zonas com água, objectos metálicos e árvores altas, sobretudo se estiverem a trabalhar ao ar livre. Em vez de procurarem abrigo em estruturas pequenas, é recomendado às pessoas que se dirijam para um espaço fechado.Muitas casas estão assentes em varas metálicas e outras protecções que conduzem a electricidade de um raio para o solo sem causar danos. As casas também podem estar inadvertidamente ligadas ao solo por canalizações, esgotos ou outros materiais.Os edifícios com ligação ao solo oferecem protecção, mas os seus ocupantes que toquem em água corrente ou utilizem um telefone fixo podem apanhar um choque devido à electricidade conduzida.Os automóveis são refúgios – mas não pela razão que a maioria das pessoas pensa. Os pneus conduzem a corrente, bem como o chassis metálico, conduzindo a carga do raio inofensivamente até ao solo.Mantenha-se no interior durante 30 minutos depois de ver o último relâmpago ou ouvir o último trovão. Pessoas que se encontravam a 15 quilómetros do centro de uma tempestade já foram atingidas por raios.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Como Louis Braille revolucionou um sistema de escrita – apesar dos esforços para o deterem

Onde estaríamos sem a escrita? Desde as suas origens há mais de 5.000 anos na antiga Mesopotâmia, a história da escrita ecoa a história da humanidade. Os gregos e os romanos criaram alfabetos únicos, os chineses desenvolveram caracteres complexos e actualmente lemos romances, jornais e publicações nas redes sociais. Um alicerce da civilização humana, a escrita é fundamental para o estado de direito e acumulação de conhecimento e cultura. No entanto, as pessoas cegas só tiveram acesso à escrita no século XIX.Entre 1824 e 1825, Louis Braille criou um sistema composto por pontos em relevo que poderiam ser lidos com as mãos. Inicialmente ignorada, esta invenção viria a ser adoptada universalmente no século XX, abrindo um novo mundo de aprendizagem para as pessoas com deficiência visual. Num discurso proferido na Sorbonne no centenário da morte de Braille, Helen Keller disse: “Nós, os cegos, temos uma dívida tão grande para com Louis Braille como a humanidade para com Gutenberg.”Mas houve precedentes. A mudança de atitude anterior ao nascimento de Braille contribuiu para abrir o caminho para a tolerância. A Carta sobre os Cegos, do filósofo Denis Diderot, de 1749, defendeu que as pessoas cegas tinham a mesma capacidade intelectual que as pessoas com visão. As primeiras escolas para cegos abriram em França e Inglaterra no final do século XVIII, mas o sistema de escrita de Braille proporcionou-lhes um meio para interagirem com textos e partituras.Um acidente transformadorO mais novo de quatro filhos, Braille nasceu em 1809 na aldeia de Coupvray, 35 quilómetros a leste de Paris. O seu pai, Simon-René, era correeiro, uma profissão com elevada procura. A família vivia confortavelmente e também cultivava vinhas para produção de vinho. Luxos como um forno de pão podem ser actualmente vistos na casa da família, transformada no Museu Louis Braille na década de 1950. O ponto central do museu é a reprodução da oficina do pai de Braille, onde ele sofreu o acidente que viria a causar a sua perda de visão, mudando o seu destino – e o rumo da história.Braille era uma criança curiosa de três anos e esgueirou-se às escondidas para a oficina, para brincar com as ferramentas que via o pai usar. Quando tentou fazer um furo no cabedal com um furador, a ferramenta escorregou e furou-lhe o olho. Este ferimento horrível causou uma infecção que se espalhou para ambos os olhos, deixando-o cego aos cinco anos, uma vez que os antibióticos ainda não tinham sido descobertos.Um acidente trágicoOs seus pais, consternados, não queriam que o destino do filho ficasse traçado numaépoca em que as pessoas com deficiência visual eram tratadas como sub-humanas e frequentemente ridicularizadas pela sua deficiência. Nas ruas de França, os cegos desfilavam com trajes ridículos ou resignavam-se a pedir esmola. O ensino público ainda não era obrigatório em França, mas os pais de Braille estavam cientes da importância da alfabetização. Para ajudar o filho, Simon-René pregou pregos para desenhar as formas das letras do alfabeto em painéis e pediu ao abade Jacques Palluy que desse aulas a Braille.Aos sete anos, Braille já frequentava a escola local, onde era o único aluno cego. O seu professor ficou espantado com sua inteligência e comportamento alegre – características que foram admiradas pelos seus amigos de ao longo de toda a sua vida. Alguns anos mais tarde, Braille obteve uma bolsa de estudo para prosseguir os seus estudos no Instituto Real para os Jovens Cegos, a primeira escola do género e que ainda hoje funciona, sob a designação de Instituto Nacional para os Jovens Cegos, ou INJA. Aos 10 anos, foi o aluno mais novo do instituto.O mais espantoso de tudo foi que a sua família, que era tão unida, o deixou sair de casa. “A mãe e o pai poderiam facilmente tê-lo mantido na aldeia”, explica Farida Saïdi-Hamid, curadora do Museu Louis Braille. “Iriam escrever o seu destino sem saber.” O apoio da família seria uma constante para Braille e ele regressaria a Coupvray para descansar e recarregar baterias ao longo de toda a sua vida.Uma oportunidade de aprendizagemFundado pelo educador pioneiro Valentin Haüy, o instituto foi inovador na sua metodologia e abordagem. Os alunos aprendiam uma variedade de temas académicos e um ofício manual. Haüy criara uma forma de estampar livros com letras em relevo, que as crianças conseguiam ler com as pontas dos dedos, embora com grande dificuldade. A escola seria a salvação e o fim de Braille, depois foi provavelmente ali que ele contraiu a tuberculose que acabou por matá-lo.O edifício, situado no pólo estudantil de longa data de Paris, o Bairro Latino, era sujo, húmido e desgastado. Até fora utilizado como prisão durante a revolução francesa. No entanto, apesar das más condições e dos castigos, por vezes, severos aplicados às crianças que quebravam as regras, Braille prosperou, fazendo amigos e alcançando a excelência nos estudos. Os professores repararam na sua notável inteligência e qualidade espiritual. O seu amigo Hippolyte Coltat escreveu mais tarde: “a amizade com ele era um dever escrupuloso, bem como um sentimento de ternura. Ele teria sacrificado tudo por ela, o seu tempo, a sua saúde, as suas posses.”Momento eurekaO catalisador da invenção de Braille deu-se em 1821. O capitão Charles Barbier, oficial de artilharia, criaria um meio de “escrita nocturna” para o exército francês transmitir e executar ordens sob o manto da escuridão. Convencido do seu mérito para as pessoas cegas, Barbier transformou este código de pontos e traços num sistema de base fonética que apresentou aos alunos. Havia falhas linguísticas – a sonografia reduzia a linguagem a sons, por isso a ortografia não era exacta e não havia pontuação –, mas Braille teve uma epifania. Um sistema de pontos seria um método fácil e eficiente para as pessoas com deficiência visual lerem e escreverem.Ele passou os quatro anos seguintes a trabalhar nesse código. No instituto, fazia directas depois de as aulas terminarem. Mesmo quando estava de férias em Coupvray, os aldeões diziam que viam o rapaz sentado numa colina com um estilete e um papel na mão. Aos 15 anos, conseguiu criar aquela que viria a tornar-se conhecida como a escrita braille. A base do sistema eram células de seis pontos dispostos ao longo de duas colunas e três filas. Cada combinação de pontos em relevo representa uma letra do alfabeto. Era elegante na sua simplicidade e lógica.Os alunos da escola adoptaram rapidamente o seu uso – permitido oficiosamente pelo director François-René Pignier. Braille reconheceu humildemente a sua dívida para com Barbier no seu livro Processo para Escrever as Palavras, a Música e o Cantochão por meio de Pontos, para Uso dos Cegos e disposto para Eles, publicado em 1829: “Se sublinhámos as vantagens do nosso método em relação ao dele, temos de dizer, em sua homenagem, que foi o seu método que nos deu a nossa ideia.”A Batalha pelo BrailleApesar de Pignier ter promovido o braille e endereçado cartas ao governo, o sistema não foi imediatamente aceite. A ordem estabelecida, ditada pelas pessoas com visão, era resistente à mudança e favorecia o uso uniforme de um sistema de escrita.Braille tornou-se professor no instituto aos 19 anos. Aos 26 anos, foi diagnosticado com tuberculose, tendo passado longas temporadas de convalescença na sua casa em Coupvray. Entretanto, intrigas políticas na escola levaram à saída de Pignier. O seu substituto, Pierre-Armand Dufau, recusou peremptoriamente o uso do braille, chegando a queimar livros e a castigar alunos apanhados a usá-lo.Graciosamente, Braille persistiu na sua luta pela aceitação do seu novo sistema de escrita. Uma carta que escreveu a Johann Wilhelm Klein, fundador de uma escola para pessoas cegas em Viena, em 1840, mostra os seus humildes esforços de persuasão ao descrever mais uma invenção, o decaponto, um meio para as pessoas cegas e com visão comunicarem entre si: “Ficaria muito feliz se os meus pequenos métodos pudessem ser úteis para os seus alunos e se este espécimen for, a seus olhos, a prova da elevada consideração que tenho por ser, meu senhor, o seu respeitoso e muito humilde servo, Braille.”O reconhecimento chegou finalmente em 1844, na inauguração das novas instalações da escola na Boulevard des Invalides. Por esta altura, Dufau já mudara de ideias em relação ao braille, devido à insistência do director adjunto, Joseph Guadet. Após um discurso sobre o sistema de pontos em relevo, os alunos demonstraram o seu uso, transcrevendo e lendo versos. Guadet escreveu mais tarde: “Braille era modesto, demasiado modesto... as pessoas à sua volta não o valorizavam… Talvez tínhamos sido os primeiros a atribuir-lhe o seu merecido lugar aos olhos do público, quer por termos utilizado o seu sistema de forma mais generalizada na nossa instrução musical ou por darmos a conhecer todo o significado da sua invenção.”Ligando os pontosLouis Braille não viveu tempo suficiente para assistir àadopção universal do braille. Morreu a 6 de Janeiro de 1852, na companhia do seu irmão e amigos. Nenhum jornal publicou a notícia da morte do homem a quem Jean Roblin, o primeiro curador do Museu Louis Braille, chamou “o apóstolo da luz”. Alunos angariaram dinheiro para o escultor parisiense François Jouffroy fazer um busto em mármore baseado na máscara funerária de Braille.Em 1878, em Paris, o congresso global para pessoas surdas e cegas propôs uma norma internacional de braille. O braille foi oficialmente adoptado pelas pessoas de expressão inglesa em 1932 e os esforços pós-guerra da UNESCO unificaram adaptações na Índia, em África e no Médio Oriente. É impossível sobrestimar o legado profundo de Braille.No centenário da sua morte, os feitos de Braille foram finalmente celebrados numa homenagem nacional. O seu corpo foi exumado do cemitério de Coupvray e transferido para o Panteão de Paris, o local de repouso dos grandes cidadãos de França. (As suas mãos permaneceram numa urna decorada com flores de cerâmica na sua sepultura em Coupvray.) O desfile pelas ruas de Paris incluiu centenas de pessoas cegas, de braço dado, algumas com óculos escuros, batendo com bengalas brancas nas pedras da calçada.Contudo, a luta continua 200 anos após a invenção da escrita braille. É uma luta para preservar não só a memória de Louis Braille, tema de surpreendentemente poucas biografias, como o uso do seu sistema na era digital. As crianças com deficiência visual estão, cada vez mais, a aprender com ecrãs e programas de áudio, mas os neurocientistas dizem que a escrita é fundamental para o raciocínio, as ligações cerebrais e a aprendizagem. Os benefícios cognitivos da escrita têm uma importância fundamental. Estudos mostraram que quando uma pessoa cega lê braille através do tacto, o córtex visual fica iluminado.Perante a escassez de professores de braille em todo o mundo, a alfabetização em braille desceu a pique e o seu próprio futuro está em perigo. Saïdi-Hamid, curadora do Museu Louis Braille há quase 17 anos, compara a sua luta para defender o braille com um “combate para defender a própria inteligência”. Sublinhando a “personalidade extraordinária” de Braille, disse Saïdi-Hamid, “ele sempre encarou a sua deficiência como uma força e não como uma limitação”. Tal como Braille lutou durante a sua vida, a luta tem de continuar.Seis milhões de pessoas usam o braille actualmente. O seu futuro está assegurado num mundo de alta tecnologia. A escrita pode ser facilmenteconvertida para formatos digitais e pode ser lida e escrita nos ecrãs tácteis de computadores ou tablets. Um utilizador de braille experiente consegue ler 200 palavras por minuto (a maioria das pessoas com visão consegue ler 250). Embora a alfabetização em braille esteja a diminuir, será necessária para um futuro no qual o envelhecimento da população fará aumentar o número de pessoas cegas e com deficiência visual. O seu poder como sistema universal que pode ser utilizado por qualquer pessoa independentemente do seu background linguístico, fez com que o seu criador francês alcançasse o estatuto de herói internacional. Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Vénus, a abrasadora “Estrela da Manhã”

Dados do planeta VénusCaracterísticas de VénusEstrutura, geologia e composição de VénusA atmosfera de VénusA exploração de VénusOutras curiosidades sobre VénusDados do planeta VénusCaracterísticasVénusDistância orbital (km)108.209.475Raio equatorial (km)6.051Volume (km3)928.415.345.893Massa (kg)4.867.320 x 1018Densidade (g/cm3)5,243Gravidade à superfície (m/s2)8,87Velocidade de escape (km/h)37.296Duração do dia116 dias e 18 horas terrestresDuração do ano225 dias terrestresVelocidade da sua órbita em redor do Sol (km/h)126.074Composição da atmosfera (exosfera)Dióxido de carbono e nitrogénioLuas descobertas-Superado apenas pelo Sol e pela Lua, Vénus é o objecto mais brilhante visível no firmamento a partir da Terra. Isto fez com que, devido ao seu brilho e beleza, os antigos romanos associassem o planeta à deusa da beleza e do amor, Vénus, cujo nome recebeu.Características de VénusParte da intensidade do brilho de Vénus deve-se à sua proximidade da Terra, uma vez que é o planeta mais próximo do nosso. Além disso, Vénus é observável no firmamento durante as últimas três horas depois do entardecer e as primeiras três horas antes do amanhecer – juntamente com a intensidade do seu brilho, este fenómeno fez com que ganhasse o epíteto de “Estrela da Manhã”.Vénus é o segundo planeta mais próximo do Sol e o terceiro maior, depois de Mercúrio e Marte. Tal como Mercúrio, não possui satélites. É um dos quatro planetas rochosos do Sistema Solar e, devido à sua grande semelhança com a Terra, tanto em termos de tamanho como de densidade, é por vezes considerado o nosso planeta gémeo. No entanto, Vénus não é assim tão parecido com a Terra. Uma das coisas em que difere da Terra e dos restantes planetas do Sistema Solar é que gira sobre o seu eixo: ou seja, em Vénus o Sol nasce a Oeste e põe-se a Leste. Além disso, a sua rotação é extremamente lenta, demorando 243 dias a dar uma volta sobre si mesmo.Estrutura, geologia e composição de VénusEm relação ao tamanho, Vénus é o planeta do Sistema Solar mais parecido com a Terra: tem 12.104 quilómetros de diâmetro; o nosso planeta tem 12.756 quilómetros. Tal como a Terra, Vénus possui um núcleo de ferro envolto num manto de rocha quente e uma crosta rochosa. A superfície apresenta uma cor oxidada e está salpicada por montanhas e milhares de grandes vulcões, alguns dos quais activos.Os cientistas também postulam que Vénus pode, em tempos, ter albergado um mundo oceânico habitável, como a Terra, mas isso terá sido, no mínimo, há mil milhões de anos. Segundo esta teoria, a superfície de Vénus também se pareceria com a do nosso planeta há alguns milhões de anos, mas foi alterada para sempre pelas suas forças tectónicas e actividade vulcânica. Por exemplo, os últimos estudos propõem a possibilidade de a maior parte da superfície de Vénus se ter formado há apenas 150 milhões de anos.Tal como a Terra, Vénus possui umcampo magnético. No entanto, ao contrário do que acontece no nosso planeta, este não é induzido por um núcleo de ferro, mas pela interacção do campo magnético do Sol com a atmosfera exterior de Vénus, dando origem àquilo que se chama um campo magnético induzido.A atmosfera de VénusOutra das grandes diferenças entre Vénus e a Terra, é a sua atmosfera infernal, muito espessa e rica em dióxido de carbono. Com efeito, a atmosfera de Vénus é tão densa que, observado a partir da sua superfície, o Sol parece uma ténue centelha de luz. Juntamente com as nuvens densas de ácido sulfúrico que rodeiam o planeta, isso gera um efeito de estufa tão poderoso que transforma Vénus no planeta mais quente do Sistema Solar – mais ainda do que Mercúrio, o planeta mais próximo do Sol. A temperatura em Vénus pode alcançar os 475º C, suficiente para derreter chumbo, e a pressão ao nível da sua superfície pode atingir 90 atmosferas, a mais elevada de todos os planetas do Sistema Solar. Outra característica particular da atmosfera de Vénus é girar mais depressa do que o próprio planeta, fazendo com que as nuvens de Vénus possam dar-lhe uma volta completa em apenas quatro dias.A exploração de VénusDepois da Lua, Vénus foi o primeiro corpo celeste do Sistema Solar a ser visitado por uma sonda espacial, a Venera 1, de origem soviética: a primeira sonda a alcançar com sucesso outro planeta na história da humanidade. No entanto, para obtermos as primeiras informações do nosso planeta gémeo, tivemos de esperar até 1962, ano em que a sonda Mariner 2, da NASA, transmitiu os primeiros dados a partir de Vénus. O resto da década de 1960 e parte da de 1970 podem ser consideradas a época de ouro da exploração deste planeta. Durante este período, várias sondas soviéticas e norte-americanas rumaram a Vénus, incluindo a Venera 3 que, embora se tenha despenhado, foi o primeiro objecto criado pelo homem a pousar no planeta, e a Venera 4 – a primeira a transmitir dados medidos directamente noutro mundo.Ao longo das décadas seguintes, o interesse por Vénus diminuiu, mas em 1970 a Venera 7 pousou com sucesso sobre a superfície do planeta (um feito inédito), e em 1974, a sonda Mariner 10, da NASA, fotografou a atmosfera em ultravioletas enquanto se dirigia a Mercúrio. Ao longo da década de 1980, destacaram-se as missões soviéticas Venera 13,14,15 e 16, e as norte-americanas Vega e Magalhães. Na década de 1990, várias sondas espaciais a caminho de outros destinos sobrevoaram Vénus para aumentar a sua velocidade graças ao impulso gravitacional, incluindo as sondas Cassini e Galileo. Mais tarde, na primeira década do novo milénio, a Agência Espacial Europeia (ESA) estreou-se com a sua primeira missão ao planeta, denominada Venus Express. Actualmente, Vénus é o principal objectivo de algumas missões científicas europeias e japonesas.Outras curiosidades sobre VénusA órbita de Vénus é uma elipse com uma excentricidade inferior a 1%, ou seja, Vénus tem a órbita mais circular de todos os planetas do Sistema Solar.Vénus tem uma rotação dextrógira, ou seja, ao contrário dos restantes planetas, gira em sentido horário, razão pela qual, ao contrário do que acontece na Terra, o Sol nasce a Oeste e põe-se a Leste.Ainda não foi detectada água em Vénus, mas observações recentes encontraram uma molécula denominada fosfina na sua atmosfera, que poderá estar relacionada com actividade biológica.Vénus conta com o dia mais longo Sistema Solar, equivalente a 225 dias terrestres.

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Qual é a temperatura de uma chama?

Já alguma vez se perguntou se a chama de uma vela é mais quente do que a chama de um isqueiro, ou qual é a temperatura de um incêndio? Surpreendentemente, embora ambas as chamas tenham origem na combustão de oxigénio e possa parecer lógico que a temperatura seja a mesma, não é esse o caso.Na realidade, a temperatura a que se encontra uma chama depende de vários factores e atribuir-lhe um número específico é uma tarefa complicada. No entanto, há um truque que o pode ajudar: observando atentamente a cor da chama, é possível determinar, de forma aproximada, qual é a sua temperatura. Sabia que uma chama vermelha é mais fria do que uma chama azul?DE QUE DEPENDE A TEMPERATURA DE UMA CHAMA?Tudo é fogo, sim, mas a temperatura da chama que arde como parte desse fogo não está sempre à mesma temperatura e é, na verdade, influenciada por diferentes factores intrínsecos e externos que interagem durante a combustão. Um deles é a curva adiabática da chama, que descreve a perda de calor da atmosfera circundante. Esta perda pode variar em diferentes partes da chama devido à dispersão de calor no meio envolvente: se o meio permitir uma maior dispersão, a temperatura da chama será mais baixa e vice-versa.A pressão atmosférica é outro elemento crucial que afecta esta situação. Em altitudes mais elevadas, onde a pressão atmosférica é menor, a combustão é afectada, o que pode resultar numa temperatura de chama mais baixa. Além disso, a percentagem de oxigénio presente na atmosfera terá um papel determinante: um ambiente rico em oxigénio favorece uma combustão mais completa e, consequentemente, uma chama mais quente, enquanto uma baixa percentagem de oxigénio pode limitar a intensidade da combustão.O tipo de combustível utilizado é também um factor crítico, uma vez que a velocidade e a violência com que o processo de combustão ocorre estão directamente relacionadas com essa substância. Para além disso, qualquer processo de oxidação do combustível pode alterar significativamente a temperatura da chama. Por outro lado, a temperatura ambiente também desempenha um papel importante, uma vez que um ambiente mais frio acelera a transferência de calor da chama, reduzindo assim a sua temperatura efectiva.PARA CHAMAS, CORESNo entanto, a cor da chama é um indicador visual que fornece pistas valiosas sobre a temperatura a que se encontra. Começando pelo fogo branco, a chama começa com uma tonalidade vermelha pálida que progride para um vermelho intenso, depois laranja e finalmente branco. Mesmo na sua fase inicial, a chama já tem uma tonalidade esbranquiçada e atinge uma temperatura de 1.300 graus Celsius. À medida que cresce, a sua cor intensifica-se, de modo que uma chama branca brilhante pode arder a 1.400 a 1.500 graus Celsius.No entanto, é o fogo azul que é conhecido por ser o mais quente, com temperaturas que atingem mais de 2.500 graus Celsius. Quando as chamas mudam de branco para azul, estamos a falar de temperaturas conhecidas como ultra-quentes. De facto, uma chama azul pode arder a 3.000 graus Celsius, uma temperatura que pode ser difícil de imaginar, mas que é essencial em processos industriais como a extracção de ferro.Por outro lado, as chamas cor de laranja, a cor mais tradicionalmente associada ao fogo, variam muito de temperatura consoante a sua intensidade. Assim, as chamas cor de laranja fortes podem queimar a 1.100 graus Celsius, enquanto as chamas mais leves, mas não completamente brancas, podem atingir temperaturas de cerca de 1.250 graus Celsius. Embora isto possa não parecer escandaloso, perceba que o aumento é de quase 200 graus, uma diferença verdadeiramente significativa à nossa escala humana.Finalmente, o fogo vermelho, que é o ponto de partida da combustão, também tem uma vasta gama de tonalidades que indicam diferentes níveis de temperatura: desde chamas pouco visíveis de apenas 500 graus Celsius, até chamas vermelho-cereja que ardem a 1.000 graus Celsius. Cada mudança de cor na chama reflecte uma mudança de temperatura, por isso, mesmo que seja contra-intuitivo, não se esqueça que, para as chamas, o vermelho não é sinónimo de temperatura máxima.

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Pouca terra, pouca terra

O famoso comboio a vapor Jacobite Express atravessa com elegância o icónico viaduto de Glenfinnan, uma jóia da engenharia que serpenteia entre as paisagens montanhosas das Terras Altas da Escócia. Este viaduto curvo de 21 arcos, construído entre 1897 e 1901, não só resistiu ao passar do tempo, como se tornou um cartão postal reconhecível para viajantes de todo o mundo depois de aparecer nos filmes de Harry Potter como a ponte por onde circula o Hogwarts Express.O comboio real que o percorre, o Jacobite Express, é uma locomotiva a vapor que faz uma das viagens ferroviárias mais pitorescas do Reino Unido: parte de Fort William e chega à cidade portuária de Mallaig em cerca de duas horas. Além da sua fama cinematográfica, esta experiência revive o romantismo das antigas viagens de comboio, com vagões clássicos e o som característico do vapor a marcar o ritmo da viagem.

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Uma turfeira amazónica deixou de fixar carbono. É caso para alarme?

Uma equipa de cientistas americanos e peruanos liderada por Jeffrey Wood, da Universidade do Missouri, deparou-se com uma situação inesperada ao monitorizar o ciclo do carbono numa turfeira situada na Amazónia peruana, a floresta de Quistococha. Enquanto os dados recolhidos em 2018 e 2019 evidenciavam a actividade desta turfeira como fixadora de carbono, em 2022 demonstraram que estava agora em equilíbrio carbónico, ou seja, que emitia sensivelmente a mesma quantidade de carbono que capturava. O que confundiu numa primeira abordagem os cientistas foi que não tinha ocorrido nenhuma grande alteração de origem humana no ecossistema: não foram realizadas drenagens nem um abate significativo de árvores. Não tinham ocorrido, igualmente, fenómenos meteorológicos extremos, como uma seca particularmente intensa ou uma onda de calor. O QUE PROVOCOU, ENTÃO, ESTA ALTERAÇÃO?A resposta é complexa, e prende-se com dois factores: o número de dias de Sol e a cota da água. Para entender o primeiro, é importante ter em conta que Quistococha está muitas vezes ao longo do ano coberta por uma quantidade de nuvens assinalável e que 2022 teve mais dias sem esta nebulosidade do que é costume. Isto terá levado, de uma maneira que poderá ser um pouco contraintuitiva, a uma redução da taxa de fotossíntese pelas plantas, que, expostas a mais calor e luminosidade do que estão adaptadas, fecham os estomas – células especializadas que controlam a troca de gases com o exterior – a fim de minimizar as perdas de água. Ao diminuir a fotossíntese, fixa-se assim menos carbono. Para compreender o outro factor, é necessário ter em mente que a capacidade prodigiosa de fixação de carbono das turfeiras tem que ver com o facto de que partes muito significativas da matéria orgânica existente no sistema se encontrem permanentemente submersas. Ou ainda noutra situação em que não existe oxigénio disponível em quantidade suficiente para que a degradação por agentes aeróbios – p.e. bactérias que precisam de oxigénio para sobreviver – se dê.Nas condições normais do sistema, zonas expostas ao ar tenderão a emitir carbono, uma vez que a degradação da matéria orgânica ocorre normalmente, enquanto que zonas submersas tendem a acumular carbono. O que a equipa liderada por Wood sugere é que os níveis de água relativamente baixos de 2022 levaram a que mais zonas ficassem expostas ao ar, levando assim a que o saldo, normalmente enviesado no sentido de se acumular mais matéria orgânica (e portanto carbono ) do que degradar, se deslocasse no sentido do equilíbrio. Mas é isto motivo de alarme? Talvez não seja, pelo menos se não se tornar um “novo normal”. Wood e outros cientistas parecem optimistas. Eles acreditam que a turfeira deverá, noutros anos, retomar o seu papel como fixadora de carbono. No entanto, e no contexto das alterações climáticas, urge estar atento a estes ecossistemas, devido ao seu papel fulcral no sequestro carbónico.Turfeiras: as grandes fixadoras de carbonoEmbora sejam ecossistemas relativamente raros no planeta – ocupam menos de 3% da superfície terrestre –, as turfeiras desempenham um papel desproporcionalmente grande no sequestro de carbono, ao acumularem mais de um terço das reservas de carbono, cerca do dobro do que está fixado nas florestas mundiais.Devido às suas condições muito específicas, em que uma boa parte da matéria orgânica existente está permanentemente ou durante longos períodos submersa, não ocorre degradação por microrganismos da mesma forma que acontece noutros ecossistemas. É por isto, por exemplo, que por vezes se encontram animais ou humanos preservados com milhares de anos que se afogaram nestes locais. Felizmente, cerca de 84% das turfeiras a nível mundial ainda estão em relativo bom estado, mas é fácil de perceber que a sua degradação ou drenagem, e consequente libertação do carbono aí acumulado, é uma enorme ameaça.

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A expansão viking gravada nos genes

Em 2020, uma vasta equipa multidisciplinar publicou na revista Nature um interessante estudo de sequenciamento dos genomas de mais de quatrocentos indivíduos da cultura viking dispersos por sítios arqueológicos europeus e da Gronelândia. Parte dos resultados não surpreendeu os historiadores desta cultura que prosperou entre 750 e 1050 d.C.: os genes preservaram vestígios de fluxos migratórios concretos da actual Dinamarca para Inglaterra, da Suécia para a região do Báltico; e da Noruega para a Irlanda, Islândia e Gronelândia.Os restos funerários de uma expedição viking validaram a premissa de que, com frequência, as frotas destes exploradores eram constituídas por vários membros da mesma família, incluindo mulheres. Mas o estudo também forneceu novas chaves de análise. Nas franjas ocidentais da Europa, em contextos onde os vikings se tornaram célebres pelas suas incursões de pilhagem e retirada rápida, detectaram-se indivíduos com ancestralidade viking de origem sueca e finlandesa, sugerindo que alguns destes navegadores instalaram-se nos novos territórios.A última conclusão do estudo foi a que mais me intrigou. Os especialistas em genética refutaram o mito dos vikings como povo de ascendência “escandinava pura”.Ao detectarem em muitos indivíduos viking elevados níveis de ascendência não escandinava, tanto dentro como fora da Escandinávia, os autores sugeriram que a história de qualquer cultura é bastante mais complexa do que o preconceito leva a supor. Os vikings foram o resultado de um fluxo genético contínuo com diferentes povos por toda a Europa. Numa era de discursos não-científicos sobre culturas mais puras do que outras, vale a pena reflectir sobre o modo como a genética reescreveu uma história que pensávamos conhecer.

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Radiação cósmica: o quanto nos afecta na Terra?

Quando olhamos para o céu nocturno, ficamos frequentemente maravilhados com as estrelas, os planetas distantes e as galáxias enormes. Contudo, para além do espectro visível, existe uma faceta mais misteriosa do universo – a radiação cósmica.São partículas de alta energia que se deslocam pelo universo quase à velocidade da luz, diz Dimitra Atri, do Grupo de Investigação de Marte do Centro de Astrofísica e Ciência Espacial de Abu Dhabi da Universidade de Nova Iorque. Estas partículas são originadas por eventos como explosões de supernovas e erupções solares e viajam através do espaço, bombardeando a Terra vindas de todas as direcções e penetrando na sua atmosfera.No filme O Quarteto Fantástico: Primeiros Passos, da Marvel, actualmente em exibição, o Quarteto Fantástico ganha os seus poderes depois de ser exposto a radiação cósmica que altera o seu ADN a um nível fundamental. Embora estas partículas de alta velocidade não dêem superpoderes na vida real, infelizmente podem mesmo penetrar no corpo humano.Em doses elevadas, os raios cósmicos podem desfazer as moléculas de ADN e danificar os tecidos biológicos. Uma exposição prolongada à radiação cósmica pode aumentar o risco de cancro, cataratas e problemas reprodutivos. Também pode prejudicar a neurogénese, o processo de geração de novas células no cérebro.Mas quanto, ao certo, é que o corpo humano é exposto a este tipo de radiação e a forma como ela influencia a nossa saúde varia em função da altitude e das medidas tomadas para nos protegermos dela. Dizemos-lhe o que precisa de saber.Como radiação cósmica nos afecta se estivermos na TerraAqui na Terra, temos um sistema de defesa natural contra a radiação cósmica que salvaguarda a vida do planeta: a atmosfera e o campo magnético da Terra. A atmosfera absorve a maior parte da energia da radiação cósmica, permitindo que apenas uma pequena fracção atinja a superfície. O campo magnético do nosso planeta, gerado por correntes eléctricas no núcleo terrestre, protege o planeta da radiação espacial mais nociva.Em média, as pessoas que se encontram à superfície da Terra são expostas a cerca de três milisieverts da radiação por ano. (Os sieverts, frequentemente exprimidos em milisievertes, são a unidade utilizada para medir a dose de radiação que afecta o corpo humano). No entanto, a altitude é relevante. “À medida que subimos, a atmosfera torna-se menos densa e ficamos expostos a mais radiação”, diz Atri.Quanto maior a altitude, menos protecção atmosférica existe. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, as pessoas que vivem em locais a grande altitude como Denver – conhecida como “A Cidade a Uma Milha de Altura” – recebem níveis de radiação cósmica ligeiramente mais altos do que aquelas que se encontram em locais no nível do mar, como Miami.Como a radiação nos afecta quando voamosQuando as viagens aéreas nos levam a maiores altitudes, também nos aproximam mais das partículas carregadas de energia que emanam do espaço sideral.No entanto, embora um avião de passageiros esteja exposto a níveis mais altos de radiação cósmica, a radiação recebida durante um voo é insignificante. Por exemplo, numa viagem de ida e volta de uma costa à outra dos EUA, a radiação é mais ou menos equivalente à de fazer uma radiografia ao tórax.Os pilotos, assistentes de bordo e as pessoas que voam com frequência enfrentam uma maior exposição à radiação cósmica devido à frequência com que estão no céu.Um estudo realizado pela Universidade de Harvard concluiu que a exposição à radiação contribuía para a incidência de problemas de saúde laborais entre as tripulações de voo e riscos de cancro associados à profissão. Outro estudo descobriu que as tripulações aéreas costumam ter mais exposição à radiação do que os trabalhadores de centrais nucleares.“Mesmo assim, não é suficiente para causar assim tantos danos porque ainda estão dentro do campo magnético da Terra e ainda existe uma atmosfera”, acrescenta Atri.Como a reacção cósmica nos afecta quando saímos do planetaQuando se aventuram para lá da atmosfera protectora da Terra, os seres humanos que se deslocam no espaço enfrentam níveis de exposição significativos. O corpo humano é constantemente bombardeado com partículas de alta energia.Os astronautas a bordo da Estação Espacial Internacional (EEI), que orbita a Terra a 400 quilómetros de altitude, estão expostos a níveis de radiação muito mais elevados do que as pessoas que se encontram sobre a superfície da Terra. Em apenas uma semana a bordo da EEI, os astronautas são expostos à mesma quantidade de radiação cósmica que um ser humano comum recebe ao nível do mar na Terra ao longo de um ano.Os astronautas que viajam até locais distantes do cosmo – em missões até à Lua, Marte e mais além – ficariam expostos a ainda mais raios cósmicos durante a viagem e quando chegassem ao seu destino. Por esta razão, muitas agências espaciais propuseram limites à dose de radiação que um astronauta espacial pode receber ao longo da sua carreira.Um instrumento a bordo do veículo não-tripulado Curiosity Mars, que fez uma missão de 253 dias até Marte, revelou que a dose de radiação recebida por um astronauta numa viagem de ida e volta até ao planeta vermelho seria cerca de 0,66 sievertes – o equivalente a 660 radiografias ao tórax. E embora a atmosfera terrestre o proteja da maioria da enxurrada de radiação do cosmos, a atmosfera rarefeita de Marte – cerca de 100 vezes mais fina do que a da Terra – permite a entrada de muita radiação.Com base nas medições realizadas pelo Curiosity, os investigadores estimam que uma missão de 500 dias à superfície do planeta vermelho pudesse elevar a exposição total a cerca de um sievert, ou seja 10 vezes a dose de radiação que um astronauta recebe durante uma missão de seis meses a bordo da EEI.Os investigadores propuseram uma série de projectos de naves espaciais com escudos feitos de água, materiais ricos em hidrogénio ou a material planetário capaz de proporcionar uma viagem potencialmente mais segura pelo cosmo, absorvendo a radiação.Existem alguns estudos em curso sobre projectos de abrigos que possam ser enterrados ou utilizados como escudo pelos astronautas quando chegarem ao seu destino de modo a reduzir a exposição à radiação. “Uma vez na superfície, é possível utilizar o solo de Marte para construir habitats”, diz Atri. “E podemos construir algo subterrâneo que proporcione um escudo natural. Isso seria suficiente para eliminar a componente mais extrema da radiação nociva.”A radiação cósmica também é um grande desafio para as viagens interplanetárias, levando os especialistas médicos a ponderarem o uso de medicação capaz de diminuir o seu impacto no corpo humano. “É um campo muito interdisciplinar”, diz Atri. “Temos profissionais médicos, físicos, engenheiros, psicólogos – precisamos de todos a bordo”. Apesar do nosso conhecimento crescente destas misteriosas partículas carregadas, Atri diz que precisamos de mais dados para saber como proteger plenamente os seres humanos da exposição, se quisermos explorar os limites mais distantes do cosmo.Mas a não ser que tenha uma viagem espacial planeada para o futuro próximo, pode ficar descansado, pois não vai sentir muitos efeitos negativos – nem desenvolver superpoderes – por causa da radiação cósmica.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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As mulheres na sombra de Carl Jung

Durante duas gerações, Emma Jung – mulher do famoso psicanalista suíço Carl Jung – foi recordada pela família sobretudo enquanto mãe e avó extremosa. O seu trabalho original, que documentou a exploração profunda e rigorosa do seu próprio inconsciente, simplesmente não era discutido.“Ninguém tinha noção do que ela produzira”, diz Thomas Fischer, bisneto de Carl e Emma, membro do conselho de administração e editor da Fundação das Obras de C.G. Jung.Agora, 150 anos depois do nascimento de Carl Jung, Emma e muitas outras das suas colaboradoras mulheres estão finalmente a ser reconhecidas como pensadoras brilhantes por direito próprio, que ajudaram a moldar algumas das teorias mais famosas de Jung, incluindo a individuação e os arquétipos.À semelhança de Sigmund Freud, Jung – pai fundador da psicologia analítica – acreditava na importância do inconsciente e da análise dos sonhos. (Os dois homens tiveram uma relação pessoal e profissional próxima no início da carreira de Jung e Freud considerava-o seu sucessor até se desentenderem.) Jung alargou o conceito de modo a incluir uma teoria à qual chamou individuação. Jung achava que o trabalho psicológico profundo de todos os seres humanos não se resumia a explorar o inconsciente individual, mas também o inconsciente colectivo (ou os símbolos e arquétipos universais herdados e partilhados por todos os seres humanos, que podem aparecer em sítios como os sonhos) e integrar essas duas forças com o consciente de modo a alcançar a auto-realização.Para além de um criar um novo ramo da psicanálise, Jung apresentou a ideia pioneira da introversão e da extroversão no seu trabalho sobre os tipos de personalidade, que inspiraram o teste de personalidade Myers-Briggs. Criou a teoria de que todas as pessoas tinhamum eu “sombra”, ou características e desejos suprimidos. Identificou 12 tipos de psique humana, que foram, desde então, utilizados como instrumentos narrativos por todo o tipo de autores, incluindo de Hollywood. As suas ideias influenciaram artistas como Jackson Pollock e expressionistas abstractos, escritores como Herman Hesse e Olga Tokarczuk, e músicos como David Bowie e a boysband sul-coreana BTS.Em homenagem ao 150º aniversário de Jung, o XXIII Congresso Internacional de Psicologia Analítica será realizado em Zurique neste mês de Agosto (de 24 a 29). No entanto, a apresentação inaugural não será sobre o homem em si, mas sobre um novo livro publicado em Janeiro, Dedicated to the Soul: The Writings and Drawings of Emma Jung, que documenta pela primeira vez o trabalho privado da sua esposa, Emma.“Emma Jung estava no centro da vida de [Carl] Jung”, diz Sonu Shamdasani, professor de História Jungiana em University College London e editor do Livro Vermelho, o mergulho de Jung nas profundezas do seu próprio inconsciente durante um momento conturbado da sua vida, que estava trancado no cofre de um banco e não foi publicado em vida. “Sem Emma Jung, o seu trabalho não teria sido possível, não só porque ela geria a casa, cuidava dos filhos e por aí adiante, mas porque colaborou no seu trabalho.”Existem muitas esposas de grandes homens que só foram reconhecidas pelo papel fundamental que desempenharam no trabalho dos seus maridos mais tarde. (Lee Krasner, mulher de Pollock, Alma Reville, mulher de Alfred Hitchcock, e Vera Nabokov, para mencionar apenas algumas). Embora Emma Jung fosse aclamada durante a sua vida e nos quase 70 anos volvidos desde a sua morte pelo apoio essencial que deu ao seu marido, a história manteve-se praticamente silenciosa sobre o seu papel para além de esposa, mãe e colaboradora de Jung – ou seja, pela suaexploração independente da sua própria psique, que exprimiu através de poesia, pinturas, análise de sonhos, palestras e outras composições literárias que a afirmaram como força intelectual por direito próprio.E não foi a única.Jung estava rodeado por seguidoras, de tal forma que elas eram tratadas por alcunhas derrogatórias na altura – incluindo Jungfrauen (“as mulheres de Jung”) e “Valquírias”. Algumas começaram como pacientes, outras como alunas, mas muitas tornaram-se académicas, psicanalistas e acólitasde Jung. Algumas também se tornaram suas amantes.“Estas mulheres tinham vindo de todo o mundo”, escreve Maggy Anthony, autora e antiga aluna do Instituto C.G. Jung, em Zurique, em Salome’s Embrace: The Jungian Women. “O carisma e o pensamento de Jung, que levouo feminino a sério pela primeira vez, induziu-as a querer partilhá-lo com outros através da análise e da sua própria escrita.”Muitas destas mulheres foram aclamadas pelo seu papel enquanto musas, colaboradoras e discípulas de Jung ao longo do tempo. Nas últimas duas décadas, porém, muitas delas, incluindo Sabina Spielrein e Toni Wolff, começaram a sair da sombra do grande psicanalista. Com a publicação em Dedicated to the Soul, no passado mês de Janeiro, Emma ingressa agora nas fileiras de mulheres jungianas que estão a ser reconhecidas pelo seu trabalho original e contributo para a área da psicologia.“Espero que as pessoas comecem a ver a individualidade de cada uma destas mulheres e que compreendamos melhor os seus contributos”, diz Fischer. Historiador de formação, Fischer diz que espera que os estudos jungianos se “afastem dos relatos hagiográficos de Carl Jung”.“Ele não funcionava num vácuo. Isto aplica-se às mulheres, mas também aos outros homens à sua volta. O seu trabalho está profundamente enraizado nessas redes e intercâmbios intelectuais.”Mãe e DonzelaCriada em Schaffhausen, na Suíça, Emma Jung – cujo nome de solteira era Rauschenbach – era uma estudante ávida a quem foram recusados estudos avançados devido às regras de decoro que se aplicavam então às mulheres da classe alta. Em vez de ir para a universidade, foi para Paris para frequentar uma espécie de ano conclusivo de estudos independentes. Depois de regressar a casa, começou a corresponder-se com Jung em 1899. Os pormenores exactos de como se conheceram permanecem desconhecidos, mas tinham alguns laços de parentesco distantes (o tio dele foi o arquitecto que construiu a casa de família dela, a mãe dela tomou conta do pequeno Carl num gesto de caridade para com a família Jung, que se debatia com problemas). O seu namoro foi repleto de romance e ideias. Jung encorajava a curiosidade intelectual de Emma e incluía listas de recomendações de leitura nas suas cartas.Depois de se casarem, Emma ajudou profissionalmente o marido. Jung estava no início da sua carreira, trabalhando para aquele que viria a ser o mais famoso dos institutos mentais, o Burghölzli. Emma era sua tradutora, estenógrafa, sujeito de testes e caso de estudo sempre que necessário – e até o ajudava com os pacientes. Ao longo do casamento, a formação jungiana recebida por Emma fez com que ela própria se tornasse analista, bem como a primeira presidente eleita do Clube de Psicologia de Zurique. Ela também publicou dois livros: um sobre a lenda do Santo Graal, um tema que a fascinava desde jovem e um conjunto de artigos explorando as ideias jungianas de animus e anima, ou seja, os aspectos masculino e feminino da psique.Emma não foi completamente ignorada pelos estudos e trabalho de preservação do legado de Jung desde a sua morte, em 1961. A descrição para a Fundação das Obras de C.G. Jung, a fundação criada pelos seus herdeiros em 2007, diz que se “dedica à manutenção e desenvolvimento literário e criativo de Carl Gustav Jung e da sua esposa, Emma Jung-Rauschenbach.” A missão da Haus C.G. Jung, a casa de família situada na margem do lago Zurique em Küsnacht, na Suíça, que é um museu público e ainda é ocupada por membros da família, é “manter viva a memória do médico e explorador da alma humana, Carl Gustav Jung (1875-1961), e da sua esposa e colaboradora, Emma Jung-Rauschenbach.”A família sabia de tudo isto – o trabalho realizado por Emma para apoiar o seu marido ou ajudá-lo a desenvolver as suas ideias, mas não sabia que ela também trabalhava em privado.Tudo mudou quando a família descobriu uma série de artigos de Emma. Segundo Fischer, o interesse por Emma e pelas outras mulheres que rodeavam Jung começou a aumentar na década de 1990 e no início da década de 2000. Por volta dessa altura, uma autora francesa chamada Imelda Gaudissart iniciou o seu trabalho de investigação para uma biografia (que seria publicada em 2010) de Emma e abordou a família, solicitando os direitos de publicação de alguns dos seus artigos. A família recusou, por duas razões: “senti que era nossa obrigação fazer-lhe justiça e queria fazê-lo eu próprio”, explica Fischer. Além disso, também não sabiam o que tinham em mãos. Segundo os mitos da família, Emma tinha destruído muitos artigos pessoais nos meses anteriores à sua morte, em 1955. Além disso, os filhos do casal Jung tinham outras prioridades.“Acho que aquela primeira geração de descendentes queria manter a sua mãe privada e nem quis olhar para o material”, diz Fischer. O guardião dos arquivos da família também esteve anos ocupado a responder a pedidos relacionados com Carl Jung. “Até ali, Emma Jung não recebia muita atenção, por isso acho que ele não tinha muitas razões para ver os seus artigos mais de perto.”O interesse manifestado por Gaudissart levou Fischer a examinar melhor os arquivos da família. Aquilo que encontrou foi um baú de tesouro que viria a tornar-se Dedicated to the Soul, um livro que co-editou e publicou neste ano.Dedicated to the Soul é uma colecção de palestras, poesia, cartas e desenhos que mostra a profundidade das investigações privadas de Emma, a criatividade e variedade do seu pensamento e a força do trabalho analítico que ela fazia consigo própria. Fischer descreve a descoberta como encontrar pedaços do mosaico de Emma “para obter um conhecimento muito melhor de como ela se tornou quem era e de como foi retratada e recordada no final da sua vida.”“Não precisamos de exagerar. Ela não tinha necessariamente a originalidade [de Jung], mas era muito curiosa. Trabalhou durante anos no seu próprio material psicológico e levou-o até um sítio muito profundo e acho que isso, de certo modo, se perdeu”, diz Fischer. “Conseguimos ver que esta mulher se reconciliou com a sua situação, nomeadamente com a vida de casada. E temos de nos interrogar como conseguiu fazê-lo. Não deve ter sido fácil.”Sombra e EuUma das maiores dificuldades do casamento de Emma eram as outras mulheres – e as atenções dispensadas pelo seu marido às suas colaboradoras e seguidoras do sexo feminino. Sabina Spielrein foi uma das primeiras.Spielrein conheceu Jung quando foi internada no Burghölzli aos 19 anos. O seu crescimento fora difícil, caracterizado por maus-tratos emocionais e, possivelmente, sexuais. Chegou ao limite após a morte de uma irmã mais nova de quem gostava muito e acabou por ser internada no instituto mental de Zurique, onde Jung trabalhava, tendo sido diagnosticada com histeria.Durante décadas, a história contada sobre Spielrein encarnou os estereótipos sensacionais das Jungfrauen. Ela foi reduzida à mulher fatal que se apaixonou e seduziu o jovem genial médico que estava à beira de desenvolver uma nova e revolucionária área da psicologia. Um retrato dramatizado e a-histórico da sua vida no filme Um Método Perigoso, de 2011, realizado por David Cronenberg também não ajudou.Como é evidente, a verdade é muito mais complicada – e muito mais interessante. Ela foi o primeiro caso de Jung, mas não o último e a natureza exacta da sua relação não é conhecida. No entanto, Spielrein mudou a sua vida enquanto esteve no Burghölzli. Passados três meses, estava a recuperar, candidatou-se à faculdade de medicina e estava a caminho de se tornar uma das pensadoras mais inovadoras da psicologia do século XX”, segundo um artigo de John Launer publicado na revista European Judaism, autor da primeira biografia de Spielrein em inglês, publicada em 2014.“O apagamento da sua história de vida e dos seus feitos intelectuais e a transformação do seu papel numa incursão erótica na vida de Jung é um dos exemplos mais chocantes de como as histórias das mulheres têm sido frequentemente reescritas de modo a diminuí-las”, escreve Launer.Ao longo da sua carreira, conforme catalogada por Launer, Spielrein realizou o primeiro estudo do discurso esquizofrénico (o tema da sua dissertação), teve as primeiras ideias que contribuíram para o desenvolvimento do instinto da morte, uma ideia mais tarde plenamente formada e apresentada por Freud (que lhe fez uma referência passageira numa nota de rodapé), escreveu alguns artigos inovadores sobre dinâmicas familiares, combinou radicalmente várias áreas de estudo no seu trabalho sobre o desenvolvimento infantil, e começou a trabalhar em ideias que acabaram por fazer parte da psicologia evolutiva.Spielrein promoveu as suas ideias através de palestras e do seu trabalho profissional, mas deparou-se com vários obstáculos que a impediram de se tornar uma influência duradoura na sua época, diz Klara Naszkowska, professora de estudos femininos, de género e da sexualidade na Montclair State University e directora fundadora da Associação Internacional para os Estudos de Spielrein.Em primeiro lugar, a sua perspectiva inovadora sobre a combinação de ideias de diferentes disciplinas estendeu-se a juntar ideias de diferentes escolas de pensamento. Spielrein tinha uma relação complicada com Jung e Freud – o primeiro pelas razões óbvias e o segundo devido a uma troca de correspondência a três entre Jung, Freud e Spielrein, “que não é favorável para nenhum dos homens, uma vez que tentaram silenciá-la” sobre o caso extraconjugal, diz Launer. No entanto, isso não a impediu de tentar utilizar ambas as escolas de pensamento no seu próprio trabalho. Infelizmente, nessa época o cisma intelectual entre Jung e o seu outrora mentor Freud já era forte e as áreas mantiveram-se academicamente separadas.Em segundo lugar, Spielrein mudou-se para a Rússia em 1923, afastando-se do centro do movimento psicanalítico. “Ela mudou-se basicamente para Marte”, diz Naszkowska. Depois, durante o Holocausto, ela e a família foram assassinados pelos nazis e ela desapareceu completamente do registo intelectual durante 35 anos.”Naszkowska diz que o apagamento de Spielrein começou a mudar na década de 1970 quando uma caixa com artigos seus foi descoberta durante obras realizadas no Instituto Rousseau em Genebra. No início, as pessoas estavam interessadas nela devido às suas interacções com Freud e Jung. Embora a primeira vaga de atenção se tenha concentrado no caso extraconjugal, nas décadas que se seguiram foi dada mais atenção aos feitos inovadores de Spielrein.A Associação Internacional para os Estudos de Spielrein foi fundada em 2017. Segundo Naszkowska, “a ideia principal era corrigir o que estava errado com o nosso trabalho, fazer-lhe a justiça que não lhe fora feita durante a sua vida e também após a sua morte, durante muitas, muitas, muitas décadas, para que o seu nome se torne conhecido e as suas ideias não só recebam o merecido reconhecimento como sejam usadas e incorporadas em currículos académicos e no pensamento.”Toni Wolff pode não ter definhado na mesma obscuridade de décadas, mas a sua reputação e ideias só começaram a receber atenção a sério após a publicação do Livro Vermelho em 2009, quando o papel fundamental por ela desempenhado durante aquele período de vida de Jung se tornou mais evidente.Wolff conheceu Jung seis anos depois de Spielrein, mas em circunstâncias semelhantes. Ela viria a tornar-se um dos casos extraconjugais mais sérios de Jung, tanto devido à ligação intensa que existia entre os dois como pela forma como Wolff se envolveu nas vidas de Jung e da sua família.Wolff chegou ao mundo de Jung após um esgotamento provocado pela morte do seu pai. Seguindo o padrão, foi internada para receber tratamento e continuou a ser uma conversa de Jung após a sua recuperação. Segundo Anthony, a sua relação profissional tornou-se pessoal na altura em que Jung estava a passar pela sua ruptura sísmica com Freud e a iniciar a profunda e difícil exploração do seu próprio inconsciente, que viria a tornar-se o Livro Vermelho e fundar os alicerces do trabalho da sua vida.“Foi este último acontecimento que deu origem à sua relação próxima. “Foi Toni que ele procurou quando iniciou a sua descida para os reinos escuros e maioritariamente inexplorados do inconsciente”, escreve Anthony. “Essencialmente, ela teve de se tornar a analista dele.”Wolff seria uma das principais assistentes e musa de Jung antes de se tornar analista profissional. Embora Wolff trabalhasse maioritariamente dentro do modelo jungiano – ao contrário de Spielrein, também investigou fora dele – desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento de uma estrutura que abordava a forma como a ideia jungiana da individuação se aplicava especificamente às mulheres. O seu trabalho mais famoso foi publicado em 1956: Formas Estruturais da Psique Feminina.No que diz respeito às ideias de Jung, tanto Shamdasani como Fischer dizem que os estudos sobre as mulheres de Jung demonstra que a sua viagem intelectual não foi realizada a solo. O seu trabalho era colaborativo, tanto na natureza como na necessidade que Jung tinha de verificar que suas as ideias, baseadas no seu próprio inconsciente, podiam ser replicadas noutras pessoas.“Acho que, à medida que as histórias individuais são investigadas em maior profundidade, torna-se claro que Jung não era um génio solitário que trabalhou sozinho em tudo sobre o que escreveu, directamente a partir do seu eu interior”, diz Fischer. “Ele funcionava em diálogo não só com a sua alma, mas com as pessoas à sua volta... Vejo muito disto como um intercâmbio e, por vezes, é difícil considerar uma só pessoa como única criadora original de determinado conceito ou ideia.”Emma Jung, Spielrein e Wolff não são as únicas três mulheres cujas colaborações e ideias tocaram Carl Jung e merecem mérito próprio. As suas histórias mostram que o trabalho de desmontar as vidas e os mundos intelectuais das primeiras mulheres da psicanálise conduzirá a um entendimento mais rico e profundo da história intelectual da área.Como Emma escreveu ao seu marido no dia 5 de Fevereiro de 1902: “o mundo está cheio de coisas enigmáticas e misteriosas e as pessoas limitam-se a viverem as suas vidas sem fazerem muitas perguntas… ó quem poderia saber muito, saber tudo!”Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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O boto sagrado do Amazonas

Na cosmologia dos ticunas (tikuna), um dos maiores grupos indígenas da Amazónia, os botos do Amazonas são espíritos traquinas e guardiões do reino aquático.Nesta fotografia de Thomas Peschak, vemos as anciãs Nuria Pinto e Pastora Guerrero juntarem-se a dançarinos envergando máscaras de boto feitas com casca da árvore yanchama. Para os tikuna, estes animais são sagrados, participam nas suas danças e vivem em malocas, casas compridas, no fundo do rio.Na ordem dos 51.000, os tikuna vivem sobretudo no Brasil, mas também na Colombia e no Peru, e têm a sua própria língua, o ticuna.

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As ondas de calor na Europa fazem parte de um novo e perigoso padrão climático

A história dos verões mudou. Já ficou para trás a ideia de que o calor extremo era exclusivo dos meses de Julho ou Agosto. Junho – esse mês ainda associado na imaginação colectiva ao frescor do final da Primavera – tornou-se agora o limiar escaldante de um Verão que já não dá tréguas. De Toronto, onde as piscinas ao ar livre ficam abertas até à meia-noite, às praias do Reino Unido repletas de pessoas em busca de alívio, passando pelos ventiladores que zumbem em Paris ou pelos concertos cancelados na Holanda: o hemisfério Norte viveu um Junho já tão quente quanto Julho. Um mês que nos obriga a aceitar que o relógio climático foi forçado a adiantar o seu curso natural.As ondas de calor que atingiram nas últimas semanas o Canadá, o nordeste dos Estados Unidos e grande parte da Europa – incluindo Portugal – compartilham um sinal inequívoco: todas surgiram com uma precocidade incomum. Longe de serem anomalias, essas altas temperaturas precoces reflectem um novo padrão, amplificado pelo aquecimento global de origem humana. A janela do «Verão efectivo» já não se limita ao coração do calendário estival, mas começa em junho e prolonga-se até bem entrado setembro, prolongando não só o calor, mas também os riscos associados. Dados do deslocamentoDados do Climate Change Institute da Universidade do Maine (EUA) confirmam esse deslocamento: entre 1979 e 2000, o hemisfério Norte ultrapassava o limiar de 21 °C – indicador das semanas mais quentes – por volta de 10 de Julho. Em 2023, o ano mais quente já registado, esse limite foi ultrapassado de 13 de Junho a 5 de Setembro.Embora 2025 ainda não iguale o recorde do ano anterior, a trajectória continua adiantada em comparação com os padrões do século XX. Na semana passada, as temperaturas médias do hemisfério Norte já rondavam os 20,91 °C. Esta aceleração térmica afecta especialmente os mais vulneráveis: idosos, pessoas com problemas de saúde ou sem acesso a sistemas de refrigeração adequados.ConsequênciasAs consequências são tangíveis. A Europa registou um aumento de 30% na mortalidade relacionada com o calor nas últimas duas décadas. E o mais preocupante: o corpo humano sofre mais quando o calor extremo irrompe no início do Verão, antes que tenha ocorrido uma aclimatação fisiológica. Por outras palavras, as ondas de calor precoces não são apenas incómodas: são letais.A Agência de Protecção Ambiental dos Estados Unidos (EPA) corrobora esta tendência com números contundentes. As ondas de calor são agora mais longas, frequentes e intensas. Ao longo das últimas sete décadas, a sua duração passou de menos de 50 dias por ano na década de 1990 para cerca de 70 dias na década de 2020. Até agora, em 2025, temperaturas de 32,2 °C ou superiores já cobriram uma área terrestre invulgarmente extensa. De facto, entre Janeiro e meados de Junho, em 163 dos 171 dias registados essas temperaturas ultrapassaram a média.Aumento da intensidade e frequênciaEm várias regiões do mundo, o calor extremo tornou-se omnipresente. A Ásia foi outro epicentro inesperado: no Japão, na Mongólia, no oeste da China e partes da Rússia, as temperaturas ultrapassaram os registos históricos. Esta tendência crescente começou a reescrever os ciclos naturais. O mais preocupante neste panorama não é apenas a sua intensidade, mas a sua frequência. Os investigadores do colectivo World Weather Attribution calcularam que a recente onda de calor no Reino Unido, por exemplo, seria agora esperada a cada cinco anos. Mas antes das alterações climáticas induzidas pela actividade humana, esse tipo de episódio térmico extremo teria ocorrido, no máximo, uma vez a cada meio século. Esta aceleração estatística revela o que muitos climatologistas já consideram um novo regime climático: o de um planeta que já não responde às estações tradicionais, mas a um desequilíbrio impulsionado pelos gases de efeito estufa, acumulados ao longo de dois séculos de industrialização e queima de combustíveis fósseis.Além disso, os oceanos estão a absorver quantidades recorde de calor. Esta acumulação térmica marinha não só aquece as águas, como também alimenta furacões mais intensos, tempestades mais destrutivas e inundações cada vez mais imprevisíveis. É uma cadeia de consequências que começa no termómetro e termina em todas as formas possíveis de perturbação ambiental.É possível que Junho seja o novo Julho. Mas se o curso das emissões não for revertido e a adaptação climática não for priorizada, em breve não haverá Julho, Agosto ou Setembro que se diferenciem entre si. Apenas uma estação longa, quente e perigosa. Como se o planeta estivesse preso em uma única estação sem fim.

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Descuido mortal

A rã-touro é um habilidoso predador, conhecido pela sua capacidade de apanhar rapidamente as presas com a sua língua pegajosa. Pode alimentar-se de insectos, peixes, anfíbios, répteis, aves e até pequenos mamíferos, o que a torna uma espécie perigosa em locais onde não é nativa. Nesta fotografia, vemos a rã-touro em acção: com as suas patas dianteiras, ela ataca a boca de uma infeliz cobra bebé que, desprevenida, passou demasiado perto de si.

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Costela das dunas

O fotógrafo Barry Crosthwaite tirou esta incrível fotografia no deserto do Namibe, na zona de Sossusvlei, na Namíbia. No sopé de uma enorme duna de areia, uma árvore solitária de espinho-de-camelo (Vachellia erioloba) é ensombrada pela paisagem. Esta espécie de árvore é originária das zonas áridas da África Austral e pode atingir 17 metros de altura.A imagem foi intitulada Dune Ribs pelo seu autor e foi uma das finalistas seleccionadas na competição aberta dos Sony World Photography Awards 2024.

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Um périplo pela diversidade das ilhas da Indonésia

À luz dourada da alvorada, o Gunung Bromo parece um enorme pudim de rocha a emergir do nevoeiro. O vulcão sagrado preside ao mar das Areias, uma paisagem que parece marciana.As 17.000 ilhas que constituem a República da Indonésia situam-se no extremo do Anel de Fogo do Pacífico, a região de maior actividade sísmica do mundo. Por este motivo, os cones vulcânicos e o solo negro e poroso encontram-se por todo o lado neste país onde dois grandes oceanos, o Índico e o Pacífico, se beijam na forma líquida.Ao caminhar em direcção às encostas do Gunung Bromo, as botas do viajante ficam cobertas por uma poeira cinzenta e fica-se com a sensação de que a viagem requer um fato de astronauta, pois o cenário não poderia ser mais alienígena. Na estação seca, o vulcão, que se ergue no interior de uma cratera mais antiga, tem a cor do leão, raiado pelos fluxos de lava solidificada. A grande planície que o rodeia está coberta por uma névoa fantasmagórica. As erupções são tão frequentes que a escadaria escavada para facilitar o acesso desaparece uma e outra vez, destruída pela lava e pelas fracturas na rocha. A última erupção aconteceu em 2016.Os seres humanos consideram esta montanha sagrada, sinal da disposição dos deuses, e esforçam-se por subi-la numa mistura de veneração, admiração e celebração. Mas o vulcão está determinado a livrar-se da lava que se acumula no seu interior, cobrindo o vale circundante com uma fina cinza que, por vezes, arruína aldeias e colheitas. Com o tempo, porém, esta fonte de minerais converte-se em terra fértil que, combinada com a pluviosidade dos trópicos, torna a Indonésia um dos territórios mais férteis do mundo.Ao atravessar a agreste Java Oriental, onde as plantações de café produzem frutos de cor rubi com os quais se produz um néctar delicioso, ganha-se a sensação de se ter mudado de ilha. Aqui, a ilha mais populosa do país transformou-se numa rede de aldeias e pequenas cidades que dependem da agricultura e da criação de gado e do enxofre roubado ao cone do Kawah Ijen.Retrocedemos para o interior, para Yogyakarta, a segunda maior cidade depois de Jacarta, a capital, 500 quilómetros para oeste, ponto de partida para algumas das visitas mais interessantes. É uma cidade com quase um milhão de habitantes, extensa e com uma certa ordem urbana, seguindo as directrizes estabelecidas pelo seu kraton (recinto real murado). Assim que se transpõem os limites da cidade, avista-se o vulcão Gunung Merapi, gémeo do Fuji japonês, que fertilizou esta parte da ilha.Os dois recintos religiosos mais notáveis da Indonésia, entre os mais impressionantes do mundo, foram construídos com a lava solidificada do Merapi. Borobudur é uma mandala tridimensional, com nove andares, assente numa plataforma quadrada. Contém dois milhões de blocos de pedra. O viajante entra com reverência através de pequenas portas que conduzem a patamares ladeados de esculturas de budas encerrados em sinos de treliça (mais de quinhentos) e sobe através de um caminho de rocha negra e relevos barrocos até ao patamar superior ou nirvana.Do topo, não conseguirá ver a base (as misérias do mundo fenomenal do samsara) e, do início, não conseguirá vislumbrar o final (a Iluminação). É o universo budista esculpido com cinzel há mais de um milénio.Perto dali, a leste de Yogyakarta, edifícios cónicos, semelhantes a foguetes, perfuram o céu para nos recordar o período em que Java era um reino hindu. Em Prambanan, mais de duzentos edifícios ricamente ornamentados estão consagrados à Trimúrti. Os templos celebram a tríade dos deuses Brahma, Shiva e Vishnu, e guardam as estátuas gigantescas, mas delicadas, das principais divindades hindus.A rocha negra e cinzenta do ventre dos vulcões é o material a partir do qual foi esculpido este recinto sagrado entre os séculos VIII e X. Agulhas que se elevam até 50 metros de altura ligam o céu à terra de uma forma real e simbólica. A panorâmica envolvente de palmeiras e arrozais, de um verde ofuscante, enquadra-se perfeitamente numa paisagem completamente onírica.Para viajar até Kalimantan, o sector indonésio da ilha de Bornéu, atravessa-se o mar de Java de sul para norte, numa embarcação de pesca alugada, num ferry ou a bordo de um avião. Aqui encontra-se uma das maiores florestas tropicais do planeta e quase todos os orangotangos selvagens do mundo. No Parque Nacional de Tanjung Puting, é possível vê-los. Os klotoks (as embarcações fluviais tradicionais) sobem o rio Sungai Sekonyer e transportam os viajantes até às manchas de selva onde vivem estes nossos primos ancestrais. Orang hutansignifica “homem da floresta” na língua local. Percebemos o quão acertado é o nome ao vermos os movimentos destes primatas de pêlo vermelho, que podem parecer desajeitados por força dos seus membros longos, mas que têm o rosto de uma criança observadora. Olham-nos tão fixamente quanto nós olhamos para eles.Numa viagem de um a três dias, ficando alojados na própria embarcação e percorrendo os trilhos do parque que se tornou famoso graças aos esforços da primatóloga Biruté Galdikas (um dos Anjos de Leakey, juntamente com Diane Fossey e Jane Goodall), avistam-se com frequência orangotangos que recolhem comida deixada pelos vigilantes da natureza quando a fruta escasseia durante a estação seca. É uma das experiências de natureza mais gratificantes que se podem viver na Indonésia, tendo em conta a esquiva vida selvagem do país, escondida em selvas impenetráveis. E também uma das mais fáceis, uma vez que os orangotangos reintroduzidos na selva mostram pouco medo dos humanos.Quando se atravessa o estreito de Macáçar, passando de Bornéu para Sulawesi, atravessa-se uma fronteira invisível. A Linha Wallace foi traçada pelo geógrafo e explorador Alfred Russel Wallace para marcar o local onde os reinos asiático e oceânico se separavam. A partir daqui, as plantas e os animais mudam por completo. Mas, acima de tudo, chega-se a uma ilha absolutamente única.Com o bizarro formato do símbolo Pi adornado com um longo penacho, Sulawesi é o território de um grupo étnico lendário, os toraja. Este conglomerado de povos habita a faixa central, um território montanhoso e de selva onde se destacam no horizonte, além das palmeiras, os telhados das suas extraordinárias casas em forma de barco. São casas que reúnem famílias inteiras no sentido mais amplo da palavra (avós, pais, filhos, netos, primos, tios...), erguidas sobre grandes colunas de madeira que mantêm as habitações afastadas do solo húmido e dos vermes.As casas são rematadas com uma cobertura côncava coberta com palha entrançada. Estes telhados são a razão pela qual são chamadas casas-barco, embora os antropólogos vejam nelas mais uma representação dos chifres de búfalo, o animal fetiche dos toraja. Na verdade, os chifres dos animais sacrificados em rituais ficam habitualmente pendurados na coluna principal da fachada. Alinham-se de cima para baixo e quantos mais houver, melhor será a posição da família na escala social.A melhor forma de visitar Tana Toraja (o país dos toraja) é viajar até à pouco interessante, mas funcional, cidade de Rantepao e procurar a partir desse ponto de partida descobrir que povoações acolhem estrangeiros.Sulawesi é uma ilha extraordinariamente montanhosa, com picos com mais de três mil metros de altura e que isto, juntamente com a temperatura ambiente sempre elevada (nunca descendo abaixo de 22ºC e atingindo facilmente 36ºC) e uma pluviosidade invulgarmente baixa durante a estação seca, força o viajante a deslocar-se num ambiente sufocante. Não há outra forma de contactar com este grupo étnico que tem na celebração da morte o seu elemento mais distintivo. Os forasteiros são bem-vindos aos festejos, embora os estômagos sensíveis talvez devam abster-se de assistir a determinadas cerimónias.Os toraja celebram dois funerais para os seus falecidos. Um imediatamente após a morte. Outro, meses depois, em plena estação seca, para o qual são convidados familiares e conhecidos que moram longe. É o momento de sacrificar galinhas, porcos ou búfalos, rituais sangrentos que têm lugar num círculo de barro onde o machete é manejado sem piedade. Os corpos mumificados dos familiares, que se mantiveram dentro de casa durante meses, são colocados ao sol, vestidos com as suas melhores roupas, penteados e arranjados. Depois, os que pertencem a uma classe com suficiente prestígio social sobem as falésias das montanhas próximas e colocam o falecido em túmulos abertos na rocha, deixando-o aos cuidados dos tau tau, as figuras de madeira que actuam como guardiões da pessoa desaparecida. Os nichos são inacessíveis para garantir também que os túmulos não sejam saqueados.Essa é uma preocupação inevitável, já que os corpos são amortalhados com as melhores jóias da comunidade. Estas experiências tão distantes dos nossos comportamentos sociais podem deixar o viajante esgotado, pelo que será boa ideia recuperar forças num dos locais idílicos de Sulawesi. As praias de areia branca e águas cristalinas são famosas no extremo setentrional, em Manado, para onde os mergulhadores se dirigem como se o local fosse a meca subaquática.Mas existem outros locais menos frequentados, como o pequeno arquipélago de Tukangbesi, no extremo sudeste, ou Togean, um grupo de 60 ilhas abraçadas pelas duas grandes penínsulas do Norte. São pequenos paraísos onde se pode mergulhar ao lado de tartarugas e dugongos e cujas selvas abrigam animais endémicos raros, além do teatral caranguejo-dos-coqueiros, um artrópode gigantesco que sobe à copa das árvores para arrancar os frutos, despedaçando-os com as suas poderosas pinças.O Sul tem melhores estradas e o acesso é o mais fácil da ilha, embora as montanhas continuem a pronunciar-se quase directamente sobre o mar. Para chegar aos bancos de areia do Norte, é preciso atravessar a serra central. No entanto, Sulawesi não é apenas um destino subaquático. Nos vales de Napu, Besoa e Bada, encontram-se mais de quatrocentos megálitos de uma cultura sobre a qual ainda pouco se sabe. A sua função também é desconhecida, mas é curioso que as rochas tenham sido esculpidas como formas humanas que fazem lembrar os moai da ilha da Páscoa. Têm mais de quatro mil anos. Além disso, no lago Danau, existe uma das maiores concentrações de orquídeas do planeta, o que completa a ideia de que tudo é belo na Indonésia: a imagem alienígena dos vulcões, os animais e plantas que povoam a selva e os grupos humanos que desenvolveram rituais ainda hoje tão estranhos para nós, mas até certo ponto compreensíveis. Artigo publicado originalmente na Edição Especial Viagens "Tesouros da Ásia".

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Plástico no corpo

É um facto incontestável: a contaminação plástica implica uma ameaça grave para a saúde humana. Os microplásticos (partículas com menos de cinco milímetros de tamanho) e os nanoplásticos (com tamanho inferior a um micrómetro), contaminam todos os ecossistemas do planeta, dos oceanos ao ar que respiramos.Já penetraram na cadeia alimentar e encontram-se nos corpos de uma multiplicidade de espécies, incluindo a nossa, como seria de esperar. Quais são então as consequências para a saúde humana desta contaminação maciça e generalizada? A comunidade científica está a trabalhar a todo o vapor para encontrar respostas, mas o tema é complexo: os microplásticos têm uma grande variedade de formas e tamanhos e são feitos de diferentes polímeros. Também contêm milhares de aditivos e produtos químicos, muitos dos quais nem sequer sabemos quais são. E os fragmentos mais pequenos, os nanoplásticos, são muito difíceis de detectar.Embora falte percorrer ainda um longo caminho, já há conclusões relevantes. Segundo um estudo da Universidade de Leeds publicado recentemente na revista Nature, todos os anos libertamos cerca de 52 milhões de toneladas de produtos de plástico no ambiente. Com o tempo, estes resíduos decompõem-se em milhões de milhões de partículas cada vez mais pequenas e, por inalação, ingestão ou contacto dermatológico, entram no nosso organismo. Algumas delas, as mais pequenas, têm a capacidade de ultrapassar as diferentes barreiras defensivas, de chegar à corrente sanguínea e podem disseminar-se pelos intestinos, fígado, rins, bexiga, pulmões, coração e placenta.Os microplásticos infiltram-se no ar, na água e no solo e estão presentes em alimentos, bebidas, cosméticos e medicamentos.Também chegam ao cérebro. Outro estudo científico recente, liderado pela Universidade do Novo México, salienta que as micropartículas podem colonizar este órgão através da circulação sanguínea ou migrando da cavidade nasal através do nervo olfactivo. Depois de examinar amostras de 52 cérebros de indivíduos falecidos em 2016 e em 2024, constatou-se que a acumulação de partículas de plástico, principalmente polietileno, era 50% maior nas amostras mais recentes. Percebeu-se também que todas continham sete a 30 vezes mais microplásticos e nanoplásticos (MNPL) do que as amostras de fígado e rim dos mesmos indivíduos. Por fim, os níveis de MNPL eram três a cinco vezes mais elevados nos cérebros das 12 pessoas diagnosticadas com demência.Enquanto a ciência se apressa em busca de provas, os especialistas já assumem que estamos perante um grave problema de saúde pública à escala planetária.Quando o plástico entrou nas nossas vidas, o mundo inteiro considerou que tínhamos criado um material maravilhoso e ecológico. A invenção bem-sucedida substituiu muitas matérias-primas naturais e, inicialmente, também permitiu pôr fim ao abate de animais, como os elefantes, cujas presas de marfim eram a matéria-prima perfeita para as tão desejadas bolas de bilhar. Em 1867, The New York Times escreveu que, só no Ceilão, tinham sido abatidos mais de 3.500 animais para esse fim. As tartarugas-de-pente, mortas indiscriminadamente pelas suas carapaças, úteis para fazer pentes e muitos outros objectos, também foram poupadas graças ao plástico.Um “olhar rápido” sobre a história da expansão dos plásticos leva-nos de volta a 1858, ano em que Michael Phelan, fabricante e proprietário de várias salas de bilhar em Nova Iorque, publicou um livro onde explicava como deveriam ser as bolas usadas neste desporto de precisão. Mas existia um problema, dizia: eram terrivelmente caras. Um dente de elefante proporcionava marfim para fabricar em média quatro a cinco bolas de bilhar. “Se algum génio das invenções descobrisse um substituto do marfim com as mesmas qualidades que o tornam valioso para o jogador de bilhar, faria uma pequena fortuna e ganharia a nossa sincera gratidão”, previa o empreendedor.Em 1863, o próprio Phelan ofereceu dez mil dólares a quem o conseguisse, e um inventor entusiasta, John Wesley Hyatt, pôs mãos à obra. Depois de vários fracassos, Hyatt acabou por optar por uma mistura de nitrocelulose e cânfora (para a qual já existiam precedentes, como a parquesina ou nitrato de celulose), e triunfou. O novo material plástico, a que chamou celulóide, foi aperfeiçoado até substituir o marfim e a carapaça das tartarugas. Um folheto publicitário da empresa criada por Hyatt assegurava: “Tal como o petróleo veio em socorro da baleia [referindo-se aos tempos em que os candeeiros eram alimentados a óleo de baleia], também o celulóide deu ao elefante, à tartaruga e ao insecto coral [referindo-se aos pólipos de coral] um descanso nos seus habitats. Deixará de ser necessário saquear a Terra em busca de substâncias cada vez mais escassas.”O plástico substituiu muitas matérias-primas naturais e, inicialmente, também permitiu pôr fim ao abate de animais. A jornalista e escritora Susan Freinkel conta no livro Plastic, a Toxic Idyll: “O celulóide surgiu numa altura em que os EUA estavam a transitar de uma economia agrária para uma economia industrial. Onde antes as pessoas cultivavam e preparavam os seus próprios alimentos e faziam as suas próprias roupas, agora comiam, bebiam, vestiam e usavam cada vez mais produtos de fábrica. Estávamos a caminho de nos tornarmos rapidamente um país de consumidores.” Foi uma expansão sem precedentes, particularmente a partir de 1907 quando Leo Baekeland inventou a baquelite, o primeiro plástico completamente sintético, moldável e super-resistente. Depressa surgiram muitos outros plásticos sintéticos, altamente dependentes do petróleo, a sua principal matéria-prima. Os plásticos, acrescenta Freinkel, “libertaram-nos dos constrangimentos do mundo natural, dos recursos materiais e limitados que durante muito tempo restringiram a actividade humana. Essa nova elasticidade também esbateu as fronteiras sociais. A chegada destes materiais maleáveis e versáteis deu aos produtores a capacidade de criar um maná de novos produtos, ao mesmo tempo que alargou as oportunidades de as pessoas de meios modestos se tornarem consumidores.”Esta euforia levou a revista Life a publicar, em Agosto de 1955, um artigo intitulado Estilo de vida descartável, ilustrado com a imagem de uma família posando sorridente sob uma chuva de artigos de plástico para a casa. “Demoraria 40 horas a limpar todos os objectos da imagem”, refere a legenda. “Mas as donas de casa não precisam de se preocupar: foram todos pensados para serem descartados depois de usados.” O reinado do plástico de um só uso começara e, com ele, o consumismo desenfreado.Começámos a preocupar-nos realmente com as consequências dessa proliferação de resíduos perenes na década de 1960 quando começaram a emergir vozes de alarme face às primeiras acumulações em massa de plástico em praias e oceanos. Por acção da radiação solar, da chuva e do vento, os plásticos decompõem-se em fragmentos cada vez mais pequenos que se dispersam pelos lugares mais insuspeitos. O primeiro a constatá-lo foi o biólogo Ed Carpenter, que em 1972 publicou na revista Science os resultados das suas observações no mar dos Sargaços: milhares de artigos de plástico flutuavam então no oceano a mais de oitocentos quilómetros de terra firme. Em breve, foram também encontrados nos estômagos de muitos animais marinhos, desde pequenos organismos invertebrados a enormes baleias, tartarugas e aves marinhas. A sua biodisponibilidade abriu a porta à entrada do plástico na cadeia alimentar.O estudo dos micro e nanoplásticos também tem feito o seu caminho em Portugal. Marta Martins, professora associada da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e investigadora do MARE, não se esquece do papel que a agora reformada Paula Sobral teve na consolidação deste campo científico antes de o termo se mediatizar. “Ela começou a investigar microplásticos e lixo marinho bem cedo, em 2008”, conta.Os avanços tecnológicos dos últimos anos permitem agora estudar partículas mais pequenas cujas repercussões potenciais para a saúde humana poderão ser ainda mais nefastas. Marta Martins já se interessava por toxicologia e pelos poluentes dos ecossistemas marinhos e a forma como estes polímeros se transferem ao longo da cadeia alimentar e potencialmente afectam a saúde humana era impossível de ignorar. A ecologia da Plastisfera (o ecossistema artificial que consiste em organismos adaptados a viver em desperdícios de plástico) é um assunto fascinante do ponto de vista científico.Em 2023, a investigadora publicou com uma equipa internacional um artigo científico sobre as comunidades microbianas que colonizam microplástico marinho em dois ecossistemas estuarinos: no rio Sado e no Yarkon, em Israel. Sendo estes habitats produtivos e associados a intensas actividades de recolha de recursos para consumo humano, o grupo quis perceber as implicações para a saúde. Marta Martins sublinha que os riscos para a saúde humana não se esgotam na presença destes materiais. Em 2019, a Organização Mundial da Saúde alertou o mundo para a necessidade de investigar o potencial impacte dos micro e nanoplásticos na saúde humana.“Temos consciência de que os nanoplásticos também servem de transporte a outros poluentes e microrganismos patogénicos.” Em laboratório, a equipa de que faz parte tem testado como mexilhões expostos a microplásticos retêm partículas no tracto intestinal e, em parceria com a Faculdade de Farmácia, expõe também células humanas a nanoplásticos demonstrando o potencial inflamatório em tecidos como o intestino humano. Ainda há um longo caminho a percorrer e a União Europeia abriu entretanto uma linha de financiamento que deverá ajudar a fornecer respostas a muitas das perguntas dos próximos anos.Será que tudo isto pode afectar os seres humanos? Essa foi a pergunta em 2017 do gastroenterologista Philipp Schwabl, da Universidade de Medicina de Viena, surpreendido com uma notícia sobre microplásticos encontrados em peixes. “Lembro-me que estava a tomar banho e não conseguia tirar a notícia da cabeça”, conta. “Teriam estas estranhas partículas progredido na cadeia alimentar? E se sim, poderiam ser detectadas nas pessoas, ou nas suas fezes? Ainda a secar-me, procurei um artigo científico que pudesse confirmar ou refutar a minha hipótese, mas descobri que a investigação sobre microplásticos no campo da medicina era ainda muito escassa. Foi então que decidi desenvolver um projecto para detectá-los em amostras de fezes humanas, algo que realizei em colaboração com a Agência Austríaca do Ambiente para seguir os métodos adequados.”Depois de pedir a amigos e colegas de todo o mundo que lhe enviassem amostras de fezes (Schwabl brinca com o facto de a sua proposta lhes ter parecido peculiar), o investigador descobriu algo que alarmou a comunidade científica internacional: apesar da variabilidade das amostras, foram encontrados microplásticos em todas, sem excepção.“A descoberta foi surpreendente e, por sorte, teve grande repercussão mediática”, recorda. O termo tornou-se tão popular que, em 2018, “microplástico” até foi a palavra do ano em Espanha. Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou o mundo para a necessidade de investigar o potencial impacte dos MNPL na saúde humana. Nessa altura, já tinham sido detectados em todo o lado. As principais fontes de emissões são os aterros sanitários e as estações de tratamento de resíduos, bem como as actividades agrícolas e industriais. Infiltram-se no ar, na água e no solo e estão presentes em alimentos, bebidas, cosméticos e medicamentos. São constantemente libertados pelas tintas com que protegemos os edifícios, pelos pneus dos automóveis, pelas roupas sintéticas que colocamos na máquina de lavar, pelas pontas de cigarro, pela relva artificial... e até por certas saquetas de chá e biberões (que contêm com frequência polipropileno) com que alimentamos os bebés.Em Agosto, serão retomadas as negociações para um tratado global contra a poluição de plástico.A descoberta de Schwabl foi o gatilho para pôr em marcha numerosos estudos científicos em todo o mundo, cinco dos quais foram realizados no âmbito do programa de investigação e inovação Horizonte 2020 da União Europeia. O projecto AURORA estudou as repercussões na saúde humana causadas pela exposição aos MNPL durante a gestação e o início da vida; o IMPTOX, a relação entre os MNPL e as doenças alérgicas; o PlasticFatE investigou a influência que a ingestão e inalação dos contaminantes presentes nestas partículas pode ter na saúde; o POLYRISK centrou-se nos efeitos adversos causados no sistema imunitário. Uma das questões com que vários investigadores desta área ainda se debatem é com a ausência de métodos e procedimentos padronizados de recolha e análise destes contaminantes que facilitem a comparação entre diferentes realidades. Na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, Yuliya Logvina está há três anos a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre os níveis de variação e distribuição a longo prazo de fibras e microplásticos transportados pelo ar. O percurso desta investigadora é peculiar. Quando emigrou da Ucrânia para Portugal há 13 anos, trazia formação em Economia e experiência de trabalho no sector bancário, mas a mudança permitiu-lhe dedicar-se à sua paixão de sempre – contribuir para superar os desafios ambientais. Encontrou o seu espaço numa equipa dedicada ao estudo de contaminantes aéreos, que começou em 2022 a recolher dados na cidade do Porto e há um ano alargou a recolha a Coimbra e à Guarda. Os resultados ainda são preliminares, mas há claramente níveis preocupantes de microplásticos no ar.Uma das incógnitas que a equipa quer esclarecer prende-se com a grande variação entre amostras recolhidas em dias diferentes. “Encontramos mais partículas quando há ventos dominantes de norte do que quando sopram do quadrante sul”, diz a investigadora, mas os picos de partículas no ar parecem potencialmente associados a epifenómenos. “Pensamos que podem ser consequência de variáveis que incluam obras, recolha de resíduos, queimadas e até acidentes de viação nas imediações das estações de amostragem.” Tal como nos ambientes marinhos, estes polímeros podem transportar metais pesados e outros contaminantes.Yuliya está entusiasmada. Agora tem ao seu dispor ferramentas de espectrografia Raman (em homenagem ao físico indiano Chandrasekhara Venkata Raman) que lhe permite detectar partículas com 0,5 micrómetros. Já passaram três anos desde que iniciou o doutoramento, e Yuliya sabe que tem de se concentrar na escrita, mas continua a adicionar novos dados. Este é, infelizmente para a nossa saúde, um campo em expansão e os investigadores que se dedicam ao seu estudo não ficarão sem trabalho tão cedo.Yuliya Logvina recolheu dados no Porto, em Coimbra e na Guarda. Os resultados ainda são preliminares, mas há claramente níveis preocupantes de microplásticos no ar.Ao contrário de outras amostras usadas em ambientes científicos, as amostras de microplástico não estão disponíveis de forma padronizada, o que requer um processo longo e laborioso, como está patente em Homo plasticus: plastic inside us, um interessante documentário do canal ARTE que ainda não foi lançado, mas ao qual tivemos acesso, e que explica como diferentes cientistas de diferentes organizações europeias estão a trabalhar para descobrir os riscos dos MNPL para a saúde humana. O documentário mostra como um membro da equipa PlasticHealerosion desgasta manualmente um pedaço de plástico para obter, após semanas de dedicação exclusiva, quatro escassos gramas de nanopartículas de PET. Uma das proezas foi observar como penetram na membrana celular e chegam ao interior do núcleo, uma previsão de futuras disfunções no nosso organismo. Quando as células sentem que algo está a tocar na sua membrana, “engolem” as nanopartículas, que permanecem inalteradas no interior. Ao fim de quatro anos de investigação, tornou-se claro que os nanoplásticos afectam de facto o ADN celular, o que pode produzir inflamações crónicas, alterações no sistema imunitário e aumento da sensibilidade a outros contaminantes conhecidos, como o arsénico ou o tabaco. Em paralelo, começaram a ser identificados os grupos populacionais com maior risco de exposição ou susceptibilidade: pessoas com doenças prévias, em situações de fragilidade (como mulheres grávidas ou bebés) ou expostas a determinadas condições ambientais (como as que trabalham na indústria dos plásticos).Outras equipas científicas sugerem que os MNPL podem também gerar mutações genéticas e desencadear doenças oncológicas e processos inflamatórios crónicos, uma vez que as células lutam para se livrarem daqueles agentes intrusos. Afectam a microbiota, favorecendo o aparecimento de bactérias patogénicas, e danificam o sistema imunitário: os macrófagos, as primeiras células de defesa a actuar, não conseguem destruir os nanoplásticos, o que acaba por produzir hiperactividade e sobrecarga na rede que nos protege das agressões externas.Quando as células sentem que algo está a tocar na sua membrana, “engolem” as nanopartículas, que permanecem inalteradas no interior.Muitos cientistas estão a trabalhar para encontrar as respostas de que necessitamos para compreender e enfrentar este problema de saúde pública. Segundo uma investigação da Universidade de Columbia, um litro de água engarrafada contém uma média de 240 mil fragmentos detectáveis de plástico, entre 10 e 100 vezes mais do que as estimativas anteriores.Há ainda muitas perguntas no ar: que quantidade de MNPL temos no nosso corpo e a partir de que quantidade começam a representar um risco para a nossa saúde? Quanto tempo permanecem no organismo? Que quantidade é excretada? Em que órgãos se alojam mais e em quais são mais perigosos? Que substâncias químicas contêm e qual o perigo de cada uma? Que sectores da população são mais vulneráveis?... As respostas a estas questões terão importância para melhorar a regulamentação e a certificação dos materiais plásticos e para desenvolver medidas adequadas de saúde pública e de sensibilização para combater este perigo ambiental que afecta todos os seres vivos e ecossistemas da Terra.Já foram  identificados os grupos populacionais com maior risco de exposição ou susceptibilidade: pessoas com doenças prévias, em situações de fragilidade ou expostas a determinadas condições ambientais. A boa notícia é que o número de trabalhos de investigação sobre o tema cresce exponencialmente. Em 2019, só foram publicados cerca de trezentos artigos científicos; nos últimos três anos, o número anual ronda sete mil. Como explicou Steffen Foss Jansen, especialista em poluição ambiental da Universidade Técnica da Dinamarca e membro da PlasticHeal, durante a apresentação dos resultados deste projecto europeu, a inteligência artificial será essencial para filtrar este volume colossal de informação.A ausência de consenso impediu mais de duzentas nações de chegarem a acordo na quinta ronda de negociações sobre o tratado global contra a poluição por plásticos, promovida pela ONU em 2022 na cidade sul-coreana de Busan em Dezembro. Carmen Morales, investigadora do Instituto de Investigação Marinha (INMAR) da Universidade de Cádis, esteve presente numa iniciativa recente criada por uma rede internacional de especialistas que participa nestas negociações. “Muitos países e regiões estão a trabalhar para chegar a esse acordo e alguns são particularmente ambiciosos, como a União Europeia, o Panamá, o México, a Noruega e o Ruanda”, afirma.O país africano luta contra a poluição causada pelos plásticos desde 2008, ano em que se tornou um dos primeiros a proibir os sacos de plástico de utilização única e, actualmente, é proibido trazê-los para o país. Peter Katanika, consultor ruandês do Banco Mundial, explica:“A proibição foi imposta quando constatámos os impactes negativos dos resíduos de plástico na produção agrícola (contaminam o ambiente), na erosão dos solos (dificultam a compactação dos solos) e na qualidade da carne (como vacas e cabras afectadas pela ingestão de plástico).”Segundo uma investigação da Universidade de Columbia, um litro de água engarrafada contém uma média de 240 mil fragmentos detectáveis de plástico.Como é óbvio, há interesses económicos em jogo. “Mais de 220 influenciadores da indústria dos plásticos e dos combustíveis fósseis constituíram a maior delegação nas negociações na Coreia do Sul, ultrapassando todos os Estados-membros da UE, para deixar claro que não querem abordar a questão dos produtos químicos nos plásticos, apesar de milhares deles estarem classificados como perigosos e de muitos outros ainda não terem sido avaliados”, diz Morales.Os países cujas economias dependem da produção e exportação de petróleo também não estão dispostos a negociar a redução do consumo, admitindo apenas a necessidade de tratar os resíduos, apesar de apenas 9% serem reciclados. Os restantes são depositados em aterros, o que significa que há ainda caminho pela frente.Consegue imaginar o volume de resíduos que estamos a deitar fora? Actualmente, fabricamos cerca de 460 milhões de toneladas de plástico por ano, a maior parte do qual é de utilização única. Se as tendências actuais se mantiverem, essa produção duplicará em 20 anos.Em 2008, a produtora holandesa de televisão Maria Westerbos ouviu falar pela primeira vez da sopa de plástico no oceano – a constatação de que o plástico nunca se decompõe por completo, pelo que todo o plástico produzido até então ainda existia de uma forma ou de outra. Considerou a ideia tão chocante que decidiu virar as costas à televisão. Em 2011, fundou a Fundação Plastic Soup, uma organização de base que começou na mesa da sua cozinha.A primeira campanha incidiu sobre as microesferas, os pequenos pedaços de plástico que constituem ingredientes ocultos em produtos de higiene pessoal, incluindo em pasta de dentes. A campanha teve tanto sucesso que a União Europeia proibiu a adição deliberada de plástico em cosméticos, tintas e produtos de limpeza. Em 2016, o foco mudou para a nossa saúde: será que o plástico nos deixa doentes?Os países cujas economias dependem da produção e exportação de petróleo também não estão dispostos a negociar a redução do consumo de plásticos. Há algumas semanas, conversei com Robbert Meulenveld, o actual director da fundação, um homem com fé absoluta na ciência. Disse-me que uma das suas “descobertas” mais perturbadoras foi um artigo científico que sugeria que as partículas de plástico danificam as nossas células cerebrais e também parecem causar doenças como a demência e o Parkinson.“Temos de considerar o efeito do plástico e dos aditivos químicos, muitas vezes nocivos, como uma das maiores crises de saúde da nossa época”, disse. “No entanto, estamos a produzir cada vez mais plásticos descartáveis, envenenando-nos a nós próprios, aos nossos filhos e ao planeta. Já não estamos a falar de um problema ambiental, mas de uma substância que pode ser fatal para as gerações futuras. Os humanos são a única espécie do planeta que polui o seu próprio ninho e envenena os seus filhos. Daí a imagem do Bebé de Plástico. Precisamos de fechar a torneira do plástico o mais rapidamente possível.”O mundo, porém, depende deste material leve, resistente e barato que inventámos há 150 anos, mas que hoje nos inunda. Face a esta realidade, por que motivo reciclamos tão pouco? Na opinião de Carmen Morales, existem várias razões: “O plástico é um material duradouro, mas, uma vez fabricado, inicia um processo de degradação. A sua composição vai mudando, pelo que muitas vezes, a sua reciclagem torna-se inviável. Além disso, o plástico virgem é barato, pelo que do ponto de vista puramente económico é mais barato comprá-lo do que reintroduzir com sucesso o plástico usado na cadeia de produção.”“Apenas nós, os humanos, geramos resíduos que a natureza não consegue digerir”, disse um dia Charles J. Moore, oceanógrafo e descobridor da “ilha ou sopa de plástico” do Pacífico Norte. Hoje, 70 anos depois da celebrada “vida descartável”, a festa acabou e os danos estão à vista. Artigo publicado originalmente na edição de Julho de 2025 da revista National Geographic.

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A pista mais pequena do mundo

São apenas 400 metros de asfalto encaixados entre um penhasco e o mar, onde a margem de erro não pode ser senão zero. Se o avião não frear a tempo, acaba na água. É por isso que este aeroporto é reservado exclusivamente a pilotos com uma certificação especial e apenas certos tipos de aviões têm permissão para operar, aqueles que podem descolar e pousar numa pista tão curta.E porque construir uma pista num lugar assim? Simplesmente porque não havia outra opção: a ilha é tão montanhosa que este espaço era o único lugar plano onde se poderia instalar uma pista.Apesar de tudo, é preciso reconhecer: a aproximação sobrevoando as águas turquesa e os penhascos abruptos de Saba é inesquecível e emocionante. Surpreendentemente, houve apenas alguns incidentes menores, como saídas da pista ou descolagens abortadas, mas nenhuma vítima mortal desde a sua construção em 1963.

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O planeta Terra, o nosso lar no Sistema Solar

Dados essenciais do planeta TerraCaracterísticas principais do planeta TerraEstrutura interna, geologia e composição do planeta TerraA atmosfera da TerraOutras curiosidades sobre o planeta TerraTerra. Por simples ou familiar que nos possa parecer, o nome do nosso planeta, tal como o dos outros, também tem origem na mitologia grega. Neste caso, os antigos gregos denominaram a Terra em homenagem à deusa Gaia, que era adorada como criadora do universo e mãe dos deuses primordiais, dos titãs e dos primeiros seres humanos. Tal como sucedeu com os restantes planetas do Sistema Solar, os romanos baptizaram-no mais tarde com o nome da sua deusa equivalente, Terra, nome esse que perdurou até hoje com as devidas adaptações.Dados essenciais do planeta TerraCaracterísticasTerraDistância orbital (km)149.598.262Raio equatorial (km)6.371Volume (km3)1.083.206.916.846Massa (kg)5.972.190 x 1018Densidade (g/cm3)5,513Gravidade à superfície (m/s2)9,8Velocidade de escape (km/h)40.284Duração do dia23 horas e 56 minutosDuração do ano365 dias, 6 horas e 9,76 minutosVelocidade da sua órbita redor do Sol (km/h)107.218Composição da atmosfera (exosfera)Oxigénio e Nitrogénio.Luas descobertas1Características principais do planeta TerraO nosso lar, a Terra, é o quinto maior planeta do Sistema Solar e o terceiro mais próximo do Sol. É também o maior dos quatro planetas rochosos. Entre outras qualidades, como a rotação do seu eixo em relação à elíptica, a composição da sua atmosfera rica em oxigénio ou a presença de água líquida, a distância entre a Terra e o Sol – dentro da zona de habitabilidade de uma estrela – é a responsável pelo facto de nosso planeta ser o único onde se encontrou vida no Sistema Solar até à data.Os vastos oceanos da Terra proporcionaram um espaço conveniente para o início da vida há cerca de 3.800 anos. A Terra é também o único planeta do Sistema Solar com uma única lua, a qual é, de muitas formas, responsável por o tornar habitável, ao reger as marés e estabilizar a sua oscilação, fazendo com que o clima pouco tenha variado ao longo de milhares de anos.Estrutura interna, geologia e composição do planeta TerraCom um raio de 6.371 quilómetros, a Terra é o maior dos planetas de tipo terrestre e o quinto maior do Sistema Solar. É formada por quatro camadas principais: um núcleo interno sólido de ferro e níquel, com aproximadamente 1.200 quilómetros de raio; um núcleo externo, igualmente de ferro e níquel, mas semi-fundido e que pode atingir uma espessura de 2.300 quilómetros; um manto de rocha fundida e viscosa, o qual, com cerca de 2.900 quilómetros, é a camada mais próxima do nosso planeta; e a crosta, a camada exterior que se estende a uma profundidade de cerca de 30 quilómetros.Na parte exterior rochosa da Terra encontramos outra das razões que torna o nosso planeta tão especial. O manto superior e a crosta terrestre constituem a litosfera, que se divide em enormes placas tectónicas em constante movimento. Estas placas deslocam-se sobre o manto fluido do nosso planeta, dando lugar a uma superfície dinâmica que tem mudado incessantemente ao longo de milhões de anos e está na origem da maioria dos fenómenos geológicos que ocorrem na Terra, como a deslocação dos continentes, a formação de montanhas, a actividade vulcânica ou os terramotos.Por outro lado, no interior da Terra, a rápida rotação do núcleo de ferro e níquel fundido gera um campo magnético que se estende até ao espaço, funcionando como um escudo que nos protege do vento solar. Convém ainda mencionar que o eixo de rotação do nosso planeta tem uma inclinação de 23,5º em relação à sua órbita em torno do Sol, fazendo com que cada ano tenha quatro estações.A atmosfera da TerraOutra das características que possibilitam a vida na Terra é a sua atmosfera que, para além de nos proporcionar o oxigénio de que precisamos para respirar, também nos protege da radiação proveniente do Sol e do espaço, bem como do impacto de centenas de meteoritos que se nela se desintegram antes de colidirem com a superfície do planeta. A atmosfera da Terra é composta por 78% de nitrogénio, 21% de oxigénio e 1% de outros ingredientes: o equilíbrio perfeito para respirar e viver.Graças à atmosfera e ao efeito de estufa por esta gerado, a Terra desfruta de uma temperatura estável adequada para o desenvolvimento da vida: sem ela, o calor da Terra dissipar-se-ia no espaço, fazendo a temperatura média do planeta descer aos -32ºC – em vez dos temperados e agradáveis 15ºC, em média, de que desfrutamos actualmente.OUTRAS Curiosidades sobre o planeta TerraA Terra é o único planeta do Sistema Solar com água em estado líquido à superfície.A distância média entre a Terra e o Sol é conhecida como uma unidade astronómica (UA), e é magnitude mais utilizada como referência para medir as distâncias dentro do Sistema Solar.A luz do Sol demora oito minutos a chegar à Terra.A Terra não demora exactamente 365 dias a dar uma volta ao Sol. Para sermos rigorosos, um ano terrestre dura 365,25 dias. É por essa razão que, a cada quatro anos, acrescentamos um dia ao nosso calendário: o chamado ano bissexto.O campo magnético da Terra pode mudar. Os cientistas têm conhecimento de que a polaridade do campo magnético terrestre muda, aproximadamente, a cada 400.000 anos. Com efeito, a próxima inversão deve estar para breve, em termos relativos, e calcula-se que possa ocorrer nos próximos mil anos.A Terra não é uma esfera perfeita: é achatada nos pólos e mais larga no equador, razão pela qual, em termos técnicos e científicos, se trata de um geóide, esferóide ou elipsóide de revolução.

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8 parques nacionais para descobrir na Europa neste Verão

Na Europa, os parques nacionais contêm uma variedade magnífica de paisagens, como glaciares, vulcões, florestas antigas, cordilheiras montanhosas e costas atlânticas selvagens. Em muitos casos, o Verão não é a melhor altura para visitá-los. Neste artigo, escolhemos oito que mostram a diversidade do continente, bem como a sua beleza.Estes parques estão concentrados nos Alpes ou nas extremidades norte e ocidental da Europa, o que significa que o Sol pode nem sempre brilhar enquanto lá estiver, mas encontrará temperaturas amenas em vez de sufocantes. São locais grandes e intrincados em estado bruto e a melhor forma de os compreender é sendo activo e dando asas ao seu espírito de aventura.1. Parque Nacional de Ecrins, FrançaA Mãe Natureza estava a sentir-se bastante aventureira quando moldou o segundo maior parque nacional de França continental, Massif des Ecrins. As provas estão à vista quando nos aproximamos vindos de Grenoble e vemos picos piramidais erguendo-se do fundo do vale e os estratos a subirem e descerem pelos penhascos como um bolo de camadas contorcido.Com 4.100 metros de altitude, o maciço é ligeiramente mais baixo do que o Mont Blanc, situado mais a norte, mas é mais abrupto e dramático, sendo por isso um cenário espectacular para quaisquer férias, quer queira fazer campismo selvagem (é possível passar uma noite num bivaque, mediante certas condições) ou alojar-se numa das aldeias da vasta zona envolvente do parque. Muitas delas, incluindo Les Deux Alpes, Monetier-les-Bains e Orcieres Merlettes, são estâncias de esqui fora de época, o que significa que estão cheias de apartamentos baratos, bem como teleféricos, trilhos de bicicleta piscinas e campos de ténis. No entanto encontrará alternativas mais pequenas e adoráveis à medida que for penetrando nos vales, incluindo Vanosc no rio Vénéon e La Chapelle-en-Valgaudémar nas margens do Séveraisse.2. Parque Nacional dos Dolomitas Bellunesi, ItáliaOs Dolomitas estão muito populares – os esquiadores acorrem às suas encostas espectaculares todos os invernos, os hotéis com spas de cinco estrelas ficam cheios de hóspedes que pretendem relaxar e recarregar baterias e a comida e o vinho fora de série transformaram a região num pólo gastronómico na montanha capaz de rivalizar com Sabóia, em França. Não é, por isso, de admirar que vilas turísticas como Cortina, Corvara, Selve e Canazei se tornam tornado bastante movimentadas.No entanto, um pouco mais a sul (e mais perto do aeroporto de Veneza), o Parque Nacional dos Dolomitas Bellunesi conserva uma secção mais pristina desta impressionante cordilheira. Como sempre, a geologia característica dos Dolomitas criou um cenário deslumbrante de torres, penhascos e espigões rochosos, mas o que se encontra sob eles é igualmente interessante. Florestas vibrantes de bétulas, flores raras,  veados-vermelhos e camurças, lobos, ursos e águias-reais – a mistura é rica e a melhor forma de a conhecer é caminhando até uma das cabanas da montanha, como Rifugio Bianchet, acima da floresta de Val Vescovà.3. Parque Nacional da Costa de Pembrokeshire, País de GalesÉ uma coisa fascinante – o interminável vaivém das marés junto à costa de Pembrokeshire, no sudoeste do País de Gales. Na Primavera e no início do Verão, enormes colónias de aves marinhas nidificantes evadem as ilhas de Skomer e Skokholm. A partir de finais de Agosto, as focas cinzentas sobem para praias inacessíveis para terem as suas crias, enquanto caranguejos, caracóis marinhos e aves limícolas encontram o seu sustento entre as marés durante todo o ano.Existem várias maneiras de explorar esta fronteira, desde explorar as poças de maré a andar de caiaque no mar, mas é mais aventureira é o coasteering. Conduzidos por guias qualificados e protegidos por fatos térmicos, coletes salva-vidas e capacetes, os participantes avançam junto à linha de água sob as falésias, entrando em ilhéus rochosos e atravessando enseadas secretas, numa aventura alternadamente eufórica e assustadora. Como acontece com as melhores actividades de Pembrokeshire, convém reservar com antecedência. O mesmo se aplica ao alojamento, sobretudo em sítios populares como Solva, Fishguard e St Davids.4. Parque Nacional de Kerry Seas, IrlandaCriado no sudoeste da Irlanda em 2024, o Páirc Náisiúnta na Mara, Ciarraí (a designação oficial) irá desafiar a noção que muitas pessoas têm de como deve ser um parque nacional. Protege maioritamente ambientes marinhos como Kerry Head Shoal (um local de reprodução importante para tubarões e raias). Todos os seus elementos constituintes, tanto em terra como no mar, são fragmentos e não um todo contínuo – mas são fragmentos magníficos.No topo da lista, temos Skellig Michael, uma pirâmide de xisto e arenito que se ergue a 218 metros de altura no Atlântico, a 13 quilómetros da costa de Kerry, e é coroada pelas ruínas de um mosteiro da Alta Idade Média, cujas celas e oratório foram construídos como colmeias há bem mais de mil anos. Existem ligações de barco entre a ilha e o continente entre meados de Maio e fins de Setembro epasseios de veleiro até às Blasket Islands, que também fazem parte do parque. O aeroporto mais próximo é em Kerry, mas tenha em mente que é uma costa popular durante o Verão, por isso deve reservar o seu automóvel e alojamento com bastante antecedência.5. Parque Nacional de Vatnajökull, IslândiaSe quiser ter uma ideia arrepiante da força da natureza, vá até ao Vatnajökull. Ocupando 14.967 quilómetros quadrados no sudeste da Islândia é o maior parque nacional da Europa fora da Rússia e protege uma mistura estonteante de paisagens vulcânicas, glaciares e paisagens esculpidas pelas marés em constante mudança. Grande parte do parque é inacessível, encontrando-se enterrado por um manto de gelo que ainda alcança 900 metros de profundidade em alguns pontos, mas no Verão, entre finais de Junho e finais de Agosto, uma semana de exploração será amplamente recompensada.Alugue um veículo de tracção 4x4 para fazer face a algumas dos caminhos de terra batida e travessias ribeirinhas que existem fora das estradas pavimentadas. Entre as atracções imperdíveis conta-se a estrondosa queda de água de Dettifoss e a fissura vulcânica de Laki. Quando esta última entrou em erupção, em 1783, expeliu 120 milhões de toneladas de dióxido de enxofre para a atmosfera. Reserve o alojamento com bastante antecedência, sobretudo nas zonas mais isoladas do leste.6. Parque Nacional de Lofotodden, NoruegaLofoten avança sobre o mar a oeste de Narvik como o dorso de um estegossauro – uma cadeia de ilhas improvavelmente íngremes e magníficas que atraem um milhão de visitantes por ano. Criado em 2019, o Parque Nacional de Lofotodden foi concebido de modo a aliviar parte da pressão, protegendo uma das zonas mais espectaculares da paisagem na costa ocidental de Moskenesøya. Aqui, quase na extremidade do arquipélago encontrará algumas das suas orlas costeiras mais intrincadas, onde os fiordes penetram até às profundezas da ilha e quase todos os pedacinhos de terra parecem ser uma fraga ou uma falésia.Posto isto, também há algumas praias lindíssimas e o campismo selvagem é melhor forma de as conhecer, desde que esteja preparado para caminhar sobre terreno difícil e não deixar qualquer rasto da sua visita. Também deve equipar-se de modo a conseguir lidar com os caprichos do clima do Atlântico Norte, que tanto pode encharcá-lo de chuva como brindá-lo com um dia cheio de Sol. Se tudo isto lhe parece um pouco exigente, existem pousadas e cabanas adoráveis nas aldeias piscatórias que polvilham a costa oriental – mas exigem um orçamento generoso. 7. Parque Nacional de Triglav, EslovéniaO único parque nacional da Eslovénia não é um dos gigantes da Europa, mas continua a ser uma beleza. Centrado em torno do Monte Triglav, com 2.864 metros de altitude, a noroeste de Liubliana, o parque contém uma cordilheira de montanhas calcárias em estado bruto conhecidas como Alpes Julianos, com vales florestados e pouco urbanizados pelo meio. Para muitos, caminhar até ao cume de Triglav é o objectivo. Algumas das rotas até ao pico não são técnicas, mas o troço final é perigosamente exposto e protegido por uma via ferrata. Se não souber deslocar-se numa, contrate um guia.Existem outras formas mais acessíveis de desfrutar do parque, por exemplo nadar nas águas cristalinas do Lago Bohinj, vaguear pelas pastagens alpinas do planalto de Pokluka ou fazer rafting no vale de Soča. A estância de esqui fora de época de Kranjska Gora, imediatamente a norte do parque, tem uma vasta oferta de alojamento e é uma boa base para experimentar uma série de desportos de montanha. No entanto, se quiser saborear a serenidade alpina, experimente a pequena aldeia de Ukanc, aninhada na extremidade ocidental do Lago Bohinj.8. Parque Nacional de Oulanka, FinlândiaSituado no Círculo Árctico, na região oriental da Finlândia, a menos de uma hora de automóvel do aeroporto de Kuusamo, o Parque Nacional de Oulanka contém 269 quilómetros quadrados de floresta primitiva, turfeiras pantanosas e rios furiosos e pulula de vida durante o Verão. Ursos, linces, alces, lobos, tetrazes, orquídeas raras, tudo num ecossistema florestal intacto, mas que também fica cheio de insectos até à segunda quinzena de Agosto, por isso prepare-se bem.Apesar da localização isolada, é um destino de caminhada bastante popular. Não só é onde se encontra o trilho de caminhada de longo curso preferido da Finlândia, o Karhunkierro, com 80 quilómetros de comprimento, como dispõe de bastantes zonas de campismo e abrigos. Se não se sentir confiante para se aventurar sozinho numa paisagem tão pouco familiar, pode sempre juntar-se a uma caminhada guiada organizada por empresas como a Oulangan Taika, que também prepara passeios de canoa e viagens de packrafting e aluga equipamento.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Mais do que irmãos de sangue

Embora seja raro na maior parte dos mamíferos, o quimerismo é a regra num grupo específico, o dos tamarins e saguins da América do Sul. Isto acontece porque, diferentemente da maior parte dos restantes mamíferos, a gestação nestes animais dá-se em pares ou trios de gémeos bivitelinos (ou trivitelinos, conforme o caso). O nome deste fenómeno remete-nos para a quimera, o animal da mitologia grega que descendia da monstruosa Equidna e de Tifão (ou, noutra versão, de um cruzamento entre o hidra de Lerna e o leão da Nemeia, que seriam mais tarde derrotados e abatidos por Hércules no decorrer dos seus famosos doze trabalhos) e que exibia uma cabeça de leão, outra de cabra, que também era a fonte do seu torso, e uma terceira de serpente, que fazia as vezes de cauda.QUANDO AS CÉLULAS CEREBRAIS ENTRAM NA EQUAÇÃOMas, afinal, o que tem que ver a quimera mitológica com os tamarins? Os gémeos de tamarim partilham no útero um sistema circulatório que leva à partilha entre os irmãos em gestação não só as células sanguíneas diferenciadas, mas também células indiferenciadas da linha hematopoiética, que possuem potencial de diferenciação para células sanguíneas, mas também para imunitárias. É sabido, com base em estudos anteriores, que estes irmãos, como adultos, podem apresentar até 37% das suas células sanguíneas com uma origem que não a do seu próprio ADN, devido às células que receberam dos seus irmãos. O que não se sabia é que este quimerismo podia ir mais além…Em 2023, uma equipa da Universidade de Harvard, liderada pelo cientista Ricardo del Rosario, recolheu uma amostra de mais de dois milhões de células cerebrais provenientes de 11 indivíduos diferentes de tamarim (alguns gémeos, outros irmãos não gémeos e outros ainda não relacionados entre si) e analisou os seus genomas. Estes revelaram que, no caso dos gémeos, 20 a 52 por cento dos microgliócitos e 18 a 64 por centro dos macrófagos cerebrais, ambos tipos de células imunitárias com uma origem hematopoiética, tinham na verdade origem no irmão ou no irmão gémeo com que tinham partilhado a estada no útero.Sabendo que, além da função imunitária, estas células têm também influência na maneira como o cérebro se desenvolve, levanta-se a hipótese de, nesta espécie (e presumivelmente em outras com sistemas gestacionais semelhantes), haver influência fraterna na maneira como os cérebros se desenvolvem. É até possível, segundo Manus Patten, da Universidade de Georgetown, que “as células dos irmãos possam agir em benefício desses às custas do animal em que residem, como uma rivalidade fraternal interna”. A apoiar esta hipótese, está a descoberta anterior de uma equipa do Texas Biomedical Institute, liderada por Corina Ross, de que, além destas células, os machos destes animais podem por vezes carregar também células estaminais espermáticas dos irmãos, produzindo assim, além de esperma que carrega a sua própria informação genética, também esperma que corresponde geneticamente aos seus antigos companheiros de gestação.MAIS PERGUNTAS DO QUE RESPOSTASPoderá este esbatimento das fronteiras do “eu” nesta espécie explicar o seu sistema de criação em conjunto, em que vários indivíduos participam nos cuidados às crias pequenas, que é razoavelmente incomum em primatas fora deste grupo de espécies? É possível: é um facto que, devido ao quimerismo, a probabilidade de, ao auxiliar na criação de um sobrinho, se estar a beneficiar a propagação dos próprios genes é maior do que noutras espécies.E no ser humano? Será que isto também acontece nos gémeos fraternos? Também é provável. Já foi demonstrado que há um certo grau de quimerismo nas células sanguíneas entre gémeos humanos bivitelinos. Portanto, não é descabido imaginar que haja igualmente a possibilidade de que ocorram fenómenos semelhantes aos descritos nestes primatas em gémeos da nossa espécie. No entanto, isto ainda não foi investigado, sendo uma direcção possível, por exemplo, a análise dos genomas das células cerebrais de pares de gémeos post-mortem. Será que descobriremos que, mais do que irmãos de sangue, os gémeos são também irmãos de cérebro?

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Carga de gigantes

"Quando é jovem e verde, os pastores utilizam-na como alimento para o gado. Quando as flores caem e as folhas secam, é utilizada para construir casas nas zonas locais", diz Shafiul Islam, o autor desta fotografia nas margens do rio Teesta, no distrito de Gaibandha, no Bangladesh.O fotógrafo fala sobre Kaash, o nome local da planta a partir da qual foram construídos estes grandes montes amarelos. Cresce até três metros de altura em solo arenoso não cultivado no norte do país e é colhida pelos agricultores, que a transportam em barcos para a vender junto ao rio.

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Será uma ave? Um macaco? Não! É um novo réptil pré-histórico ‘milagroso’

Há cerca de 247 milhões de anos, um réptil bizarro com 15 centímetros de comprimento desceu pelo ramo de uma árvore com a sua cauda preênsil e patas agarradas à casca, como se fosse um macaco, e o seu focinho estreito semelhante ao de uma ave observando o ambiente em redor. No seu dorso, um leque de estruturas rígidas sobrepostas deveria captar a luz, exibindo cores vibrantes. Pareciam-se muito com penas, mas eram algo completamente diferente, uma vez que o réptil não era da família das aves, nem dos dinossauros, e viveu cem milhões de anos antes de o primeiro dinossauro levantar voo.Desde há muito que os investigadores acreditavam que coisas como penas e pêlo – estruturas complexas que crescem na pele e podem servir como isolamento, percepção do ambiente, exibição visual e permitir o voo – eram praticamente exclusivas das linhagens que deram origem às aves e aos mamíferos.Agora, porém, uma equipa de paleontólogos descobriu um réptil pré-histórico com uma crista régia, com algo parecido com penas, que nada tem em comum com qualquer apêndice tegumentar previamente conhecido, como cornos, garras e pêlo. Os fósseis demonstram que adaptações evolutivas semelhantes a penas e pêlo eram mais generalizadas do que se pensava.“Estou perplexo”, diz Steve Brusatte, paleontólogo da Universidade de Edimburgo que não participou no estudo. “Há muito tempo que não ficava tão deslumbrado com uma nova descoberta fóssil.”A descoberta, que foi publicada na semana passada na revista Nature, também ajuda a resolver um mistério paleontológico com décadas. “Sempre houve uma distinção entre dinossauros com penas e répteis com escamas”, diz Stephan Spiekman, paleontólogo do Museu Estadual de História Natural de Estugarda, na Alemanha, e um dos autores do artigo. “E essa história é demasiado a preto e branco.”Um réptil milagrosoOs espécimenes foram expostos pela primeira vez em Maio de 1939, quando o coleccionador privado de fósseis Louis Grauvogel estava a explorar pedreiras em rochas triássicas no nordeste de França. Ele encontrou dezenas de estruturas isoladas que presumiu serem barbatanas de peixe fossilizadas ou asas de insecto, bem como um esqueleto parcial de um réptil. Mas quando o Museu Estadual de História Natural de Estugarda adquiriu a sua colecção em 2019, diz Spiekman, um investigador do museu reparou em costelas ténues na base de uma das estruturas fossilizadas. Removendo cuidadosamente a rocha, a equipa encontrou o tronco, o pescoço e o crânio preservados, juntamente com uma crista com cerca de cinco centímetros que se projectava da parte superior do dorso. As estruturas e os esqueletos pertenciam ao mesmo animal.Depois de estudar os restos do esqueleto e mais de 80 espécimes de cristas isoladas, a equipa escolheu o nome Mirasaura grauvogeli, “o réptil milagroso de Grauvogel”. Embora os esqueletos representem animais jovens, diz Spiekman, o tamanho de algumas das cristas isoladas da colecção sugere adultos que poderiam ter mais de 30 centímetros.A sua equipa identificou o Mirasaura como membro de um estranho grupo de répteis arborícolas chamado depranossauros. Presentes na América do Norte e na Europa, os drepanossauros são, por vezes, comparados com camaleões, diz Spiekman. Mas eram muito, muito mais estranhos: tinham corpos em forma de barril, ombros encurvados e olhos grandes virados para a frente, fixados em crânios semelhantes a aves. Muitos tinham polegares oponíveis e uma cauda preênsil como a dos macacos. Algumas espécies também tinham uma garra na ponta da cauda.“Para mim, o análogo mais próximo é um papa-formigas pigmeu”, diz Spiekman.Enigma reptiliano resolvidoO Mirasaura é também a chave para resolver um duradouro enigma triássico, diz Michael Buchwitz, paleontólogo do Museu de História Natural de Magdeburgo, na Alemanha, que não participou no estudo. Em 1970, um paleontólogo russo publicou um artigo sobre o Longisquama, um réptil fragmentário com uma série de estruturas compridas semelhantes a penas descoberto na Quirguízia.A descoberta do Longisquama deu, finalmente, munições aos investigadores que estavam infelizes com a teoria, então polémica, de que as aves descendiam dos dinossauros. No entanto, à medida que se foram acumulando provas inabaláveis da ligação entre as aves e os dinossauros – incluindo fósseis demonstrando que as penas e estruturas afins estavam generalizadas entre os dinossauros e os pterossauros – ninguém sabia muito bem o que dizer sobre o enigmático Longisquama, ou qual seria a sua posição na árvore genealógica dos répteis, diz Buchowitz. A maioria dos cientistas preferiram ignorá-lo.Agora, porém, a descoberta do Mirasaura permitiu à equipa de Estugarda identificar, finalmente, o Longisquama como um drepanossauro há muito perdido. “O enigma está resolvido”, diz Buchowitz.Uma fabulosa solução convergenteAs plumas sobrepostas das estranhas cristas do Mirasaura e do Longisquama parecem mesmo penas à primeira vista, diz Spiekman, sendo provavelmente feitas de queratina, uma proteína estrutural fundamental que forma de tudo, desde unhas e escamas a pêlos e plumas. “Elas erguem-se verticalmente do corpo e são compridas. Deveria parecer uma pena rígida e firme.”A equipa também encontrou melanossomas – células produtoras de pigmento – conservadas dentro das estruturas, que são mais parecidas com as que existem na plumagem das aves do que com escamas dos répteis ou pêlo dos mamíferos, diz Spiekman. No entanto, em vez do padrão tipicamente bifurcado dos filamentos de queratina observável nas penas verdadeiras, as plumas de drepanossauro formavam, aparentemente, uma única folha lisa em redor do cálamo.“O que temos aqui é um fabuloso exemplo da evolução convergente, talvez o mais espectacular que alguma vez vi”, diz Brusatte. “Não foram eles que imitaram as aves. Foram as aves que os imitaram a eles.”Uma vez que os drepanossauros pertenciam a um ramo evolutivo muito mais antigo da família dos répteis do que o ramo que deu origem aos lagartos, crocodilos e aves da actualidade, diz Spiekman, isso sugere que as adaptações genéticas para criar estes apêndices tegumentários apareceram bastante cedo na árvore evolutiva dos vertebrados.Resta saber quão generalizadas seriam estas cristas aparentemente emplumadas na família dos drepanossauros, diz Spiekman, e como se formariam ao certo. No entanto, a descoberta também abre a possibilidade de existirem mais estruturas semelhantes a penas nas famílias de répteis do registo fóssil.Na opinião de Spiekman, trepadores exuberantes como o Mirasaura – com as suas caudas de macaco, patas de camaleão, cabeças de ave e cristas aparentemente emplumadas – “estão a mudar a imagem que temos dos répteis”.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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O que são os furacões? A ciência que explica estas tempestades superlativas

Os furacões combinam ventos implacáveis e chuvas torrenciais, criando algumas das tempestades mais poderosas do planeta. Quando estas tempestades se aproximam de terra, os ventos podem causar danos devastadores, chegando até a desencadear tornados. Mas o maior perigo é a chuva, que pode causar cheias catastróficas e, frequentemente, mortais.Estas tempestades ganham energia devido à água quente e os seus ventos rodopiam, com um movimento circular característico. As tempestades tropicais ganham nomes quando os seus ventos ultrapassam os 63 km/h, e passam a ser consideradas furacões quando os ventos ultrapassam os 120 km/h. Os furacões são classificados segundo a escala de Saffir-Simpson.O mesmo tipo de tempestade tem nomes diferentes, dependendo da região do mundo: os “furacões” acontecem sobre o Atlântico Norte, a região central do Pacífico Norte e a região oriental do Pacífico Norte; os “ciclones” formam-se sobre o Pacífico Sul e o Oceano Índico; e os tufões acontecem na região noroeste do Pacífico.Mas como se formam os furacões? E será que a monitorização e a preparação podem ajudar-nos a mitigar os danos causados pelas tempestades? Dizemos-lhe aquilo que precisa de saber sobre furacões.Como se formam os furacões?Há alguns séculos, os exploradores europeus aprenderam a palavra indígena caribenha hurakan, que significa espíritos maus e deuses do clima, para descrever as tempestades que fustigavam os seus navios nas Caraíbas.O pico da época dosfuracões no Oceano Atlântico ocorre entre meados de Agosto e finais de Outubro, com uma média de cinco a seis furacões por ano. Por outro lado, os ciclones do norte do oceano Índico costumam formar-se entre Abril e Dezembroe o seu pico de actividade é entre Maio e Novembro.Os furacões começam como perturbações tropicais sobre águas oceânicas quentes, com temperaturas mínimas de 26,5ºC à superfície. Estes sistemas de baixas pressões são alimentados pela energia dos mares quentes.Uma tempestade com ventos com 63 km/h, ou menos, é classificada como depressão tropical. Torna-se uma tempestade tropical – e recebe um nome, segundo as convenções determinadas pela Organização Meteorológica Mundial – quando os ventos sustentados ultrapassam os 63 km/h.Estas tempestades são enormes motores de calor, que desferem energia a grande escala. Atraem o calor do ar húmido e quente do oceano e libertam-no sob a forma de condensação de vapor de água em trovoadas.Estas tempestades giram em torno de um centro de baixas pressões conhecido como olho. O ar, que desce, faz com que esta zona, com 32 a 64 quilómetros de largura, seja incrivelmente calma. No entanto, o olho está circundado por uma “parede” circular, onde se encontram a chuva e ventos mais fortes da tempestade.Por que razão os furacões são perigososOs furacões trazem a destruição até à costa de diferentes formas. Quando um furacão chega a terra, costuma causar uma vaga de tempestade devastadora – água do mar empurrada para terra pelo vento, que pode alcançar 6 metros de altura e estender-se muitos mais terra adentro.As vagas de tempestade e as cheias são dois dos aspectos mais perigosos dos furacões, sendo responsáveis por três quartos das mortes causadas pelos ciclones tropicais atlânticos, segundo um estudo realizado em 2014. Um terço das 1.200 mortes causadas pelo Furacão Katrina, que chegou a terra ao largo da costa do Louisiana em 2005, foram causadas por afogamentos. O Katrina foi o furacão mais caro da história, tendo causado danos num total de 125.000 milhões de dólares.Os ventos altos de um furacão são destrutivos e podem desencadear tornados. As chuvas torrenciais causam ainda mais danos devido às cheias costeiras e aos aluimentos de terra, que podem ocorrer a vários quilómetros da costa.Embora já se tenham formado tempestade extremamente fortes no Atlântico, os ciclones tropicais mais poderosos do que há registo formaram-se no Oceano Pacífico, que dá às tempestades mais espaço para crescerem antes de chegarem a terra. O Furacão Patrícia, que se formou no Pacífico Oriental ao largo da costa da Guatemala em 2015, teve os ventos mais fortes de que há registo, atingindo 346 km/h. A tempestade atlântica mais forte foi a Wilma, em 2005, com ventos de 294 km/h.A melhor defesa contra um furacão é uma previsão meteorológica exacta, que permita às pessoas terem tempo para se desviarem. O Centro Nacional de Furacões dos EUA, por exemplo, observa os furacões e emite comunicados sobre eventuais tempestades com 48 horas de antecedência e previsões de tempestades com 36 horas de antecedência.Como as alterações climáticas afectam os furacõesAs alterações climáticas podem estar a causar fenómenos de clima extremo mais frequentes e mais intensos, incluindo furacões. A época de furacões de 2018 foi uma das mais activas de que há registo, com 22 grandes furacões no hemisfério Norte em menos de três meses, e também houve tempestades atlânticas devastadoras em 2017. Em 2020, 30 tempestades receberam nome, das quais 14 evoluíram para furacões e sete intensificaram-se ainda mais, tornando-se grandes furacões. Embora sejam vários os factores que determinam a força e o impacto dos furacões, o aumento das temperaturas em certos locais desempenha um papel importante. No Atlântico, o aquecimento do Árctico poderá empurrar futuros furacões mais para Ocidente, aumentando as probabilidades de chegarem a terra nos EUA.O Furacão Harvey, que precipitou um volume recordista de 1,3 metros de chuva na região sudeste do Texas em 2017, foi alimentado pelas águas da superfície do Golfo do México, que estavam cerca de 1°C mais quentes do que três décadas antes. Uma atmosfera mais quente também pode fornecer mais vapor de água para formar chuva, uma vez que a evaporação aumenta e o ar quente retém mais vapor do que o frio.O aumento das temperaturas também pode abrandar os ciclones tropicais, o que pode ser um problema se a sua progressão sobre terra for prolongada, aumentando potencialmente as vagas de tempestade, a pluviosidade e a exposição a ventos altos.Segundo os cientistas, estas potenciais ameaças fazem com que seja mais importante do que nunca estarmos preparados para eventuais tempestades e abordarmos as causas das alterações climáticas.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Será a escala de Richter a melhor ferramenta para medir a magnitude dos sismos?

Também conhecida como escala de magnitude local, a escala de Richter foi concebida para determinar as forças envolvidas num sismo com uma magnitude entre 2,0 e 6,9 – a magnitude do sismo que abalou Marrocos na sexta-feira foi de 6,8, segundo o Serviço Geológico dos Estados Unidos – e que ocorra nos primeiros 400 quilómetros de profundidade, mas é bem possível que, mesmo que o sinta, não compreenda totalmente a que se refere.Para esclarecer esta questão, lembramos que a escala sismológica de Richter é uma escala logarítmica utilizada para quantificar a energia libertada por um sismo. Foi criada pelo sismólogo Charles Francis Richter juntamente com o sismólogo germano-americano Beno Gutenberg em 1935.A CHAVE DA ESCALA de RICHTER DOS SISMOSUm dos aspectos mais importantes a ter em conta nesta escala é precisamente a forma como é adjectivada. Ao contrário das escalas lineares, em que cada grandeza tem o mesmo comprimento que a anterior (ou seja, representa o mesmo valor), nas escalas logarítmicas cada grandeza sucessiva tem um valor muito superior à grandeza anterior, que no caso da escala de Richter é 100. Por outras palavras, se tivermos dois sismos com uma magnitude de 3 e 6 respectivamente, a energia libertada pelo segundo sismo não será o dobro da do primeiro, mas sim 1.000.000 de vezes superior.CONCEBIDA PARA MEDIR PEQUENOS SISMOSDe facto, a escala de Richter foi concebida para medir sismos relativamente fracos, entre magnitudes de 2,0 e 6,9. Além disso, outro problema desta escala é que é difícil relacioná-la com as características físicas da origem do sismo, pelo que, no início do século XXI, muitos sismólogos consideraram-na obsoleta e substituíram-na por uma escala mais adequada, conhecida como escala sismológica de magnitude de momento.A escala sismológica de magnitude de momento baseia-se na medição da energia total libertada num terramoto. Foi introduzida em 1979 por Thomas C. Hanks e Hiroo Kanamori como sucessora da escala sismológica de Richter e tem a vantagem de corresponder e manter os parâmetros da escala sismológica de Richter, mas, ao contrário da sua antecessora, é utilizada para ponderar a energia libertada em sismos de magnitude superior a 6,9.O maior terramoto da história foi o que ocorreu a 22 de Maio de 1960 na cidade de Valdivia, no Chile, que atingiu uma magnitude de 9,6 na altura. Apesar de sabermos que este é o maior sismo alguma vez ocorrido na Terra, um número como este pode ainda não nos dizer nada, por isso aqui fica uma tabela que descreve os efeitos típicos de sismos de várias magnitudes.Vale a pena lembrar ainda que as escalas de Richter e de magnitude momentânea coincidem até valores de 6,9, e também ter em conta que estes valores devem ser tomados com extrema cautela, uma vez que os possíveis efeitos de um sismo não dependem exclusivamente da sua magnitude, mas também de outros parâmetros como a distância do epicentro, a profundidade a que ocorre e as condições geológicas do local.Magnitude inferior a 2: micro-sismos. Não são perceptíveis. Ocorrem cerca de 8.000 por dia.Magnitude 2.0 - 2.9: sismos menores. Geralmente não são perceptíveis. Ocorrem cerca de 1.000 por dia.Magnitude 3.0 - 3.9: sismos menores. Muitas vezes perceptíveis; raramente causam danos. Registam-se 49.000 por ano.Magnitude 4.0 - 4.9: sismos ligeiros. Provocam o movimento de objectos nas habitações, mas raramente causam danos. São produzidos 6.200 por ano.Magnitude 5.0 - 5.9: sismos moderados. Podem causar danos importantes em edifícios fracos ou mal construídos. Danos ligeiros em edifícios bem concebidos. Ocorrem 800 por ano.Magnitude 6.0 - 6.9: sismos fortes. Podem destruir zonas povoadas até 160 quilómetros de distância. Registam-se 120 por ano.Magnitude 7.0 - 7.9: Grandes sismos. Podem causar danos graves em grandes áreas. Registam-se 18 por ano.Magnitude 8.0 - 8.9: Sismos épicos ou catastróficos. Podem causar danos graves em áreas de várias centenas de quilómetros. Ocorrem um a três por ano.Magnitude 9.0 - 9.9: Sismos épicos ou catastróficos. Devastadores, podem afectar áreas de milhares de quilómetros. Ocorrem entre um e dois em cada 20 anos.Magnitude superior a 10: Sismos apocalípticos ou lendários. Nunca registados na história da Terra. Estimado para a colisão de um meteorito rochoso com dois quilómetros de diâmetro que atingisse o nosso planeta a 25.000 quilómetros por hora.Magnitude 12: Provocaria a fractura da Terra no seu centro.Magnitude 13: Equivalente à energia libertada pelo meteorito que dizimou os dinossauros.Magnitude 25: Equivalente ao impacto do Tea na Terra, o hipotético planetoide que provocou a formação da Lua.Magnitude 32: Terramoto semelhante aos que ocorrem na superfície solar.

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Terena, por terras do Endovélico

Não vem em muitos guias nem nos trajectos turísticos recomendados e quem a procurar no GPS verá provavelmente que a rota o encaminha para São Pedro, nome alternativo pelo qual também é conhecida.No centro de um triângulo com vértices no Alandroal, em Reguengos de Monsaraz e no Redondo, a freguesia de Terena, com 83 quilómetros quadrados, não chega a 700 habitantes. Do alto do castelo, avista-se ali bem perto a barragem de Lucefécit e o seu modesto perímetro de rega. Subindo a ribeira para montante, a Rocha da Mina tem sido descrita como um Santuário do Endovélico, embora ainda não exista consenso entre os arqueólogos. As estruturas escavadas na rocha são enigmáticas e recuam certamente à Antiguidade ou ao início da Idade Média. É hoje difícil saber o que motivou os que se entregaram à laboriosa tarefa de moldar a pedra, mas quem hoje visita o local dificilmente fica indiferente à sua magia e força telúrica. Na transição para o século XXI, uma equipa de arqueólogos encontrou, a alguns quilómetros de distância, um importante depósito de estátuas romanas, sugerindo que a região deverá ter tido de facto um templo religioso de importância substantiva e uma aura mística considerável.No sentido inverso, no sopé da colina onde se implantam a povoação e o Castelo de Terena, a capela da Boa Nova é uma impressionante igreja-fortaleza do século XVI classificada como Monumento Nacional onde se realiza uma concorrida romaria no Domingo e Segunda-Feira de Pascoela. A arquitectura do edifício transmite uma ideia de solidez que faz pensar que irá facilmente resistir pelo menos mais 600 anos sem grandes problemas. Daqui, avista-se a povoação que, ao contrário de outras, se instalou do lado de fora das muralhas.No interior da fortaleza senhorial do período manuelino, pouco há além da torre de menagem, mas vale a pena percorrer a muralha em toda a sua extensão para contemplar a panorâmica sobre os campos e a própria povoação que no seu núcleo histórico se resume a um par de ruas. A torre do relógio pode ser visitada e, além da exposição ao longo da escadaria e do mecanismo, oferece uma vista complementar à do castelo.Terena tem poucos habitantes e o turismo também é tímido, gerando a sensação agridoce de um cenário teatral antes da chegada dos figurantes. Como tantas outras povoações do interior, esta é uma terra com um passado rico mas um futuro incerto. Vale a pena conhecê-la e pensar um pouco além das imagens roubadas com o telefone e partilhadas nas redes sociais e no papel que estes territórios e que as pessoas que neles teimosamente resistem vão desempenhar no futuro.

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Antigo Egipto: Nefertari, o túmulo de uma rainha

A rainha Nefertari, “amada de Mut”, viveu durante a XIX dinastia (século XIII a.C.) e foi uma Grande Esposa Real do Faraó Ramsés II. Era muito provavelmente a sua preferida e a mais poderosa das suas esposas. Nefertari recebeu vários títulos honoríficos, incluindo Grande Esposa Real, Esposa de Deus, Mãe do Faraó, Mulher Nobre Hereditária e Senhora do Alto e do Baixo Egipto. No entanto, um dos seus títulos, Aquela para Quem o Sol Brilha, revela o amor especial que Ramsés sentia por Nefertari.O faraó mandou construir um magnífico túmulo para ela na necrópole do Vale das Rainhas, ou Ta Set Neferu (“o sítio das belezas”), como lhe chamavam os antigos egípcios. O local fica a sul do Vale dos Reis e a sua disposição é típica dos túmulos da época do Império Novo. Foi escavado na encosta rochosa da montanha e é composto por uma série de corredores descendentes e câmaras que conduzem à mais profunda de todas, onde o seu sarcófago foi colocado.Decoração extravaganteO túmulo de Nefertari foi saqueado na antiguidade, mas os poucos bens que restam sugerem qual luxuoso seria o seu tesouro. Os tecidos, sandálias, jóias, fragmentos de estatuetas e caixas são da mais alta qualidade. No entanto, o verdadeiro tesouro são as pinturas belissimamente executadas e magnificamente preservadas das paredes do túmulo. Cerca de 480 metros quadrados de superfície pintada ainda se encontram em boas condições cerca de 3.300 anos após a sua criação. Ernesto Schiaparelli, o egiptólogo italiano que descobriu o túmulo em 1904, reconheceu imediatamente o valor extraordinário dos murais. Ele escreveu no seu relato sobre a escavação:“A magnificência do estilo faz lembrar a mais bela arte egípcia produzida no primeiro período da XIX dinastia. Faz com que este túmulo seja um dos monumentos mais notáveis da necrópole de Tebas, que chega a competir com os mais belos túmulos do Vale dos Reis, se não pelo seu tamanho certamente pela harmonia das suas partes e o requinte da sua arte.”Uma análise às pinturas do interior do túnel sugere que foram feitas por duas equipas de artistas. A mais talentosa trabalhou no lado esquerdo do túmulo e a outra no lado direito. Primeiro,as paredes rochosas foram rebocadas com gesso. Os contornos das figuras foram delineados sobre o gesso com tinta vermelha e, posteriormente, corrigidos com tinta preta. A seguir, vieram os artesãos, que esculpiram relevos no gesso após o desenho dos contornos. Por fim, os pintores deram vida às paredes e aos tectos através da cor. Ao longo do tempo, algumas camadas de estuque, cuja aplicação fora demasiado grossa, começaram a descascar e caíram devido ao seu próprio peso. Surpreendentemente, os danos foram relativamente insignificantes e as pinturas, agora restauradas, proporcionam uma visão artística única de como os habitantes do Egipto faraónico entendiam a morte e a vida no Além.A viagem de Nefertari rumo ao AlémAs convenções artísticas da época estão reflectidas na forma como o túmulo foi pintado. Os túmulos reais eram concebidos como um microcosmo, um mundo por si só. Os tectos simbolizavam o céu e o chão era a terra da qual o falecido iria tornar-se parte. A câmara funerária onde se encontrava o sarcófago do rei ou da rainha falecidos representava o Reino de Osíris, o deus do submundo. Acreditava-se que Osíris presidia ao tribunal que julga a alma, determinando se a pessoa fora suficientemente virtuosa para ter direito à imortalidade.Se o julgamento fosse favorável, o falecido iniciaria a sua ascensão para renascer junto do deus sol, Ré. Esta transição implicava uma viagem difícil, durante a qual a alma tinha de demonstrar algum conhecimento e fazer oferendas aos seres divinos. As fases desta passagem encontram-se descritas em pormenor no Livro dos Mortos. O túmulo de Nefertari foi decorado e desenhado de modo a auxiliá-la nesta viagem, conduzindo a rainha rumo a uma vida feliz e preenchida após a morte.O mundo subterrâneo de OsírisO funeral de Nefertari termina com a transferência da sua múmia para a câmara funerária, que simboliza o domínio de Osíris, o deus que personifica as figuras régias após a morte e julga se elas merecem, ou não, desfrutar da imortalidade. Imagens de Osíris decoram os quatro pilares que sustentam a divisão: em cada pilar, ele aparece sob a sua forma humana e sob a forma simbólica do signo djed. A múmia de Nefertari foi colocada num grande sarcófago de granito rosa, cuja tampa, embora partida, se encontra preservada. O sarcófago foi depositado parte mais baixa da divisão, que simboliza a terra primordial, a origem do mundo e tudo o que nele existe.Para empreender a viagem até ao renascimento e à vida eterna, Nefertari precisava da protecção de várias divindades, que também estão representadas nos pilares da câmara: o deus canídeo Anúbis e outras deusas protectoras, como Ísis que lhe oferece um símbolo ankh. As imagens que representam a primeira fase da viagem de rainha até ao Além figuram nas paredes laterais da câmara. Mostram os portais e grutas pelos quais ela terá de passar. Para a sua passagem ser autorizada, ela terá de demonstrar que sabe os nomes dos guardiões dos portais. Os seus nomes estão escritos para ajudá-la.Viajando em direcção ao dia Depois de completar a sua visita ao submundo, Nefertari sobe uma escada até ao nível superior. É uma escada dupla: um lado é utilizado para a descida e o outro para a subida do espírito da falecida rainha. Ela avança rumo às etapas finais da sua regeneração nas salas mais próximas da entrada. A decoração das paredes da escada reflecte a sua viagem desde o túmulo.Ao fundo, vê-se a irmã de Osíris, Nephthys, ajoelhada sobre o signo hieroglífico do ouro, simbolizando o material imutável do qual era feita a carne divina, agora incluindo a da falecida. Acima, o deus canídeo Anúbis protege o túmulo. Acima de Anúbis, encontra-se a cartela na qual está escrito o nome da rainha, protegido por uma grande cobra alada e, à sua direita, a deusa Maat, igualmente com as asas abertas. Depois estão as deusas Nephthys e Ísis, sentadas em tronos. Em pé, diante delas, está um retrato de Nefertari fazendo oferendas a Nephthys, Ísis e Maat, enquanto pede que a ajudem na sua viagem.Triunfo sobre a morteA escada conduz a um vestíbulo que Nefertari atravessa para chegar à sala adjacente, atrás da parede ocidental. Para tal, ela atravessa o portal protegido pela deusa abutre Nekhbet, patrona do Alto Egipto (no sul), uma divindade como uma relação estreita com a rainha, que também se encontra presente no toucado protector usado por Nefertari em todas as cenas pintadas no túmulo. É no vestíbulo que a viagem nocturna se transforma na viagem diurna. Nefertari passe diante de Selket e Neith, retratados nas paredes laterais. Acompanhada pela deusa Ísis, Nefertari aproxima-se do deus com cabeça de escaravelho Khepri, uma alegoria do sol, no seu nascimento diário na alvorada, e igualmente associado à viagem rumo ao renascimento. À direita da porta, encontram-se Hathor, sob a sua forma de senhora ou deusa do Oeste (a área onde se encontram os túmulos reais, na margem ocidental do Nilo) e Ré-Horakhty, o sol da manhã, com cabeça de falcão.Osíris junta-se a Ré, o deus solDepois do vestíbulo, a rainha passa para a sala adjacente, sem ser acompanhada por qualquer deus. A fase mais crítica do processo de renascimento ocorre nesta divisão. Uma vez completada, ela sairá pela mesma porta para entrar na antec��mara. Este anexo também está dividido em duas zonas: a metade noroeste (o domínio de Osíris) e a metade sudeste (domínio do sol).A divisão é definida pelasfiguras de Osíris, com pele verde, e Atum, o sol poente, de costas viradas um para o outro. Nesta sala, a rainha faz oferendas a vários deuses: Ptah, a quem oferece tecidos para ter as roupas de que precisará no Além; Thoth, que lhe concederá o conhecimento contido no discurso e na escrita; e Atum. Aquele que é, possivelmente, o painel mais fundamental de toda a sequência representa um deus carneiro com pele verde sob a forma de uma múmia. Esta figura combina as duas divindades envolvidas no renascimento da rainha: Osíris (representado pela pele verde) e Ré (representado pelo disco solar da sua cabeça.) Um texto hieroglífico confirma esta identificação: “Ré repousa em Osíris e Osíris repousa em Ré”.Nefertari regressa à vida No final da sua ascensão, Nefertari está quase pronta para se fundir com Ré. Ela chega à antecâmara e prepara-se para “avançar durante o dia”. O significado deste momento é explicado no feitiço 17 do Livro dos Mortos, inscrito na câmara, que inclui a frase: “início dos louvores e invocações para deixar a necrópole gloriosa e nela entrar, e no belo Ocidente, sair para a luz do dia”. As pinturas mostram a rainha já renascida, a jogar senet (um jogo de tabuleiro associado à morte) e transfigurada sob a forma de ba, um dos elementos imateriais que formam a alma.A sua forma de ave com cabeça humana permite ao ba voar para fora do túmulo durante o dia e regressar durante a noite, para descansar e alimentar-se no interior. A rainha, sob a forma mumificada, repousa numa cama. Tem Ísis a seus pés e Nephthys junto à sua cabeça, ambas sob a forma de milhafres. Nefertari também presta culto à ave Bennu, uma insígnia solar da morte e do renascimento. Com as etapas da sua viagem nocturna concluídas, Nefertari sai pela porta do túmulo para aparecer tal como o seu pai, Ré.Adaptação de artigo publicado originalmente na edição nº 24 da National Geographic História.

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O abraço

O comportamento familiar cooperativo dos pinguins-imperadores (Aptenodytes forsteri) não só nos proporciona cenas ternas como esta, captada por Thomas Vijayan, como também é uma das suas características mais conhecidas.O fotógrafo registou esta imagem na Antárctida, quando a família parecia estar a acariciar-se. A cria tem apenas algumas semanas e, durante a sua incubação, o macho esteve no ninho (dois meses) enquanto a fêmea saiu para caçar e alimentar a família.A cena, que contribuiu para aumentar a visibilidade desta espécie ameaçada, foi premiada na categoria “Escolha dos Estudantes” do Prémio de Fotografia Ambiental 2024, organizado pela Fundação Príncipe Alberto II do Mónaco.

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Fixe o nome: Muhammad Mansoor Mohiuddin

Por vezes, as tragédias dão origem a inovações. Foi isso que aconteceu  quando uma equipa cirúrgica do Centro Médico da Universidade de Maryland, liderada por Muhammad Mansoor Mohiuddin e Bartley Griffith, realizou uma cirurgia revolucionária num paciente de 57 anos com insuficiência cardíaca terminal.O pedido de transplante de David Bennett, Sr. fora rejeitado por vários factores de saúde. Todos os anos, milhares de pessoas enfrentam uma realidade semelhante, em parte porque os EUA têm uma crise de escassez de órgãos. Muhammad recomendou uma alternativa: o uso do coração de um porco, geneticamente modificado para minimizar a probabilidade de rejeição. Realizada em 2022, a experiência foi um sucesso – pelo menos no início. O paciente morreu dois meses mais tarde, quando o coração parou devido a complicações imunitárias. O segundo paciente de Muhammad, um homem chamado Lawrence Faucette, sobreviveu quase seis semanas. Morreu em 2023, depois de o sistema imunitário rejeitar o transplante. Mas cada transplante, cada falha, aproximou Mohiuddin do seu sonho de um xenotransplante bem-sucedido – e de um mundo onde qualquer pessoa que precise de um transplante cardíaco possa obtê-lo.Para o cirurgião, líder no campo dos xenotransplantes, cada cirurgia proporciona informação preciosa sobre este campo promissor. Inicialmente, as experiências de Mohiuddin envolveram o transplante de corações de hamsters em ratos. Depois, foram corações de ratos em camundongos e corações de porcos em babuínos e chimpanzés – primatas com a mesma composição genética dos seres humanos. Então, porque não usar macacos para transplantes em seres humanos? “O que descobrimos é que, embora os chimpanzés e todos os primatas não humanos sejam mais próximos dos seres humanos, o HIV foi transmitido”, explica Mohiuddin. Além disso, um macaco leva 20 anos para atingir a maturidade e para que seu coração cresça o suficiente para funcionar num humano adulto.Eis que o investigador paquistanês descobriu que os porcos ofereciam uma solução útil: as porcas produzem em média 10 leitões cada, e os porcos geneticamente modificados podem ser criados rapidamente. E embora a fisiologia de um porco seja diferente da de um humano, os avanços na edição genética tornaram os porcos doadores de órgãos viáveis.Num futuro ideal, teríamos corações suficientes para todos. E embora os porcos utilizados nas cirurgias de Muhammad Mohiuddin tenham cerca de 30.000 genes, só dez foram alterados para os adequar ao corpo humano. O cirurgião diz que os genes dos porcos são editados principalmente para evitar que os seus corações sejam rejeitados pelo sistema imunológico humano. Ele também determina quais modificações genéticas são necessárias para impedir que os corações de porco cresçam depois de serem colocados nas cavidades torácicas dos pacientes. Além disso, Mohiuddin desenvolveu um novo regime de imunossupressão com o objectivo de superar a rejeição do coração de porco transplantado.A ideia de matar porcos para aproveitamento dos seus órgãos tem detractores, mas Muhammad defende que a prática serve um bem maior. “Sempre que o objectivo é salvar uma vida, isso tem precedência sobre as outras questões”, diz.Artigo publicado originalmente na edição de Abril de 2025 da revista National Geographic, incluído no dossier "Os 33 da National Geographic" (aqui adaptado e integrado na série "Os novos pioneiros da National Geographic")

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“El nuevo mundo”, um manuscrito épico inédito

Francisco Botelho de Moraes e Vasconcelos (1670-1747) nasceu em Bragança e estudou em Coimbra, mas passou uma parte da vida entre Madrid e Barcelona. Foi autor de uma obra poética notável, com destaque para El Nuevo Mundo, um poema épico composto em castelhano sobre a viagem de Cristóvão Colombo para a América. Conheciam-se as versões publicadas em 1701 desta obra, mas a investigadora Claudia García-Minguillán descobriu, na biblioteca da Abadia de Montserrat, na Catalunha, um documento inédito há mais de três séculos.A versão manuscrita da obra contém cerca de duzentas oitavas não utilizadas nas versões publicadas e várias passagens riscadas que sugerem que a obra foi sujeita a censura (pelo próprio ou por outros) ao sabor da ideologia do momento na complicada política ibérica de Setecentos. A dedicatória ao nobre Manuel de Toledo, da Casa de Alba, figura numa versão impressa e desaparece na seguinte, mas consta com grande proeminência no manuscrito agora descoberto.“Trata-se do primeiro poema épico escrito em espanhol e dedicado à figura de Colombo, publicado cerca de duzentos anos depois da viagem”, diz a investigadora. “Mas o poema foi escrito pouco antes da Guerra da Secessão Espanhola, que produziu a alteração da dinastia dos Áustria para os Bourbon.” Como consequência, Botelho (ou alguém por ele) teve de navegar com cuidado por estas águas, pois essas oitavas recém-descobertas constituiriam material sensível com referências a acontecimentos históricos e militares interpretados de maneira diferente em Portugal e Espanha, bem como entre as duas casas reais com aspirações ao trono de Espanha.Também as oitavas dedicadas à personagem Carlos, suposto marinheiro da frota de Colombo, têm relevância, uma vez que foram suprimidas na versão que chegou ao público. “São passagens que contêm informação inédita da própria biografia do poeta”, diz García-Minguillán. Aludem a Coimbra, Madrid e Barcelona e ao exílio forçado da personagem, longe da sua terra.A investigação, parcialmente financiada pela Fundação Gulbenkian, prossegue e a autora mostra interesse em responder a novas interrogações. “Pode o poema ter sucumbido aos interesses do clima político? Terá sido usurpado das mãos do poeta e convertido numa arma de propaganda ao serviço do interesse de alguns em vez de respeitar o desejo legítimo do autor para servir a filiação política da Casa de Alba com os Borboun?”, pergunta. É o que se verá.Artigo publicado originalmente na edição nº 24 da National Geographic História.

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Série “Da nossa estante”: A enigmática e esquiva enguia

Em 1923, o biólogo dinamarquês Johannes Schmidt propôs na revista Nature a hipótese de a enguia encontrar no mar dos Sargaços o seu destino de reprodução.O trabalho deste investigador nórdico no oceano Atlântico e no mar Mediterrâneo demonstrou a vastidão da distribuição das larvas desta espécie e sugeriu que, no mar dos Sargaços, se concentrariam as larvas mais jovens. O biólogo propôs que esta região do Atlântico Norte cercada por correntes atlânticas poderia ser o lugar de desova da enguia. Embora o estudo de Schmidt tenha sido pioneiro para a época, não apresentava evidências dessa travessia atlântica, pois não avistara adultos ou ovos naquelas águas. Durante um século, a comunidade científica que se dedica a esta espécie ficou sedenta de mais respostas. Em quantos meses completaria a enguia a sua rota migratória? Em que altura do ano iniciaria o ciclo? E como resistiria a uma travessia violenta num oceano de predadores vorazes?Entre todas as espécies deste peixe que suporta variações acentuadas da salinidade da água, a enguia-europeia leva a cabo a mais longa e complexa migração oceânica. Apesar das tentativas realizadas para compreender a sua rota migratória, só nos últimos 10 a 15 anos se fizeram progressos significativos com a introdução da aplicação de transmissores de satélite. Estes pequenos dispositivos colocados no dorso das enguias permitem aos investigadores receber dados de temperatura e profundidade, com os quais calculam trajectórias. Programados para se soltarem no final de um determinado período de tempo, emergem à superfície e enviam por satélite toda a informação registada ao longo desse período.Dedicado ao estudo dos grandes predadores pelágicos do Atlântico, o biólogo Pedro Afonso encontrou nas enguias uma nova linha de investigação: “Grande parte da sua vida é feita nas íngremes ribeiras açorianas, mas a maior prova à sobrevivência da enguia dá-se nas águas profundas do oceano Atlântico, no último momento da sua vida”, diz.É por isso que hoje o encontramos, num grupo focado num pequeno animal. A enguia é um peixe escorregadio e não é fácil contê-lo para a pequena cirurgia de implantação dos marcadores. A equipa aplicou óleo de cravinho como anestesia, permitindo 15 minutos de diminuição do metabolismo do animal. Com gestos precisos, implanta-se o transmissor, pesa-se e mede-se a enguia da cabeça à cauda, medindo também o diâmetro do olho e da barbatana peitoral.O estudo, integrado nos projectos EELIAD e LifeWatch, permitiu marcar centenas de enguias em cinco regiões da Europa: o mar Báltico, o mar do Norte, o mar Céltico, o golfo da Biscaia e a costa oeste do Mediterrâneo. Os Açores são a nova etapa para a investigação desta espécie. Embora os transmissores tenham permanecido no dorso das enguias durante seis meses até ao momento da sua libertação, a velocidade a que as enguias se deslocaram não foi suficiente para que chegassem ao fim da sua travessia antes da libertação dos transmissores, deitando por água algumas expectativas. Em contrapartida, os dados recebidos mostraram um aspecto revelador: uma convergência nas rotas das enguias marcadas nas diferentes regiões da Europa no momento em que estas se aproximam do arquipélago dos Açores.Partindo do pressuposto de que as enguias que habitam as ribeiras açorianas também desovam no mar dos Sargaços, uma equipa liderada por Rosalind Wright, da Agência do Ambiente do Reino Unido, percebeu que as ilhas portuguesas poderiam funcionar como ponto de escala e que se a marcação das enguias fosse feita aí, os biólogos estariam mais próximos do destino final desta travessia atlântica, permitindo que os transmissores se libertassem apenas quando as enguias já estivessem no mar dos Sargaços. Entre 2017 e 2019 foram marcadas 26 fêmeas em várias ilhas açorianas. Dos 26 transmissores, 21 comunicaram por satélite com o sistema ARGOS e forneceram informação substancial sobre esta travessia. Com partida dos Açores, alguns transmissores libertaram-se um ano depois da sua colocação, fornecendo o seu posicionamento no coração do mar dos Sargaços – a zona intuída por Schmidt há 100 anos. O grupo de investigação conseguiu assim a tão esperada prova. Os resultados foram publicados em Outubro de 2022 na revista “Scientific Reports”. Nesse trabalho de campo, os Açores suscitaram novas questões sobre este fascinante comportamento. Cem anos depois, e apesar de todos os estudos publicados, a enguia continua a mostrar-se enigmática e muitas respostas continuam a escapar entre os dedos dos investigadores.A zona mais ocidental da Europa ficou baptizada pelos portugueses como ilha das Flores. A forma exuberante como os cubres (uma flor amarela) se estendiam pela encosta da ilha determinou a sua toponímia. Mas esta podia bem ter ficado baptizada como a ilha da água. Conhecida pelas suas idílicas cascatas, a ilha das Flores é um lugar promissor para a investigação do ciclo de vida da enguia. Ao contrário de outras regiões na Europa continental, onde a acção transformadora humana é mais evidente, a ilha é um lugar quase prístino, com pouca poluição e sem barreiras hídricas que interfiram com a movimentação das enguias ao longo das ribeiras. Contudo, estas ilhas vulcânicas oferecem outros perigos ao ciclo de vida das enguias. Para Pedro Afonso, “as grandes quedas de água e a seca intermitente de algumas zonas das ribeiras durante o Verão terão seguramente influência na sobrevivência e na necessidade de adaptação evolutiva das enguias açorianas”.O território condiciona o movimento das enguias, e também o avanço dos biólogos é difícil nesta manhã de nevoeiro serrado, junto da ribeira de onde corre a água que sai do Poço do Ferreiro. As características da vegetação interrrompem a progressão e o mato de criptomérias e conteiras força desvios. O solo húmido abate sobre o peso dos investigadores. Para trás, fica a lagoa e a grande dúvida: poderão as enguias sobreviver a uma queda de mais de 80 metros? Até agora, não foi possível confirmá-lo.Em Outubro de 2021 a equipa internacional liderada por Pedro Afonso (e financiada pelos projectos europeus Mission Atlantic, LifeWatch e European Tracking Network), juntando investigadores do Instituto Okeanos da Universidade dos Açores, do Instituto de Investigação da Natureza e Florestas da Bélgica e do Instituto Marítimo da Flandres, chegou às Flores pela primeira vez para levar a cabo um novo estudo com a ambição de saber mais sobre o comportamento das enguias neste habitat de características tão particulares.Há alguns anos, uma situação invulgar no cais da vila da Madalena, na ilha do Pico, despertara a atenção do grupo de investigação: uma população de enguias estabelecera-se nas águas salgadas do cais, alimentando-se aí durante toda a sua fase de crescimento, contrariando aquele que seria o seu percurso natural: o avanço ribeira acima para se alimentar nos poços formados ao longo do curso. Poderiam as enguias dos Açores registar um comportamento híbrido na sua alimentação, variando entre o mar e as ribeiras, ou seria o caso da vila da Madalena uma mera excepção?Para o confirmar, a equipa recorreu a transmissores acústicos implantados no abdómen da enguia e comunicando por ultrassons com 12 receptores estrategicamente colocados pela equipa ao longo das ribeiras. Trinta e sete enguias douradas (os indivíduos adultos em fase de crescimento) foram marcadas nesta primeira expedição. Com base nos dados recolhidos, concluiu-se que, depois da sua chegada à ilha, as enguias bebés (na fase “de vidro”) sobem as ribeiras para depois se fixarem, preferencialmente, em poços onde exista mais habitat permanentemente submerso, por norma abaixo das quedas de água mais fortes. Aí permanecem, alimentando-se e crescendo durante grande parte da sua vida até se transformarem em enguias prateadas (a última fase de desenvolvimento, quando atingem a maturidade sexual e estão prontas para iniciar o percurso migratório).A observação no Pico contrariara comportamentos estudados em populações de enguias no continente europeu e que sugeriam que estas, depois de se estabelecerem, poderiam deslocar-se até um máximo de quatro quilómetros num período de 1 a 3 anos. Outro comportamento inédito agora observado nas ribeiras açorianas foi a competição directa entre enguias que ocupam o mesmo território. Os biólogos encontraram marcas em “v” na pele da maioria das enguias, comprovando ataques – ao que tudo indica, vestígios da luta por alimento.Para o biólogo Pieterjan Verhelst, “a percepção de como as enguias usam a corrente é crucial para uma boa gestão das ribeiras, sobretudo na prevenção da poluição”, diz. “Deixar poluir um único poço pode conduzir à morte de um grande número de enguias.”Por fim, com os dados recolhidos na expedição de Novembro de 2022, inteiramente consagrada à fase prateada deste animal, a equipa de investigação analisa os períodos de migração das enguias dos Açores. Atendendo a que as várias populações de enguias, dispersas geograficamente entre o Norte de África e o Norte da Noruega, deverão chegar todas ao mar dos Sargaços numa altura específica do ano, terão de iniciar essa rota em alturas diferentes do ano, pois estão a diferentes distâncias do mesmo destino. Como o arquipélago dos Açores está mais próximo, a equipa quer perceber em que altura do ano as enguias prateadas dão início à rota migratória. Será mais um passo importante no longo caminho de descoberta desta enigmática espécie.

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Areia magnética

Este fenómeno, conhecido como a Terra das Sete Cores, é um prodígio geológico que há muito atrai turistas e cientistas a este estado insular a leste de África. A explicação, essa, está na sua origem vulcânica. Quando as erupções formaram estas terras, os minerais da lava arrefeceram a diferentes velocidades e em diferentes condições químicas. Isto resultou em areia com composições minerais muito diversas, responsáveis pelos diferentes tons que vemos hoje.A tudo isto se soma um detalhe invulgar: a areia de cores diferentes não se mistura, mas cada uma tem o seu espaço. Mesmo que misturasse as diferentes cores num frasco (coisa que não se deve fazer porque é um local protegido) e o agitasse, ao fim de alguns minutos elas voltariam a separar-se, como se cada tom tivesse vontade própria. Não é magia, mas sim física, já que os minerais são carregados de magnetismo e repelem-se entre si.

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As florestas húmidas, continente a continente

O conceito de floresta húmida abarca qualquer floresta em que a disponibilidade hídrica fornecida pela chuva se mantém alta durante todo o ano.O que a caracteriza mais? Árvores altas e maioritariamente de folha perene, bem como a presença de vegetação epífita e de espécies que necessitam permanentemente de água para sobreviver, tanto em climas tropicais e subtropicais como em temperados. Normalmente, usa-se como métricas um mínimo de 1.400 mm de pluviosidade anual para a identificar e, para as florestas húmidas temperadas em concreto, uma temperatura média anual que varia entre os 9 e os 12ºC.As florestas húmidas apresentam geralmente uma estrutura muito sui generis, dispondo-se em camadas. Na mais elevada, a camada emergente, apenas as árvores mais altas conseguem ultrapassar a camada seguinte, a das copas, que pode ter vários metros e se caracteriza por uma intrincada rede de folhas e ramos, que bloqueia a maior parte da luz e radiação solar, tornando a camada seguinte, o sub-bosque, directamente acima do nível do solo, numa zona mais escura e húmida, onde apenas plantas mais baixas e mais tolerantes à sombra sobrevivem. Finalmente, existe a camada ao nível do solo, marcada por uma densa cama de folhas e outros resíduos vegetais que são rapidamente degradados por uma rica comunidade de decompositores.Embora as florestas húmidas não constituam mais do que 6% da superfície da Terra, possuem uma biodiversidade muito maior: cerca de 50% das espécies terrestres conhecidas habitam estes ecossistemas e todos os anos são descobertas novas. São também talvez os ecossistemas mais antigos do planeta ainda existentes: algumas permanecem, na sua forma actual ou perto disso, há cerca de 70 milhões de anos.Também extremamente importantes do ponto de vista climático, as florestas húmidas são responsáveis pela produção de cerca de 20% do oxigénio atmosférico e tendo um papel importantíssimo na regulação do ciclo da água a nível mundial. A seguir, deixamos-lhe o nome, a localização e algumas imagens das florestas húmidas mais fascinantes do mundo, por continente:América do SulComeçamos pela estrela da companhia: a Amazónia. Ocupando mais de 6,7 milhões de quilómetros quadrados (sim, leu bem! É o equivalente sensivelmente ao dobro da área da Índia), esta gigantesca floresta húmida tropical ocupa uma parte significativa da América do Sul, ocupando territórios de 10 países distintos: Brasil, Bolívia, Suriname, Guiana, Venezuela, Paraguai, Equador, Peru, Colômbia e França (nomeadamente a Guiana Francesa).A Amazónia alberga cerca de 10% da biodiversidade de todo o planeta, e a maior diversidade do mundo de peixes de água doce. Deve o seu nome ao rio Amazonas, que a atravessa, sendo por si só responsável por cerca de 15% da água doce que chega ao mar por via fluvial.América do norteAs florestas húmidas mais típicas da América do Norte nada têm de tropical. Pelo contrário, estas florestas situam-se essencialmente no Canadá e no noroeste dos Estados Unidos da América, embora algumas bolsas ocorram até ao norte da Califórnia, e são florestas temperadas, dominadas por coníferas de grande porte (aliás, ocorrem aqui as árvores de maior porte do mundo), como as sequóias, algumas espécies de pinheiro e abetos.Podem ser divididas em dois grupos principais: as florestas húmidas continentais, que apenas subsistem em bolsas de grande pluviosidade, e as costeiras, na costa do Pacífico. Um exemplo destas últimas é a Floresta Nacional de Tongass, no sul do estado do Alasca, a maior floresta nacional dos Estados Unidos da América. Um facto curioso é que a espécie-chave deste ecossistema é um animal que não será provavelmente o que ocorrerá primeiro aos leitores: é o salmão do Pacífico, o maior responsável pela saúde deste ecossistema, servindo de alimento a uma série de espécies que ajudam a modelar o habitat quando sobe os rios para se reproduzir (e morrer de seguida).EuropaNo nosso continente, restam poucas áreas de verdadeira floresta húmida, estando estas normalmente confinadas a zonas montanhosas ou severamente fragmentadas. Uma das poucas florestas húmidas (temperadas, claro está) relativamente bem preservada no continente europeu é a floresta de Białowieża, na fronteira entre a Polónia e a Bielorrúsia. Esta floresta, um dos resquícios da floresta pristina, é conhecida principalmente por ter sido, durante muito tempo, o último local onde o bisonte-europeu permanecia vivo (hoje em dia, felizmente, existem outros locais onde esta espécie foi reintroduzida). Outro local de que urge falar é a maior mancha de floresta antiga existente na Europa: os 1.400 hectares de floresta quase intocada de Perućica, na Bósnia-Herzegovina. Ambas são áreas reconhecidas como Património Mundial pela UNESCO.Portugal tem, também, algumas áreas que podem ser classificadas como floresta húmida. Para além de pequenas bolsas na zona mais a norte, em continuidade com as zonas mais altas da Galiza, os resquícios de floresta laurissilva que subsistem nos arquipélagos dos Açores e, principalmente, no da Madeira, podem também ser considerados um tipo de floresta húmida subtropical, mas deve-se ter em mente que a Madeira, embora politicamente seja europeia, se encontra na Placa Africana.ÁsiaO destaque no continente asiático vai para as florestas tropicais húmidas da ilha de Bornéu. Um enorme hotspot de biodiversidade, esta floresta, que em tempos cobriu grande parte da ilha tripartida entre a Malásia, o Brunei e a Indonésia, ocupa hoje cerca de metade da área que ocupava historicamente, devido à desflorestação, com menos de 10% da mesma a estar protegida.Ainda assim, a floresta, que tem pluviosidades anuais superiores a 4.000 mm, possui umas absolutamente impressionantes 15 mil espécies vegetais, mais do que as descritas para todo o continente africano, nas que se incluem, além de diversas espécies de fruta-pão, que tem aqui a sua maior diversidade mundial, a Rafflesia arnoldi, planta parasítica que possui a maior flor do mundo.Também espécies animais únicas encontram aqui a sua casa (algumas descritas pelo famoso naturalista Alfred Russel Wallace), como é o caso do orangotango de Bornéu, o rinoceronte de Sumatra ou a subespécie anã do elefante asiático.ÁfricaNo continente africano, não podemos deixar de referir a sua maior floresta e a segunda maior do mundo: a floresta húmida tropical que cresce na bacia do rio Congo e se estende por 6 países da África Central – os Camarões, a Republica Democrática do Congo, a Guiné Equatorial, a República da África Central, a República do Congo e o Gabão.Cobrindo uma boa parte dos 3,7 milhões de quilómetros quadrados da bacia, esta floresta é conhecida pelas diversas espécies de primatas existentes na região, incluindo chimpanzés, gorilas e bonobos, assim como pelas populações de outros grandes mamíferos, com destaque para as populações de elefante-da-floresta Loxodonta cyclotis. Aliás, estas são responsáveis pela diferente estrutura desta floresta em relação às suas contrapartes asiáticas ou americanas, com relativamente poucas árvores de pequeno porte. OceâniaEmbora a Austrália possua florestas tropicais húmidas, escolhemos ressaltar um ecossistema menos popular: as florestas húmidas temperadas do arquipélago da Nova Zelândia. Este é um dos locais mais pluviosos do mundo, com certas zonas a receberem substancialmente mais de 4.000 mm de chuva anuais, nomeadamente a costa ocidental da South Island, onde os ventos húmidos vindos de oeste esbarram nas montanhas que se erguem aí.Como em tantas outras coisas no que toca à biodiversidade, a das florestas húmidas da Nova Zelândia é única. As suas florestas são caracterizadas pela dominância de coníferas do género Dacrydium, ou, noutros locais, pela endémica Metrosideros umbellata e por Pterophylla racemosa.

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Um guia prático para caminhadas de longa distância no Reino Unido

Na Grã-Bretanha, fazer caminhadas de longa distância faz parte de uma tradição longeva. Em 1965, o Pennine Way tornou-se o primeiro Trilho Nacional do Reino Unido e agora, 60 anos mais tarde, existem 16 trilhos por onde escolher. Por isso, antes de calçar as botas e começar a andar, deixamos-lhe alguns conselhos práticos que podem ajudá-lo a tirar o máximo proveito das vistas maravilhosas.Qual o melhor caminho para MIM?A boa notícia é que o Reino Unido tem trilhos de longa distância para todo o tipo de caminhante, independentemente da sua preparação. Alguns dos mais planos são South Downs (160 quilómetros) e Norfolk Coast (135 quilómetros) – acessíveis a qualquer pessoa com uma condição física razoável. O Thames Path (300 quilómetros) também é bastante fácil e tem algumas estações pelo caminho, fazendo com que seja bastante fácil interromper a caminhada.Tenha em conta que alguns trilhos que não atingem elevações estonteantes podem ser inesperadamente difíceis– Cotswold Way (165 quilómetros) e South West Coast (1.013 quilómetros) tem bastantes ondulações. O trilho mais difícil é, sem dúvida, o oficioso Trilho de Cape Wrath (370 quilómetros), uma expedição às Terras Altas que implica campismo selvagem e travessias fluviais no norte de Escócia.Como devo planear a minha caminhada?Irá descobrir que alguns caminhos estão mais bem preparados para o turismo do que outros: os 16 Trilhos Nacionais costumam ter boas infra-estruturas e são fáceis de percorrer. No entanto, deve reservar alojamento com muitos meses de antecedência, caso escolha opções populares como o Pennine Way ou o Trilho das Terras Altas Ocidentais na época alta.Os trilhos de longa distância menos famosos podem implicar viagens complicadas de transportes públicos até chegar ao início dos trilhos e um maior esforço para encontrar locais de alojamento e pontos de navegação, uma vez que, ao contrário dos Trilhos Nacionais ou dos Grandes Trilhos da Escócia, nem todos estão sinalizados. Como é evidente, ninguém o obriga a fazer nenhum trilho completo – podendo fazer apenas secções. Acima de tudo, a sua quilometragem diária será, provavelmente, determinada pelas opções de alojamento e transporte, bem como pela sua condição física.De que equipamento preciso?Umas boas botas de caminhada e um resguardo à prova de água são essenciais durante todo o ano. Vale sempre a pena levar água potável, snacks de emergência, uma lanterna, pilhas, camadas quentes de roupa e um apito para chamar a atenção. Os bastões de caminhada também podem ser úteis para poupar os joelhos, sobretudo nas descidas.Mesmo em trilhos mais movimentados deve ir preparado com um mapa (como o Ordnance Survey), uma capa impermeável para o mapa, uma bússola e o conhecimento necessário para os usar – e ir consultando a meteorologia com antecedência. O boletim meteorológico da MWIS é o melhor para as montanhas do Reino Unido. Avise sempre um amigo ou familiar sobre o seu destino e assegure-se de que tem um quarto de hotel à sua espera quando voltar.Tenho de carregar eu próprio todo o meu equipamento?Em muitos trilhos mais populares (incluindo a Muralha de Adriano, o Trilho Costeiro de Anglesey e o Caminho das Terras Altas Ocidentais), existem operadores que transportam a sua bagagem entre hotéis, bed & breakfast e albergues. Este serviço é frequentemente disponibilizado no âmbito de um pacote que inclui transportes e alojamento.Existem boas opções para pessoas com problemas de mobilidade?Alguns trilhos de longa distância são adequados a pessoas com cadeiras de rodas, sobretudo aqueles que foram outrora linhas de caminho-de-ferro. A rede Tarka Trail (290 quilómetros) é um deles, percorrendo a costa norte de Devon. A região de Derbyshire também conta com alguns trilhos acessíveis, comoTissington e Monsal, este último atravessando o viaduto vitoriano de Headstone.Qual a melhor altura para caminhar?As caminhadas de longa distância podem ser feitas durante todo o ano na Grã-Bretanha e a maioria das rotas são mais movimentadas entre Abril e Setembro. Tenha em conta que caminhar durante o Inverno nas regiões mais altas do norte do País de Gales, no Lake District e, acima de tudo, nas Terras Altas escocesas, pode exigir equipamento especializado como machados de gelo e crampons e o conhecimento necessário para usá-los. Os enxames de mosquitos podem tornar as caminhadas escocesas um sofrimento entre Julho e Agosto. Consulte os boletins de mosquitos em smidgeup.comComo ir até lá e andar por láTodos os 16 Trilhos Nacionais são acessíveis de comboio, pelo menos em algum ponto do trajecto. Se quiser fazer uma caminhada de ponto a ponto (em vez de circular), é preferível usar transportes públicos, para não ter de voltar ao início para ir buscar o seu veículo.Artigo publicado originalmente em inglês na revista National Geographic Traveller(Reino Unido)

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Uma fonte partilhada

A Reserva Privada Zimanga, na África do Sul, é um dos locais estratégicos para observar a vida selvagem africana. Num safari fotográfico iluminado pela luz da Lua e das estrelas, chegaram a este charco elefantes, leões, búfalos, rinocerontes e até um serval. No silêncio absoluto, estes animais tão díspares foram surpreendidos pelo fotógrafo amador Clint Ralph, que permaneceu em alerta durante longas horas.Registada a meio da noite, esta imagem em concreto mostra-nos uma família de leões que se aproximou do bebedouro para um último gole do dia. Aqui, vemos duas leoas a partilhar com os seus filhotes a mesma água.Os leões são os únicos felinos que vivem em matilha.

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O dia em que Salazar morreu pela “segunda vez”

É possível que a expressão mais célebre que António de Oliveira Salazar legou ao século XX português tenha sido o seu irredutível “orgulhosamente sós”. Pronunciada em 1965, contra todos os que o pressionavam a abandonar o império colonial, o ditador bate com o punho na mesa. Portugal contra tudo e contra todos, perseguido, incompreendido, estava no seu pensar a ser o único país no caminho certo. Alguns anos mais tarde, esta mesma atitude viria a revelar-se um dos traços de um dos chefes de Estado mais obstinados do século XX. Em circunstâncias que ainda hoje oferecem dúvidas, o homem que liderava os destinos de Portugal morre a 27 de Julho de 1970. da cadeira à banheiraA versão oficial do fim político de Salazar é a de que, a 3 de Agosto de 1968, Salazar tinha uma consulta marcada com um calista. O ditador sempre sofrera de graves problemas relacionados com esta maleita e, nos anos de velhice, os calos tendiam a acumular-se. Como tal, eram necessários tratamentos regulares. Por esta altura, com 79 anos e no poder há 35 anos, antevia-se que apenas abandonaria o seu cargo com a morte. Conta-se que nesse dia, enquanto se deixou cair numa cadeira de lona, o assento partiu-se e num revés, Salazar tombou no chão de pedra do Forte de Santo António da Barra, no Estoril, onde residia na altura. O médico notou logo que alguma coisa mudou na disposição de Salazar, mas este insistiu que não se passava nada. Na verdade, deve ter sentido uma alteração imediata na sua disposição. Mas chamar médicos implicava sussurros e cochichos de que passava por dificuldades; e como tal, Salazar fez jurar aos médicos e aos seus empregados que nada seria dito sobre o assunto.Sabemos isto através do seu biógrafo, Franco Nogueira, político e diplomata que fez a sua carreira dentro do aparelho do Estado Novo. Nogueira, no entanto, era muito próximo de Salazar. Um diplomata de grande capacidade, mas também um devoto salazarista, que, com a morte do ditador e incompatibilidades com Marcello Caetano, viu a sua estrela cair. A ideia de um acidente deste género passa a ideia de um simples azar.O barbeiro de Salazar, no entanto, alega que o aconteceu foi um desmaio, uma indisposição. O vetusto líder cai no chão, sentindo-se mal. Outra testemunha afirma que afinal, a queda se deu numa banheira. Portanto, tudo é nebuloso. O médico pessoal do Presidente do Conselho saberia do sucedido três dias depois e quis fazer um pequeno exame. Não detectou nada de grave, mas aconselhou uma consulta e exames ao cérebro para perceber se haveria sequelas. Salazar, novamente, recusou. O país viria a saber, a 7 de Setembro, que ocorrera uma queda, mas tudo porque, dando tudo pelo bem do país, Salazar ficara até tarde a trabalhar em frente à sua secretária e, dando-lhe o sono, escorregou da sua cadeira de trabalho e feriu-se na queda. Fora feita uma operação no início de Setembro e tudo estava bem.Na verdade, a única coisa verdadeira em tudo isto era a operação: realizou-se no Hospital de Santa Maria e descobriu um edema cerebral que já lhe causava problemas notados pelos seus ministros. Em várias reuniões de Governo, era comum Salazar estar calado, algo incomum, e apático. Eduardo Coelho, o seu médico pessoal, julgou que a operação resolvera o problema, mas uma semana depois do anúncio ao país, a 16 de Setembro, um acidente vascular cerebral atinge o Presidente do Conselho. Este é o momento irreversível, que podemos apontar como o princípio do fim do Estado Novo: um regime de líder dominador, por norma, cai quando esse mesmo líder morre. Salazar não morre, mas na prática fica um zombie. Debilitado, diminuído, física e mentalmente, é impossível a António de Oliveira Salazar continuar como Presidente do Conselho de Ministros. O poder paraleloA 17 de Setembro, o Presidente da República Américo Tomás anuncia ao país que um novo homem lidera os seus destinos – Marcello Caetano, que será o timoneiro de Portugal até ao 25 de Abril de 1974.A escolha foi algo inesperada, porque o catedrático de Direito da Universidade de Lisboa afastara-se do Conselho de Estado em 1968, por razões que nunca explicou muito bem, nem sequer nas memórias que escreveu no exílio. Há quem especule, no entanto, que Caetano, brilhante, inteligentíssimo, e com uma noção do espírito dos tempos mais aguçada do que a de Salazar, há já algum tempo se perfilava para subir de patamar. Aliás, falava-se que, quando o presidente Craveiro Lopes foi afastado por Salazar em 1958, numa altura que o ditador tinha já quase 70 anos, era porque estava a preparar esta sucessão. Américo Tomás concede a Salazar todas as honras de chefe de Estado ainda que não use do poder, e isto inclui uma farsa que durará até à sua morte.Encenam-se conselhos de ministros falsos perante o debilitado ditador de Santa Comba Dão. Os ministros falam dos seus afazeres como se pedissem a Salazar opiniões, como se dele recebessem ordens. Há o poder real, que Caetano exerce, tentando afastar Portugal do isolamento que Salazar criara; e há um jogo de aparências montado para agradar a quem controlou durante quatro décadas os destinos da nação e cuja palavra pode ainda levar alguns mais fiéis e irrevogáveis a agir. A farsa chegou a tal ponto que se chegou a produzir um exemplar único do Diário da República apenas para consumo de Salazar, lendo as leis fictícias que fizera aprovar nas reuniões. Quando é entrevistado por um jornalista francês, em 1969, comenta a realidade francesa e De Gaulle, mas nada fala do seu país. O que diz é uma ficção. Menciona-se Marcello Caetano e Salazar apenas comenta que foi seu ministro, mas que já não está em funções. O anúncio da morteA decadência do velho líder é cada vez mais gritante e só os mais crédulos a negam. Aliás, quando este morre e o mundo sabe através da Emissora Nacional, a mensagem transmitida é uma gravação, não um directo. O elogio à craveira e legado intelectual de Salazar é o grande foco, chorando a História de Portugal a morte de um dos seus maiores. No entanto, esta não é apenas uma narrativa rocambolesca. As suas consequências foram bem reais. Afinal, Tomás manteve as regalias de Presidente de Conselho e os tratamentos às consequências do AVC foram pagos pelo Estado. Segundo documentos publicados pelo Expresso em 2010, a doença e a sua monitorização custou aos portugueses 1,5 milhões de euros. Quando expira na manhã de 27 de Julho, no palacete de São Bento, é como se morresse uma segunda vez. Quatro dias de luto nacional e exéquias com toda a pompa no Mosteiro dos Jerónimos. É transportado num comboio especial até à sua terra natal do Vimieiro, onde é enterrado. Quatro anos depois, a sua obra maior tomba perante a estratégia militar e a vontade da população a 25 de Abril.

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Os cavalos de Lori não pedem licença para passar

João Piteira andou um ano em trânsito, e a Arménia foi o décimo país em que parou, numa viagem que o levou do subcontinente indiano aos Balcãs, através da Ásia Central, do Cáucaso e da Turquia. E porque destacamos a Arménia? Porque foi aí que João registou uma outra viagem, desta feita de vários equídeos em Alaverdi, na província de Lori.Esta pitoresca localidade no nordeste da Arménia é conhecida pelas suas paisagens naturais, como o canyon do rio Debed, pelo património cultural, que inclui milenares mosteiros de Sanahin e Haghpat... e também pelos seus cavalos à solta.Já em Portugal, o autor conta-nos como chegou a este enquadramento: "Após visitarmos a pequena capela visível na imagem, junto ao mosteiro de Sanahin, deparámo-nos com uma manada de cavalos a subir a colina. Quando me apercebi que se deslocavam naquela direcção, corri novamente colina acima para fotografar a manada com a capela e o desfiladeiro Debed como pano de fundo."

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6 das melhores praias secretas da Europa, desde a Croácia a França

Com águas cristalinas e brilhantes e vastos areais de areia vulcânica negra, a orla costeira da Europa é incrivelmente diversificada. Desde os penhascos acidentados da Costa Amalfitana às areias brancas das Ilhas Baleares, não admira que estes destinos sejam visitados todos os anos por milhões de turistas em busca de Sol.Contudo, para lá dos locais mais turísticos, existem milhares de quilómetros de orla costeira por descobrir por quem quiser aventurar-se mais além. Desde o Mar do Norte ao Mar Negro, saiba onde pode encontrar as praias menos conhecidas da Europa – sem resorts à vista.1. Ilha de Lokrum, CroáciaA 15 minutos de barco do porto do centro histórico de Dubrovnik, a Ilha de Lokrum é um retiro afastado das ruas frequentemente apinhadas da popular cidade croata. Protegida pela UNESCO como reserva especial de vegetação florestal, encontrará ali mais pinheiros e pavões – que vivem em estado selvagem na ilha – do que pessoas.Existem sítios para nadar em toda a ilha, mas a lagoa de água salgada formada por deslizamentos tectónicos e erosão conhecida como Mrtvo More (Mar Morto), é possivelmente um dos melhores. Alimentada por uma passagem subaquática que a liga ao Mar Adriático, Mrtvo More é um corpo de água fechado afundado nas profundezas do solo. Abrigada pelas fachadas rochosas acidentadas que circundam a lagoa, a água costuma estar imóvel – sendo, por isso, ideal para nadar. Estenda-se ao sol nas formações rochosas planas antes de mergulhar nas águas cristalinas, mas fique atento aos pavões que podem tentar roubar-lhe o almoço.2. Burnham Overy Staithe, InglaterraPara desfrutar dos vastos céus azuis de Norfolk em toda a sua glória, dirija-se ao autêntico oásis escondido que é a praia de Burnham Overy Staithe, na Costa Norte de Norfolk. Embora o seu isolamento obrigue a uma caminhada de quase um quilómetro pelos campos ingleses até chegar à costa, as vistas desobstruídas das areias douradas e das piscinas formadas pela água retida nas rochas fazem com que a última subida, para ultrapassar as dunas de areia, valha a pena. Para além de uma ocasional piscina deixada pela maré vazante, a praia é completamente plana, com nada mais do que intermináveis grãos de areia.Estacione no porto de Burnham Overy Staithe — uma zona popular pelos passeios de barco vela, paddle e caiaque – antes de se dirigir aos bancos de areia do Norfolk Coast Path, o trilho que delineia esta orla costeira selvagem. Sem um único café ou banca de gelados à vista, pode parecer um pouco isolada, mas isso faz parte do seu charme.3. Praia Espelho, AlbâniaSe viajar ao longo da costa sul da Albânia, irá encontrar bolsas isoladas de areia branca e águas cristalinas, mas a Praia Espelho é, possivelmente, a melhor. Assim denominada devido à forma como a luz solar é reflectida pelo seu mar, esta zona intocada da orla costeira permanece tão secreta que dificilmente encontrará muitas pessoas na praia – mesmo nos meses de Verão.A paisagem é definida por uma combinação de cascalho e areia branca e macia que se estende até às águas límpidas e deslumbrantes do Mar Adriático. A aldeia mais próxima, Ksamil, encontra-se a quase 6,5 quilómetros e há um pequeno parque de estacionamento junto à entrada da praia. E embora seja necessário alugar um chapéu de sol para garantir um espaço no areal, o ambiente privado, intimista e sem multidões compensa o investimento.4. Riva Bianca, ItáliaConhecida praticamente apenas pelas pessoas que vivem na vila medieval de Lierna, na margem oriental do Lago Como, em Itália, este esconderijo à beira-lago ainda é maioritariamente visitado pelas famílias locais. Com as montanhas cobertas de vegetação luxuriante que circundam o Lago Como como plano de fundo, Riva Bianca tem menos de 1,6 quilómetros de areal, mas não se deixe condicionar por isso.Vigiada pelo Castello di Lierna – um antigo castelo defensivo –, a praia de Riva Bianca é um local incrivelmente pitoresco e as excelentes pizzarias e gelatarias de Lierna são perfeitas para fazer uma refeição tipicamente italiana. Vai precisar de calçado aquático por causa dos pequenos seixos brancos que dão nome à praia, mas as suas águas límpidas e calmas merecem um mergulho.5. Praia Veleka, BulgáriaCom as montanhas de Strandzha como plano de fundo, a apenas 11 quilómetros da fronteira com a Turquia, Veleka recebeu o nome do rio que desagua no Mar Negro. Embora a praia costume ter menos de 1,5 quilómetros – espaço suficiente para apanhar banhos de sol no lado virado para o rio ou para o mar – a sua largura depende do comportamento do rio ao longo do ano e do volume de água vindo das montanhas.Tire partido das águas calmas do rio experimentando uma sessão de paddleboarding com a escola de windsurf local antes de relaxar sob um dos guarda-sóis gratuitos disponíveis à entrada da praia. Embora este local seja conhecido pelos autóctones, as instalações de apoio são limitadas. Deve levar consigo comida, bebida e protector solar suficiente para passar o dia sob o escaldante sol húngaro.6. Plage Mala, FrançaEntre o brilho e o glamour de Nice, do Mónaco e de Saint-Tropez encontramos Plage Mala. Aninhada numa pequena enseada e escondida pelas falésias altas da costa da Riviera francesa, esta praia é o derradeiro segredo. Com areia branca e águas azuis e cristalinas, esta baía em forma de crescente partilha a beleza de outras praias, mais populares, da Riviera Francesa, mas é muito mais calma.Os acessos à praia são limitados, mas pode lá chegar através do trilho costeiro de Cap d’Ail, ou pelos cem degraus de Allée Mala, uma escada que se encontra junto à estação de comboio de Cap d’Ail. Com água azuis-turquesa e falésias escarpadas, Plage Mala é um bom sítio para quem gosta de dar saltos para a água – mas tenha cuidado com a zona de banhos reservada para aqueles que preferem conservar a sua energia para a longa subida de regresso.Este artigo foi produzido pela National Geographic Traveller (Reino Unido).

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A fábrica de estrelas de Cafayate

"Para fazer esta fotografia, cheguei antes da hora azul e, assim que apareceram as primeiras estrelas, com alguma luz ainda a iluminar a paisagem, tirei as imagens para o primeiro plano", conta Gonzalo Javier Santile, autor desta composição que nos leva até Cafayate, na província de Salta, Argentina. "Mais tarde, quando já estava completamente escuro, tirei as fotografias verticais do céu".Um dos premiados da sexta edição do Milky Way Photographer of The Year (2023), Santile teve o auxílio de uma Nikon modificada para astrofotografia para obter este resultado: "Como a Via Láctea já estava muito baixa nessa altura do ano, tive de me apressar. Alinhei o meu star tracker e a acção começou. Na imagem podem ver-se as formações rochosas, as aberturas nas rochas nesta zona do deserto de Cafayate conhecida como 'Las Ventanas', e os pequenos cactos, que são a única vegetação existente. Consegui captar as cores avermelhadas das nebulosas e mais pormenores do céu nocturno graças à combinação de um star tracker e de uma câmara modificada para astrofotografia".

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Casas de lava

Sabia que o Pico do Fogo é a montanha mais alta do arquipélago de Cabo Verde e o seu cume fica a 2.829 metros acima do nível do mar? Como termo de comparação, lembramos que a Ponta do Piquinho açoriano fica a 2.351.Este estratovulcão activo entrou pela última vez em erupção a 23 de Novembro de 2014, acalmando apenas a 8 de Fevereiro do ano seguinte. Foram quase 80 dias a ferro e fogo que deixaram marcas profundas na ilha, sobretudo nas centenas de habitantes da aldeia de Chã das Caldeiras que tiveram de abandonar as suas casas (muitas delas destruídas pela lava). Dez anos volvidos, a maioria regressou à origem e reconstruiu a sua vida no interior da cratera do vulcão. O Parque Natural do Fogo, habitat de uma biodiversidade invejável, e o vinho homónimo estão aí para provar que este chão ainda tem muito para dar aos seus e ao resto do mundo.A beleza e a cinegenia da ilha – hoje Reserva da Biosfera da UNESCO – estão documentadas em A Erupção do Vulcão da Ilha do Fogo (1954), do geógrafo e historiador Orlando Ribeiro, Casa de Lava (1994), do realizador Pedro Costa, e Sodade (2024), a primeira longa-metragem da actriz e realizadora Sarah Grace.

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Já nas bancas

Guerreiras da era viking: Durante séculos, as histórias sobre estes guerreiros do Norte centraram-se nos homens e nas suas conquistas militares, mas a ciência está a oferecer uma nova  perspectiva sobre o papel das mulheres viking. Investigações recentes revelam que elas detinham poder e que algumas eram treinadas para o combate.Xenotransplantes, a esperança médica: Os avanços da genética e da medicina transformam os animais de quinta em possíveis dadores de órgãos.Níger, o paraíso dos dinossauros: Numa campanha paleontológica para a história, uma equipa incansável revela os segredos de um Saara verde perdido no Jurássico e no Cretácico.Formigas, guardiãs invisíveis da floresta: Um olhar atento sobre a vida destas formigas vermelhas revela o papel crucial que estes insectos diminutos desempenham no ecossistema.Os mestres do disfarce: Os primeiros naturalistas maravilharam-se com a capacidade de disfarce do reino animal, mas ainda estamos a aprender muito sobre mimetismo e camuflagem.

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Clea, uma alternativa biodegradável para os duches do futuro

E se substituíssemos o gel de duche acondicionado numa embalagem de plástico por cápsulas biodegradáveis e hidrossolúveis? Esta ideia, magicada e testada por um grupo de quatro alunos da Escola Secundária da Maia, foi distinguida pela National Geographic Society no âmbito do Slingshot Challenge deste ano. Aparentemente, Nuno, Isabel, Maria e Vasco não são muito diferentes da maioria dos jovens da sua idade. Aos 17, 18 anos, têm na música, na leitura e no desporto os seus principais hobbies. Vão a concertos, estudam para os exames nacionais, querem entrar na faculdade ainda neste ano – em engenharia mecânica,  engenharia de gestão Industrial, “gestão ou economia” e “talvez programação”. Mas há uma diferença. São, nas palavras da National Geographic Society “agentes de mudança locais que estão a usar a sua voz e criatividade para enfrentar as questões ambientais mais urgentes do planeta”. E se no ano passado apenas uma portuguesa – a ericeirense Marta Bernardino – se distinguiu neste concurso com um arrojado robô reflorestador chamado Trovador, também na edição de 2025 do Slingshot Challenge só uma candidatura nacional convenceu os jurados. E, desta vez, com pronúncia do norte.Quando o encontrámos em Lisboa, o quarteto do Norte tinha acabado de apresentar no Pavilhão do Conhecimento o Clea, um gel de dose única que se dissolve enquanto tomamos banho. Isabel Oliveira tira de um frasco um protótipo de uma cápsula bem-cheirosa que um dia, vendida numa caixa de cartão, poderá revolucionar os nossos hábitos e mitigar a poluição dos oceanos. O seu companheiro-das-químicas Vasco Cardoso diz que este exemplar feito para apresentar no Prémio Atlântico Júnior (o que lhes valeu um digno 2.º lugar) é, por questões práticas, mais pequeno do que aquele que esperam que chegue aos pontos de venda um dia.Isabel tem na ponta da língua uma preocupação e um número: “Na área dos cosméticos, e nomeadamente no sector do gel de banho, existem poucas alternativas sustentáveis. São criadas cerca de 120 mil milhões de embalagens de gel de banho por ano, um valor bastante significativo.” A esmagadora maioria dos produtos no mercado é pouco amiga do ambiente: “Existem ainda várias embalagens pequeninas dos hotéis e as amostras das farmácias, e tudo isso é mais plástico do que o gel propriamente dito. Ou seja, não havendo soluções e alternativas sustentáveis, as pessoas  são obrigadas a usar o tradicional. Era mesmo urgente encontrar uma solução nesta área”.As aulas de química podem ser aborrecidas em alguns estabelecimentos de ensino do país, mas na Escola Secundária da Maia não o são ou, pelo menos, não o foram este ano lectivo para a Isabel, a Maria, o Vasco e o Nuno: “No 12º ano, sobretudo, é muito valorizado o desenvolvimento de projectos nas disciplinas opcionais, como a química, a biologia e a física. É proposto aos alunos desenvolver um projecto à escolha em grupo e só isso fomenta muito a criatividade”, explica Isabel.A quantidade astronómica de plástico desperdiçada na área dos cosméticos estava a incomodar estes quatro alunos e, depois de algumas pesquisas e discussão, fez-se luz. E os frutos já são visíveis. Quem os começa por enumerar é Vasco Cardoso, mas os colegas junta-se a ele até chegarem ao número oito: o Clea já foi estrela nas plataformas e prémios de empreendedorismo juvenil e liderança local Slingshot, Otters Conference, Junior Market de “A Empresa”, Gen-E Portugal, Hands on Science, Marés Circulares, Eureka! e Mostra de Jovens Empreendedores.“Na área dos cosméticos, e nomeadamente no sector do gel de banho, existem poucas alternativas sustentáveis. São criadas cerca de 120 mil milhões de embalagens de gel de banho por ano, um valor bastante significativo.” (Isabel Oliveira)No princípio, os quatro não sabiam para onde iam, mas estavam cientes de uma coisa: o corte não podia ser radical com os hábitos dos consumidores. Nuno Aroso junta-se à conversa: “Já existe um gel de banho sólido, e muita gente não o usa porque não gosta da textura. O interior das nossas cápsulas é líquido, ou seja, aproxima-se mais do que os clientes já estão habituados a usar.” Isabel acrescenta que existe, no mercado, uma outra alternativa: as folhas biodegradáveis. “Só que, lá está, nós queríamos arranjar algo que mantivesse o tradicional e que também fosse sustentável.”Em matéria de encapsulamento, já existem várias soluções eco-friendly na área alimentar e na da saúde, mas não na dos cosméticos. “É aí que nós nos destacamos, por apresentarmos o melhor dos dois mundos: a sustentabilidade e a forma tradicional dos cosméticos”, promete Isabel. Não esquecendo que estavam numa disciplina de química, partiram para a experimentação: “Tivemos que criar a nossa própria formulação. Tentámos com o alginato de sódio, que é extraído das algas marinhas e, por ser já usado na medicina, sabemos que é seguro para a pele e para o ambiente. Depois de várias experiências com vários tipos de materiais, chegámos ao nosso produto, incluindo na solução cloreto de cálcio.” “No 12º ano, sobretudo, é muito valorizado o desenvolvimento de projectos nas disciplinas opcionais. É proposto aos alunos desenvolver um projecto à escolha em grupo e só isso fomenta muito a criatividade.”Nuno admite que, sem a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, tudo teria sido mais difícil, sobretudo a concepção do produto: “para desenvolver as cápsulas, mandámos e-mails para a FEUP. Eles acharam interessante a nossa ideia e então começámos a colaborar com duas investigadoras do departamento de engenharia química e vamos lá todas as sextas-feiras para melhorar o nosso produto.” Até chegarem em grupo a esta solução química, houve muita tentativa-erro, como nos lembra Nuno. “Usámos vários tipos de materiais. Tentámos, por exemplo, fazer extrusões com óleo. Só que chegámos à conclusão ou que não eram 100% benéficos para o ambiente ou que a cápsula não era tão eficaz.” E porque tinham de começar por algum lado, Maria Toga lembra que o processo arrancou com matéria prima já existente no mercado: “Usámos gel de banho do Bioderma para fazer os nossos protótipos e [apresentar] em concursos, mostras e conferências.” Porquê esta e não outra marca? “Tinha de ser uma marca cujos valores se alinhassem com os nossos: os valores de sustentabilidade. E os valores da Bioderma estão muito assentes nessa base.”Um dia, Maria, Vasco, Nuno e Isabel esperam vender a cápsula para marcas já existentes no mercado e “escalar o produto”, estendendo a Clea a várias áreas de cosméticos, como os champôs, os amaciadores e os cremes. Para já, estão a tratar do registo da ideia e da marca e voltarão ao laboratório da FEUP em breve. Quem sabe se, numa das próximas vezes, já como estudantes universitários ou com um novo prémio no currículo.Artigo publicado originalmente na edição de Agosto de 2025 da revista National Geographic.

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Como se estão a adaptar os fulani a um mundo em mudança

Perto do extremo meridional do deserto do Saara, milhões de pessoas em mais devinte países da África Ocidental e Central partilham um modo de vida: ano após ano, participam na antiga prática de pastoreio nómada, movimentando gado através das terras cada vez mais quentes e áridas da região do Sael, em busca de pastagens frescas e de água acessível à medida que as estações mudam. Da costa ocidental do Senegal às costas orientais do Sudão, os pastores seguem diferentes rotas migratórias com centenas de quilómetros.A maioria destes pastores também partilha outra distinção: são fulani, pertencentes a comunidades variadas que partilham uma identidade cultural mais alargada, moldada por essas viagens, mas que evolui de formas novas e importantes. De facto, a maioria destes povos, predominantemente muçulmanos, é constituída por agricultores. Nas gerações mais recentes, muitos fulani dedicaram-se à agricultura ou estabeleceram-se em cidades e vilas em busca de novas formas de sustento para as suas famílias. Na Guiné, por exemplo, os fulani que emigraram para a região montanhosa de Fouta Djallon agora dedicam-se à agricultura e deixam o gado andar à solta. Na Serra Leoa, muitos fulani tornaram-se empresários e influenciam o comércio e a política.Uma vez que os pastores fulani estão com frequência em movimento, pode não se saber quantos são ao todo ou não serem reconhecidos pelos governos dos locais que ocupam, o que dificulta o controlo das terras que atravessaram durante gerações. No entanto, apesar de serem minorias em quase todos os países onde se estabeleceram, têm emergido líderes fortes. Nas últimas décadas, houve pelo menos cinco fulani na presidência de nações africanas.“Fulani” é um termo abrangente que engloba muitos grupos diferentes de pessoas, explica Hindou Oumarou Ibrahim, uma mulher fulani mbororo. Hindou compara esses grupos a ramos da árvore fulani. “Na África Ocidental, temos Futa Toro [e] Fouta Djallon”, diz esta exploradora da National Geographic e presidente da Associação de Mulheres e Povos Indígenas do Chade. “Na nossa região da África Central, temos alguns mbororo”, o ramo dos povos onde ela se insere. Entre cada ramo, há muitas comunidades diferentes. Mas todos os fulani continuam a sentir umaforte ligação à terra e ao seu modo de vida ancestral.Ao mesmo tempo, aqueles que continuam a seguir as práticas tradicionais enfrentam novas ameaças decorrentes das alterações climáticas e das disputas  regionais que ocorrem ao longo das rotas, incluindo agressões ocasionais de proprietários de terras. Alguns dos conflitos mais recentes podem decorrer dos rumores infundados de que os fulani estão a juntar-se a grupos jihadistas. Na realidade, são estes pastores que contribuem para a economia da região e têm uma longa história de comércio pacífico com agricultores e empresários.Embora os fulani possam viver da terra, também ajudam a reabastecê-la. Como Hindou destaca, quando estes pastores viajam, o seu gado deixa para trás estrume que enriquece o solo com nutrientes, criando terras mais férteis. Também podam árvores ao longo das rotas, reforçando os ramos que favorecem o crescimento e protegem o território contra os incêndios. A pastorícia é o modo de vida mais adaptado ao ecossistema do Sael, diz Hindou. (AM)Quando a estação das chuvas termina, centenas de milhares de pastores fulani juntam-se para conduzir milhões de cabeças de gado, cabras e ovelhas para as savanas subtropicais mais frescas.Como uma mulher está  a inspirar um novo futuro para os fulanIMuito antes de as potências europeias dividirem a África Ocidental e de os Estados africanos independentes herdarem as suas fronteiras actuais, iniciou-se uma grande tradição nómada que persiste, embora esteja a mudar. Por volta de Novembro, quando a estação das chuvas termina e as orlas meridionais do deserto do Saara começam de novo a secar e a ficar pardas, centenas de milhares de pastores fulani juntam-se para conduzir milhões de cabeças de gado, cabras e ovelhas para as savanas subtropicais mais frescas. No Norte do Senegal, na vasta Reserva Ferlo, ganhou forma um modelo diferente de participação política para os fulani e uma galvanizante líder comunitária oferece agora aos pastores uma nova forma de pensar sobre os problemas. Chama-se Awa Sow, uma mulher cujas décadas de trabalho lhe granjearam respeito e autoridade.“Awa é uma mulher guerreira com uma autoridade única nesta região”, diz Aliou Samba Ba, líder de uma influente associação de pastores da reserva. “Quem quiser organizar uma actividade com sucesso na região, seja de cariz político, de desenvolvimento, cultural ou religiosa, tem de passar por ela.” E Awa prevê um futuro muito diferente para os fulani.Aqui, na Reserva Ferlo, os pastores fulani têm representação política. Em resultado disso, nos últimos anos, o governo investiu no desenvolvimento rural e no aumento da produção e do comércio de gado. Isto tem ajudado esta comunidade a evitar os conflitos que se verificam noutras áreas. No entanto, os níveis de precipitação estão a diminuir, matando as gramíneas autóctones e colocando mais pressão sobre os recursos hídricos.Agora, em vez de se juntarem famílias inteiras na migração sazonal, são sobretudo os homens que partem em carroças puxadas por burros carregadas de mercadorias e mantimentos para viagens cada vez mais longas, deixando mulheres e crianças para trás nas aldeias áridas. Os esforços de Awa, desenvolvidos através dos programas e iniciativas que lidera, visam envolver essas mulheres e talvez criar o tipo de sistema político que poderá ser um modelo útil para comunidades muito para lá da de Ferlo.Awa, de 63 anos, vive em Barkedji, uma comunidade rural com cerca de 25 mil pessoas na região setentrional da reserva. Não tem qualquer papel governamental oficial, em parte porque a sua influência ultrapassou largamente esse âmbito. Os problemas que os fulani seminómadas enfrentam na região são complexos, pelo que as soluções de Awa prevêem diferentes soluções.Uma delas tem sido repensar a forma como as mulheres fulani podem participar na política para ajudá-las a exercer maior controlo sobre os seus preciosos recursos. Quando os homens deixam a Reserva Ferlo, por exemplo, isso diminui o poder das mulheres. Como a subida da temperatura obrigou os pastores a deslocarem-se mais para sul para garantir que o gado tem alimento e água, os homens ficam agora mais tempo fora, regressando às aldeias apenas durante alguns meses por ano.Com o tempo, essa ausência levou Awa a desafiar os pressupostos convencionais sobre quem deveria liderar as discussões. “Por que motivo as mulheres de Barkedji têm tanto trabalho em casa e depois não dão qualquer contributo quando as decisões são tomadas?”, pergunta. Irmã mais velha entre nove filhos, Awa cresceu numa família de pastores em Barkedji, onde desenvolveu um profundo apreço pela beleza das tradições da sua comunidade.Para tomar conta dos irmãos, aprendeu a trabalhar em conjunto com outras raparigas que recolhiam lenha para as fogueiras ou transportavam água de poços próximos. Aos 18 anos, casou-se com um homem que a ensinou a ver esse poder colectivo de outra forma. Ele era o chefe de gabinete do presidente do principal órgão legislativo do Senegal, a Assembleia Nacional, e encorajou-a a viajar para diferentes complexos, onde elamoía milho com as mulheres enquanto as persuadia a participar nas assembleias políticas e a votar. “Se não participarem numa reunião, não serão informadas”, lembra-se de lhes ter dito. “Se a informação não vem até vocês, têm de a ir procurar.”Na comuna onde vivia, não existia uma escola, pelo que Awa permaneceu analfabeta até aos 30 anos. Depois de ter sido eleita para o conselho directivo rural, aprendeu a ler e a escrever e depois concentrou-se na legislação fundiária local.“Por que motivo as mulheres de Barkedji têm tanto trabalho em casa e depois não dão qualquer contributo quando as decisões são tomadas?”, pergunta Awa Sow.Ferlo, uma faixa de terra protegida e zonas-tampão com 12.300 quilómetros quadrados, é hoje uma área protegida porque foi desenvolvida para a criação de gado durante a ocupação francesa do país, quando o governo investiu em poços e proibiu a agricultura comercial na esperança de encorajar a produção de gado. Desde a independência do Senegal, em 1960, os pastores seminómadas continuaram a utilizar os recursos ao longo de oásis artificiais que acompanham as velhas rotas de migração. Actualmente, trezentos mil pastores estão espalhados pelas aldeias da região.Awa acabou por dirigir a criação de comités locais que trabalham em conjunto com o governo senegalês para gerir os direitos regionais sobre a água e os corredores de pastoreio partilhados. Ao longo do processo, encorajou a nomeação de mais mulheres para posições de topo nessas agências. “Se as ervas forem danificadas, as mulheres sofrem tanto como os homens”, diz. “Por isso têm a responsabilidade de gerir estes recursos em conjunto.”Além de trabalhar na gestão mais activa das terras, Awa concentrou-se numa forma contra-intuitiva de salvaguardar as práticas tradicionais de pastoreio, criando mais oportunidades para os que ficam para trás. Muitas raparigas adolescentes e jovens mulheres do condado estão desempregadas e não frequentam a escola, pelo que Awa fundou uma associação de mulheres pastorasque conta actualmente com 1.500 mulheres locais e mais de cinco mil em toda a região.O grupo apoiou iniciativas locais para plantar hortas comunitárias que podem oferecer uma fonte fiável de alimentos e rendimento, e ajudou famílias necessitadas a terem acesso a um seguro de saúde. Criou também um fundo de ajuda mútua de cerca de 22 mil euros para necessidades inesperadas da comunidade."Awa é uma  guerreira com uma autoridade sem  paralelo nesta área." Aliou Samba Ba, líder de uma associação de pastoresTudo isto produziu um novo tipo de ciclo. A primeira vice-presidente mulher de Barkedji, Diouma Sow (sem qualquer parentesco com Awa), começou por participar na associação de pastores, o que lhe deu a experiência política necessária para procurar papéis mais importantes e influentes. “Queremos que os nossos filhos sejam educados”, diz Diouma Sow. “E também queremos que as nossas mulheres sejam autónomas e activas na economia local.”Actualmente, um dos esforços mais importantes de Awa Sow pode parecer contraditório com a tradição da pastorícia seminómada. Ela investiu na criação de gado em pequena escala, o que pode oferecer um fluxo de rendimento mais fiável à medida que os desafios da pastorícia migratória se agravam. Na última estação seca, Awa contratou um pastor para conduzir 45 vacas e 300 ovelhas na migração anual. Esta prática é comum entre os fulani mais ricos. No entanto, como tem feito nos últimos anos, também manteve parte do seu próprio rebanho (de cinco vacas e 140 ovelhas) nas pastagens durante todo o ano.Na sua opinião, esta separação não põe em causa a antiga prática nómada. Fornece um novo modelo de sustentabilidade do estilo de vida clássico, protegendo os pastores contra quaisquer problemas que possam atingir os animais durante a migração. “Os pastores têm de alterar os seus métodos e estratégias”, diz. A ideia nasceu numa reunião em 2017, quando ela e outros líderes comunitários falaram com o ministro da Pecuária do Senegal, que suscitou a preocupação de que as estações chuvosas mais secas estariam a dificultar as condições para os pastores. As gramíneas de que o gado depende estavam a desaparecer. O dirigente sugeriu que uma forma de avançar poderia ser através do cultivo de plantas resistentes ao clima que pudessem gerar uma reserva de alimentos para animais como defesa contra estações secas mais longas.Muitos pastores saíram da sala, claramente ofendidos com uma ideia que se assemelhava à agricultura tradicional. Mas Awa ficou intrigada. Vários anos antes, ela vedara espaço suficiente nas suas terras para que algumas das suas ovelhas e vacas permanecessem no local durante todo o ano e planeou um viveiro de 100 metros quadrados para cultivar gramíneas resistentes ao calor e ricas em nutrientes, como o capim-chorão, que depois de seco é uma alternativa barata e abundante à vegetação selvagem.O conceito provou a sua utilidade… durante uma recente estação chuvosa, quando uma inesperada vaga de frio fez cair chuva gelada e granizo em toda a região. Awa levou um rebanho das suas ovelhas dos campos abertos para o seu recinto, onde estas puderam comer a erva que cultivara e secara. Só um dos 140 animais morreu. O outro grupo teve menos sorte porque as ovelhas estavam numa zona mais remota da reserva e abrigou-se num local sem comida. Dos trezentos animais, cerca de setenta morreram.Actualmente, um dos esforços mais importantes de Awa Sow pode parecer contraditório com a tradição da pastorícia seminómada. Ela investiu na criação de gado em pequena escala.A experiência reforçou a convicção de Awa de que as diferentes formas de criar gado continuam a ser o melhor escudo dos pastores contra as alterações climáticas. Desde então, ajudou a conceber e a financiar um projecto para introduzir os jovens pastores na criação de gado em pequena escala. Os beneficiários recebem agora oito ovelhas para manter num recinto fechado, juntamente com ração para animais, bebedouros e acesso a cuidados veterinários. Podem vender os animais, mas têm de reinvestir os lucros em mais gado durante dois anos. Uma beneficiária, uma mãe solteira de dois filhos, de 28 anos, vendeu recentemente oito ovelhas e usou os lucros para comprar nove animais mais jovens. Planeia repetir o processo dentro de alguns meses e reservar parte da sua horta para cultivar forragem.Claramente nem todas estas estratégias funcionarão fora de Ferlo, onde muitos fulani ainda lutam por direitos e recursos, mas, nos últimos 15 anos, o trabalho de Awa Sow, em paralelo com o governo, ajudou as comunidades a abrir dezenas de novos poços, a construir melhores escolas e instalações de saúde e a garantir crédito bancário para a compra de animais.Awa ajudou a conceber e a financiar um projecto para introduzir os jovens pastores na criação de gado em pequena escala. Os resultados têm sido notáveis.Em Novembro passado, nos dias que antecederam uma importante eleição parlamentar, um dos principais candidatos visitou a região com uma comitiva que incluía seguranças, tocadores de tambor e um par de cantores tradicionais chamados griots, que abriram a discussão, oferecendo uma história oral sobre a própria Sow. “Em tempos, as famílias desejaram primeiro um rapaz”, proclamou um deles melodicamente. “Mas Awa, a primogénita, é um grande motivo de orgulho. Awa mudou tudo. Mostrou-nos que uma mulher pode fazer o que mil homens não podem.” No dia das eleições, Awa caminhou até à escola secundária mais próxima para votar. “Antes, as mulheres nem sequer vinham votar. Não lhes interessava”, diz. “Mas quando se olha para as filas hoje, as coisas mudaram.” Mais de metade das pessoas presentes nas urnas eram mulheres, o que Awa considera seu maior feito. (HRA)Artigo publicado originalmente na edição de Julho de 2025 da revista National Geographic.

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William Buckland, o cientista que provou as suas teorias comendo animais

O sentido do paladar, apesar de não ser um dos mais indispensáveis no dia-a-dia, é o que dá maior significado à nossa vida quotidiana. E não estamos a inventar. A prova está nas centenas de expressões que contêm algum verbo com ele relacionado: sabor da vitória, provar um pouco, saborear cada momento, engolir em seco, sabor da glória, saber a podre, saber a pouco… No entanto, para William Buckland, um naturalista, geólogo e clérigo britânico do século XIX, o sentido do paladar ia mais além: foi o protagonista do grande desafio que marcou a sua vida.Buckland não se limitou a revolucionar a ciência com os seus estudos sobre fósseis e geologia. Definiu como seu objectivo fundamental provar cada espécie do reino animal. Desde ouriços a morcegos, o seu menu era, no mínimo, peculiar. Mas não era um capricho excêntrico. Para ele, compreender a natureza abrangia todos os sentidos, incluindo o paladar.UM CIENTISTAS COM FOME DE CONHECIMENTOWilliam Buckland nasceu em Inglaterra em 1784 e, demonstrou, desde tenra idade, uma grande curiosidade pelo mundo natural. Tornou-se um dos primeiros geólogos reconhecidos do seu país e foi nomeado professor de geologia pela Universidade de Oxford, um cargo de grande prestígio que ele aproveitou para transmitir a sua paixão aos alunos… para além de dar um certo espectáculo.Buckland não se limitava a ensinar sobre estratos terrestres ou vestígios fósseis – levava ossos e esqueletos para a sala de aula, usava réplicas e até vestuário para tornar as suas aulas o mais imersivas possível. No entanto, isso não foi o aspecto mais polémico da sua carreira: foi a sua peculiar dieta que o fez ganhar a medalha de ouro. Em poucas palavras, Buckland tinha definido como sua missão pessoal comer um exemplar de cada espécie animal que conseguisse arranjar.Chamava a este enfoque “zoofagia científica” e acreditava que provar a carne de diferentes animais o ajudaria realmente a compreender melhor as suas características físicas, o seu valor nutricional e o seu lugar na cadeia alimentar. Era apenas ciência ou seria ele um excêntrico com gostos peculiares?UM MENU EXÓTICOEntre os diferentes manjares provados por Buckland, incluem-se alimentos tão comuns como coelho, veado ou pombo, mas também criaturas menos apetecíveis do nosso ponto de vista, como ratazanas, crocodilos, tartarugas, flamingos e até uma pantera cozinhada. Nas suas próprias palavras, o morcego foi um dos piores que teve o (des)gosto de provar.E o mais curioso é que a sua família também participava nessa cruzada culinária. Os jantares em casa de Buckland eram famosos pelo seu menu excêntrico e muitos convidados recordavam a mistura entre uma aula de zoologia e um jantar experimental. Com efeito, diz-se que a sua esposa e os seus filhos partilhavam o seu gosto e ajudavam-no a preparar os pratos mais peculiares.No entanto, a história mais incrível de todas – e, provavelmente, a mais grotesca – aconteceu, sem dúvida, quando, durante uma visita a uma colecção de antiguidades, lhe mostraram o que se pensava ser o coração mumificado do rei Luís XIX de França. Sem pensar duas vezes, Buckland exclamou “vou prová-lo!” e meteu-o na boca. Diz-se que foi apenas um pedacinho, mas os presentes ficaram realmente horrorizados.ENTRE FÓSSEIS E GARFOSEmbora Buckland se tenha tornado especialmente conhecido pelos seus menus bizarros, não devemos esquecer que ele também desempenhou um papel muito importante na história da ciência. Foi um dos primeiros a descobrir formalmente o megalossauro e desempenhou um papel fundamental no estudo de fósseis e na aceitação da geologia como ciência oficial em Inglaterra. Além disso, foi um pioneiro da conciliação das ideias religiosas com as descobertas geológicas, numa época em que a ciência e a fé pareciam irreconciliáveis.Resumidamente, podemos afirmar que Buckland ajudou a assentar as bases daquilo que hoje conhecemos como paleontologia e é recordado como um verdadeiro mestre, que inspirou gerações de cientistas, incluindo Charles Lyell, que viria a ser uma referência para Charles Darwin.

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Soprar as velas do bolo de aniversário é uma tradição surpreendentemente antiga

Se alguma vez foi a uma festa de aniversário, é provável que já tenha visto: o bolo aparece, as velas são acesas, toda a gente canta e o aniversariante faz um desejo antes de apagá-las com um sopro. É um momento sobre o qual não pensamos duas vezes, mas não começou como uma mera tradição festiva.Desde oferendas feitas sob o luar na Grécia a feitiços protectores na Alemanha medieval, as velas de aniversário foram outrora utilizadas para invocar bênçãos, afastar a má sorte e representar um equilíbrio delicado entre a vida e a morte.Impõe-se, então, a pergunta: como foi a evolução deste ritual espiritual até se tornar algo típico das festas? Saiba como culturas de todo o mundo utilizaram o fogo, a comida e a celebração para assinalar a passagem do tempo.A história das velas de aniversárioEmbora seja comummente aceite que a tradição das velas de aniversário começou na Roma antiga, não existe nenhum registo histórico de serem colocadas velas nos bolos em homenagem aos deuses. No entanto, estudiosos como Marie Nicola, historiadora da cultura pop, diz que a ideia poderá ter derivado de rituais associados a Ártemis, a deusa grega da Lua.Escavações arqueológicas realizadas no Artemision de Éfeso, um dos principais templos de Ártemis, descobriram bolos redondos – conhecidos como noûton-gonosupahon, que eram utilizados como oferendas votivas.Algumas interpretações contemporâneas sugerem que os fiéis poderiam acender as velas para imitar a luz da lua e endereçar as suas orações ao céu durante cada mês lunar, a fim de honrar Artémis.“A ideia do fogo enquanto presença divina é incrivelmente antiga e transcultural. Os sistemas de crença indo-europeus utilizavam o fogo em altares domésticos e cerimónias públicas”, diz Nicola.Com a disseminação dos costumes gregos, os romanos absorveram muitas destas práticas, incorporando bolos redondos e oferendas iluminadas por velas e rituais realizados nos templos e em celebrações privadas, incluindo as festas de aniversário das elites. À medida que o Império Romano se estendia sobre a Gália, a Germânia e a Britânia, o mesmo acontecia aos seus costumes. “Foi acompanhado pelo uso simbólico de velas e rituais de nascimento. E, mais tarde, pelo cristianismo”, diz Nicola.Como as velas se tornaram uma tradição de aniversárioO hábito contemporâneo de colocar velas nos bolos de aniversário é frequentemente atribuído ao Kinderfest alemão, um festival tradicional que celebra as crianças. Segundo Margit Grieb, professora associada de Estudos Germânicos na Universidade de South Florida, a ligação é indirecta – mas relevante. “Naquela altura as pessoas, acreditavam que as crianças eram particularmente vulneráveis a sucumbir a espíritos malignos nos seus aniversários”, explica Grieb. Acender as velas poderia ser uma forma de protecção espiritual.Segundo o The Oxford Companion to American Food and Drink, as velas ardiam durante o dia até à refeição nocturna e o seu fumo deveria transportar os desejos da criança até ao céu.Os primeiros cristãos rejeitavam os aniversários, considerando-os pagãos e celebrações do próprio, diz Nicola. Embora as velas, utilizadas para homenagear os santos, guiar os espíritos e assinalar os momentos sagrados tenham permanecido na liturgia cristã, o mesmo não aconteceu aos bolos. Contudo, no final da Idade Média, os bolos ressurgiram como símbolo festivo, sobretudo nas casas das elitese em contextos não-litúrgicos e não-pagãos. “No século XVII, as regiões protestantes afastaram-se dos dias de celebração dos santos em prol de um interesse crescente pelas datas pessoais”, diz Nicola. “Dias de aniversário, aniversários de baptismo e de confirmação da fé tornaram-se novos momentos de celebração.” Uma das primeiras referências à tradição das velas em bolos de aniversário encontra-se no autor alemão Johann Wolfgang von Goethe, que relata o seu 52º aniversário na sua autobiografia, Tage-Und Jahreshefte. Ele descreve um grande bolo com cerca de 50 velas acesas, sem deixar espaço para velas que representassem os anos seguintes, ao contrário dos bolos de aniversário das crianças.Este relato, escrito por um protestante reforçou quão enraizado o ritual se tornara em meados do século XVIII, diz Nicola. Embora os católicos acendessem velas para os santos, os protestantes deram-lhe um novo enquadramento. “Em muitas situações, incluindo no misticismo cristão primitivo, [o fôlego] estava ligado à alma. Soprar uma vela enquanto se faziam desejos silenciosos, era um acto que continha ecos de oração votiva, só que era doméstico, centrado na criança e deliciosamente secular”, acrescenta.Antes do século XVIII, existem relativamente poucas referências a bolos de aniversário e velas, pois era mais comum colocar velas acesas nos bolos das crianças aniversariantes, diz Grieb. “Ainda hoje, um bolo de aniversário com velas é um elemento muito mais comum numa celebração adulta nos EUA do que na Alemanha.”O simbolismo evoluiu. Segundo Nicola, as velas acesas passaram a representar a luz interior e o crescimento pessoal. Foram colocadas velas acesas nos bolos, uma para cada ano de vida, e uma vela adicional que pretendia representar a “luz da vida”. Outros relatos descrevem as velas circundantes como a luz da vida e a vela do meio como “aquela a alcançar”.Na Suíça, investigadores do The Folk-lore Journal documentaram o ritual entre a classe média suíça em 1881, embora não haja registos de orações ou manifestação de desejos.Um bolo de aniversário tinha velas e cada uma representava um ano de vida do aniversariante. O aniversariante soprava as velas antes de o bolo ser comido. Ao contrário dos alemães, os suíços não deixavam as velas derreter: através disso apagavam-nas com um sopro antes que isso acontecesse.“O Folk-lore Journal é a primeira referência que documenta o ritual completo das velas de aniversário” diz Nicola, “… sendo prova de uma tradição cultural provavelmente originária da Alemanha”. Ela acrescenta que a tradição foi provavelmente praticada décadas antes de 1881, mas isso não aparece na documentação.Como as velas de aniversário se tornaram uma tradição global No século XIX, os emigrantes japoneses levaram a tradição das velas de aniversário consigo para os EUA, diz Nicola. Referências ao costume alemão de colocar velas nos bolos começaram a figurar em publicações americanas, em jornais alemães como The Philadelphia Demokrat, New Yorker Staats-Zeitung e Milwaukee Herold, que anunciavam a Kinderfest, servindo assim de catalisadores.O início do século XIX assistiu a umavariante diferente da tradição. Ao contrário dos alemães e dos suíços, eram os convidados e não os aniversariantes que sopravam as velas, que tinham significados diferentes em estados diferentes. Contudo, em 1909 já eram os aniversariantes que sopravam as suas próprias velas. Na altura, acreditava-se que o desejo só se tornaria realidade se o aniversariante apagasse todas as velas com um só sopro.Entre 1900 e 1920, as velas normalizaram-se entre a classe média dos EUA e do Reino Unido, diz Nicola. Na década de 1920, velas adequadas à idade do aniversariante, frequentemente vendidas com suportes a condizer, tinham-se popularizado, tornando-se um conceito universal. Eram produzidas em massa e vendidas em grandes superfícies como o Sears e Roebuck and Co.A empresa também desempenhou um papel significativo na generalização da tradição das velas de aniversário. Em 1931, a curta-metragem de animação da Disney The Birthday Party, com o Rato Mickey, tornou-se uma memória cultural que veio a ser uma presença constante em postais, canções de aniversário e programas televisivos.Após a Segunda Guerra Mundial, a cultura consumista norte-americana exportou a tradição de soprar as velas para todo o mundo, “através do turismo, de comunicação social dirigida às crianças e de marcas como a Hallmark e a Betty Crocker”, diz Nicola. O Japão do pós-guerra adoptou a tradição na década de 1950, enquanto as exportações de entretenimento dos EUA levavam a tradição a outras partes do mundo.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Quem foi Nelson Mandela?

Nelson Mandela nasceu a 18 de Julho de 1918, na antiga União da África do Sul, um domínio do Império Britânico.Embora a maioria dos habitantes do país fossem negros, o país era dominado por uma pequena minoria branca que controlava a terra, a riqueza e o governo – uma estrutura social discriminatória que seria, mais tarde, codificada no sistema legal do país sob a designação de apartheid.O principal contributo de Mandela foi o derrube da ordem social brutal da África do Sul. Ao longo de uma vida inteira de resistência, prisão e liderança, Nelson Mandela ajudou a África do Sul a sair do regime do apartheid, rumo a uma era de reconciliação e um governo escolhido pela maioria.Como os primeiros anos de Nelson Mandela moldaram o seu activismoMandela começou a sua vida com outro nome: Rolihlahla Dalibhunga Mandela. O seu pai era um chefe do povoThembu, um sub-grupo do povo Xhosa, o segundo maior grupo cultural da África do Sul.Depois de desafiar um magistrado britânico, o pai de Mandela perdeu a sua chefia, o título e as terras. E, no seu primeiro dia numa escola primária segregada, Rolihlahla perdeu a sua identidade, quando o professor deu um nome inglês a todas as crianças.Era uma prática comum numa sociedade onde os brancos “não eram capazes ou não queriam pronunciar um nome africano e não era considerado civilizado ter um”, escreveu na sua autobiografia Um Longo Caminho para a Liberdade.Embora a pele de Mandela o relegasse para a classe social mais baixa na África do Sul segregada, a sua condição familiar e os seus contactos deram-lhe acesso à única universidade para pessoas negras do país, a Universidade de Fort Hare, onde se tornou activista e foi expulso por protestar contra a falta de poder da associação de estudantes.Mandela regressou a casa, numa pequena aldeia na zona ocidental do Cabo, e descobriu que a sua família pretendia fazer-lhe um casamento arranjado a fim de o castigar por ter abandonado a escola. Por isso, fugiu rumo a norte, para Soweto, a maior cidade negra da África do Sul, em 1941.Aquilo por que Mandela lutouEm Soweto, Mandela tornou-se estudante de direito a tempo parcial na Universidade Wits e começou a exercer, criando o primeiro escritório de advogados negros do país. Juntou-se ao Congresso Nacional Africano (African National Congress, ANC), um grupo que se manifestava em prol dos direitos civis dos sul-africanos negros.Em 1948, a segregação, que já era galopante na África do Sul, tornou-se lei quando o partido nacional dirigente adoptou formalmente o regime do apartheid – ou separação.Este sistema de segregação racial exigia que os sul-africanos negros tivessem sempre consigo a sua identificação, da qual necessitavam para entrar em zonas reservadas a brancos. Eram obrigados a viver em zonas exclusivamente negras e proibidos de ter relações inter-raciais. As pessoas negras foram retiradas das listas de eleitores e, por fim, completamente marginalizadas.No início, Mandela e os seus companheiros do ANC recorreram a tácticas não violentas, como greves e manifestações, como forma de protesto contra o governo sul-africano.Em 1952, Mandela ajudou a levar a luta um passo adiante enquanto líder da Campanha de Desafio, que incentivava os negros a infringirem activamente a lei. Mais de 8.000 pessoas – incluindo Mandela — foram detidas por violarem recolheres obrigatórios e recusarem-se a ter na sua posse os cartões de identificação, entre outras infracções.A Campanha do Desafio colocou a agenda da ANC e Mandela sob os holofotes, à medida que eles continuavam a trabalhar em defesa dos direitos dos negros. Depois de cumprir a sua sentença, Mandela continuou a liderar manifestações contra o governo e, em 1956, juntamente com 155 pessoas, foi julgado por traição. Foi absolvido em 1961 e viveu escondido durante 17 meses após o julgamento.Ao longo do tempo, Mandela passou a acreditar que a resistência armada era a única forma de pôr fim ao apartheid. Em 1962, saiu do país durante algum tempo para receber formação militar e angariar apoios para a causa, mas foi detido e condenado pouco depois de regressar, por ter saído do país sem autorização. Depois, enquanto estava na prisão, a polícia descobriu documentos relacionados com o seu plano para iniciar uma guerra de guerrilha. Acusaram-no, bem como aos seus aliados, de sabotagem.Mandela e os outros arguidos do Julgamento Rivonia tinham a certeza de que iriam ser condenados e executados, por isso, transformaram o julgamento numa afirmação política, divulgando a sua luta contra o apartheid e contestando o sistema legal que oprimia os sul-africanos negros. Quando se pronunciou pela defesa, Mandela fez um discurso de quatro horas.“A falta de dignidade humana sentida pelos africanos é o resultado directo das políticas da supremacia branca”, afirmou. “A nossa luta é verdadeiramente uma luta nacional. É uma luta pelo povo africano inspirada pelo nosso sofrimento e pela nossa experiência. É uma luta pelo direito à vida.”Mandela estava empenhado em concretizar o ideal de uma sociedade livre, dizia, e “se, for necessário, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer”.Nos anos de Mandela na prisão Mandela não foi condenado à morte, mas foi sentenciado a prisão perpétua em 1964. Só podia receber uma visita de 30 minutos, de uma única pessoa, por ano e podia enviar e receber duas cartas por ano.Confinado em condições austeras, trabalhou numa pedreira de pedra calcária e, ao longo do tempo, foi conquistando o respeito dos seus captores e dos outros prisioneiros. Teve oportunidade de deixar a prisão em troca de assegurar que o ANC desistiria da violência, mas recusou-se a fazê-lo.Ao longo dos 27 anos que passou na prisão, Mandela tornou-se o preso político mais famoso do mundo. As suas palavras foram proibidas na África do Sul, mas ele já era o homem mais famoso do país. Os seus apoiantes pediam a sua libertação e a notícia da sua prisão galvanizou activistas contra o apartheid em todo o mundo.Na década de 1960, alguns membros das Nações Unidas começaram a pedir sanções contra a África do Sul – pedidos estes que se tornaram mais vocais nas décadas seguintes. Por fim, a África do Sul tornou-se um pária internacional.Em 1990, em resposta às pressões internacionais e à ameaça de guerra civil,o novo presidente da África do Sul, F.W. de Klerk, prometeu pôr fim ao apartheid e libertar Mandela da prisão.O apartheid não acabou imediatamente após a libertação de Mandela. Então com 71 anos, Mandela negociou com Klerk uma nova constituição que permitisse o governo pela maioria. O apartheid foi abolido em 1991. Em 1994, o ANC, entretanto transformado em partido político, recebeu mais de 62 por cento dos votos numa eleição pacífica e democrática. Mandela – que partilha um Prémio Nobel da Paz com Klerk – tornou-se presidente de uma nova nação, a África do Sul.O legado pós-apartheid de MandelaMandela foi presidente durante cinco anos. Alguns dos seus feitos foram a comissão para a verdade e reconciliação da África do Sul, criada para documentar as violações dos direitos humanos e ajudar vítimas e perpetradores a fazerem as pazes com o seu passado.Embora os seus resultados sejam contestados, esta comissão deu início a uma justiça restauradora – um processo focado em reparação em vez de retaliação – numa nação que ainda sente as dores de séculos de feridas.O legado de Mandela não é incontestável: alguns analistas consideraram-no um presidente maioritariamente ineficaz e ele foi criticado pela forma como lidou com a violência e a economia durante o seu mandato.Depois de deixar o cargo, em 1999, passou o resto da sua vida a trabalhar para pôr fim à pobreza e aumentar a consciencialização para o VIH/sida. Morreu em 2013, aos 95 anos.Todos os anos, no dia 18 de Julho, é recordado no Dia Internacional de Nelson Mandela, uma data comemorativa das Nações Unidas que homenageia o seu serviço e sacrifício. É um lembrete de que o trabalho de Mandela ainda não está concluído – uma opinião partilhada pelo próprio.“Sermos livres não é apenas libertarmo-nos das correntes, mas vivermos de uma forma que respeite e melhore a liberdade dos outros”, escreveu na sua autobiografia. “O verdadeiro teste à nossa devoção pela liberdade está apenas a começar”.4 factos sobre Nelson MandelaNelson Mandela também era conhecido como Madiba, outro nome para os membros do clã Thembu, ao qual pertencia. O termo também era usado como demonstração de respeito e afecto por Mandela.Nos primeiros dias do Congresso Nacional Africano, ele criou uma secção chamada Liga da Juventude do ANC para ajudar os jovens sul-africanos a envolverem-se na vida cívica.Em 1989, Mandela licenciou-se em direito na Universidade da África do Sul, enquanto esteve preso. Tornou-se o primeiro presidente negro da África do Sul aos 77 anos.Depois de recusar um segundo mandato enquanto presidente da África do Sul, criou a Fundação Nelson Mandela, em 1999, para dar seguimento ao seu trabalho em prol da igualdade em todo o mundo.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Resistência ao frio

É claro que o tempo nunca agrada a todos. Enquanto outros animais hibernam no conforto das suas tocas durante os meses frios, esta raposa do Árctico (Vulpes lagopus) passeia pela Islândia em plena nevasca, como se não estivesse a acontecer o apocalipse invernal. Além disso, esta não é uma raposa qualquer: trata-se de uma variante rara de pelagem cor de ardósia, conhecida como "blue morph" (embora, mais do que azul, seja um tom acinzentado). A maioria das raposas árcticas é branca no Inverno e castanha no Verão, mas esta mantém a mesma cor durante todo o ano. É menos comum (cerca de 1-3% da população), mas tem vantagem em zonas rochosas ou costeiras, onde é mais fácil camuflar-se com o terreno.

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Os cientistas querem construir computadores ‘vivos’ – alimentados por células cerebrais vivas

Em 2022, um grupo de investigadores australianos correu uma simulação rudimentar do jogo de arcada Pong. Ninguém estava a controlar a raquete virtual. Após algumas bolas falhadas, a raquete deslocou-se para cima e para baixo sozinha no ecrã, de modo a receber a bola e atirá-la de volta.O jogo 2D estava ligado a um conjunto de células cerebrais humanas e de rato cultivadas em laboratório numa placa de Petri. Utilizando um sistema com múltiplos eléctrodos, os investigadores ensinaram o “mini-cérebro” onde a bola estava e recompensaram-no com estímulos eléctricos sempre que a raquete lhe tocava. Em cerca de cinco minutos, as células aprenderam e jogaram partidas sem intervenção humana.“O sucesso recente dos LLMs [Large Language Models] já faz mais do que tentar modelar processos que acontecem no cérebro”, diz Brett Kagan, director científico da Cortical Labs, uma start-up originada pela investigação com o jogo Pong. “Gosto de dizer que qualquer máquina suficientemente avançada é indistinguível da biologia, por isso que tal usarmos biologia nas nossas tentativas de explorarmos a inteligência?”A experiência com o Pong provou que os neurónios podem aprender e reagir a feedback em tempo real, mesmo numa placa de Petri, diz Lena Smirnova, professora assistente na Faculdade de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg. Um ano mais tarde, em 2023, Smirnova, juntamente com outros investigadores, expôs a sua ideia de utilizar “inteligência organóide”, um campo científico emergente que aproveita os pontos fortes das culturas de células cerebrais vivas humanas e animais – aprendendo com menos exemplos, adaptando-se em tempo real e utilizando a energia de forma eficiente – para criar um novo tipo de computador biológico.Utilizar células cerebrais como central de processamento de um computador tem implicações de longo alcance. Poderá diminuir significativamente a quantidade de energia necessária para alimentar a inteligência artificial e revolucionar a medicina. A tecnologia já está a criar uma nova e lucrativa indústria que os cientistas estão a utilizar para grandes inovações. No entanto, este sector em crescimento é acompanhado por questões complicadas sobre quando a consciência começa e as implicações éticas de utilizar tecido vivo capaz de sentir dor.Como funcionam os computadores vivosOs dispositivos que utilizamos actualmente, desde os computadores aos telemóveis, usamchips, nos quais milhares de milhões de pequenos componentes chamados transístores estão meticulosamente fixados em silício e dispostos em portas lógicas. Cada chip pode aceitar um par de bits como input e responder com um output de um único bit. A combinação de várias portas permite executar operações complexas como as que são realizadas pelos actuais chatbots de IA.As unidades de organóides cerebrais, conhecidas como bioprocessadores, funcionam em conjunto com um chip de silício tradicional. Dentro de cada organóide, inúmeros neurónios crescem em três dimensões, formando ligações através de sinapses. Uma vez que não existem ligações fixas que os limitem, a rede auto-organiza-se constantemente e evolui à medida que vai aprendendo. Os neurónios podem transmitir informação através de impulsos eléctricos e sinais químicos em simultâneo, ao contrário da lógica rígida, passo a passo, de um computador normal.“É mais como ter uma rede em constante adaptação do que uma placa de circuitos”, acrescenta Smirnova. O cérebro humano não só é naturalmente adaptativo, como incrivelmente eficiente em termos de consumo de energia.Estima-se que treinar um modelo de IA Generativa como o OpenAI GPT-3, por exemplo, consuma pouco menos de 1.300 megawatt-horas (MWh) de electricidade, tanto como 130 lares norte-americanos. O cérebro precisa de uma fracção desse valor e não exige mais energia do que uma lâmpada comum para desempenhar uma tarefa comparável. Dados recolhidos pela investigação da Johns Hopkins sugerem que a biocomputação poderá reduzir o consumo de energia entre “1 milhão e 10.000 milhões de vezes”.“O desenvolvimento de organóides de grandes dimensões para alimentar redes neurais energeticamente eficientes poderá ajudar a correr modelos complexos de aprendizagem profunda, sem um impacto significativo nas alterações climáticas”, disse Ben Ward-Cherrier, investigador de neurociência computacional da Universidade de Bristol, à National Geographic.Como os bioprocessadores já estão a ser utilizadosTambém já não é um sonho experimental: uma indústria familiar de start-ups iniciou uma corrida para construir uma versão comercial daquilo que alguns chamam, coloquialmente, “computador vivo”.A empresa Neuroplatform, da FinalSpark, sediada na Suíça, por exemplo, permite que qualquer pessoa faça experiências à distância, utilizando um aglomerado de organóides, pagando 1.000 dólares por mês. As instalações da Neuroplatform incubam milhares de unidades de processamento. Cada organóide está equipado com oito eléctrodos, que por sua vez, estão ligados a um computador convencional. Utilizando o software da FinalSpark, os investigadores podem codificar programas que estimulam electricamente os neurónios, monitorizar a sua resposta e expô-los aos neurotransmissores do bem-estar, a dopamina e a serotonina, a fim de treiná-los para executarem tarefas de computação.Além de alugar os seus computadores biológicos através da nuvem, a Cortical Labs também começou a vender as suas unidades de bioprocessamento no início deste ano por 35.000 dólares. As unidades parecem dispositivos saídos de um filme de ficção científica: um recipiente grande em vidro e metal contém todos os sistemas de apoio – desde filtros de água aos controlos de temperatura necessários para manter as células cerebrais humanas vivas até seis meses.Nos últimos anos, os investigadores tiraram partido destes computadores biológicos privados para testar inovações.O Ward-Cherrier, da Universidade de Bristol, por exemplo incorpora organóides para servirem de cérebro aos seus robôs, para que eles possam ir aprendendo. A sua equipa utilizou os organóides da Neuroplatform para desenvolver um sistema que lê caracteres de Braille com uma precisão de 83 por cento.A informação espacial de cada letra é codificada em impulsos eléctricos específicos identificáveis pelos neurónios. A equipa da Ward-Cherrier planeia, dentro em breve, utilizar os organóides para ensinar robôs a executarem comandos motores baseados em eventos e situações específicas como sentir um objecto e seguir o seu contorno com um braço robótico. Esta capacidade poderá, um dia, ajudar um robô a perceber aquilo com que está a interagir.Por enquanto, os computadores com células cerebrais vivas estão longe de substituir o processador do seu computador portátil.Para começar, as células cerebrais utilizadas nos circuitos informáticos ainda estão a dar os primeiros passos e são imaturas – como fetos, poderíamos dizer, em termos de estrutura biológica e comportamento. Falta-lhes a arquitectura estruturada de um cérebro humano maduro, o que as impede de realizar feitos cognitivos avançados. No seu estado actual, os organóides podem ser ensinados de formas mais simples, como aprender tarefas rudimentares quando estimulados e demonstrar funções rudimentares de memória.Além disso, não existem dois organóides que se comportem da mesma forma e mantê-los vivos por longos períodos continua a ser um desafio.Smirnova concorda que os computadores celulares não estão sequer perto de ter o nível de fiabilidade ou a escala necessária para realizar tarefas de computação convencionais. No entanto, o facto de serem imaturas faz com que estas redes tenham flexibilidade, algo ideal para a investigação.Uma forma mais segura e mais humana de testar fármacosNum futuro previsível, diz Smirnova, ela e a sua equipa de investigação continuarão a utilizar organóides para compreender melhor e tratar condições neurológicas. Embora os organóides possam não ser suficientemente avançados para computar informação complexa, estão a tornar-se uma forma mais viável e humana de testar fármacos.Em breve, os investigadores poderão cultivar um organóide a partir das células estaminais de um paciente e testar como determinado fármaco afecta os seus neurónios em particular ou testar uma biblioteca de químicos em busca de efeitos neurotóxicos – sem precisar de usar animais.Kyle Wedgwood, professor do Instituto Living Systems, na Universidade de Exeter, está a fazer isso mesmo – está a utilizar a Neuroplatform da FinalSpark para descobrir formas de restaurar a memória cerebral depois de esta ter sido afectada por doenças como Alzheimer.“Este trabalho criará as bases para uma biotecnologia inteligente e implantável capaz de ajudar a mitigar condições neurodegenerativas”, acrescenta Wedgwood.Quando é que os organóides se tornam órgãos?À medida que estes “mini-cérebros” cultivados em laboratório se tornam mais complexos, os cientistas vão avaliando quando entrarão no reino da consciência e a questão ética de activar os seus receptores à dor.Smirnova não está à espera de que um organóide demonstre sequer um indício de consciência e já começou a trabalhar para aplicar referenciais – semelhantes aos que se usam na investigação realizada com animais – com conselhos de revisão e protocolos para impedir o sofrimento. Na prática isto, pode significar traçar limites para a idade de um organóide, o tipo de experiências que podem ser realizadas com ele, a forma como as células são recolhidas e produzidas e, caso sejam provenientes de um ser humano, utilizá-las de forma mais responsável e com o consentimento do dador.“O importante é que estamos a avançar com muito cuidado e ponderação, muito antes de algo semelhante a um tecido cerebral ‘senciente’ poder tornar-se uma realidade”, acrescenta Smirnova.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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O efeito da física que confere velocidade aos carros da Fórmula 1

Imagine que está a assistir a uma corrida de Fórmula 1: os carros passam a uma velocidade incrível, fazendo-se às curvas com uma precisão milimétrica e sem descolarem do asfalto. Alguma vez se interrogou como é possível que estes veículos, que se deslocam a mais de 300 km/h, se mantenham colados ao chão e não saiam disparados como um avião? A resposta reside num fenómeno físico da aerodinâmica chamado efeito Coanda, por vezes esquecido, mas imprescindível na aviação e no automobilismo.O QUE É O EFEITO COANDA?O Efeito Coanda tem o nome do engenheiro romeno Henri Coanda, que, em 1930, descobriu que os fluidos, como o ar e a água, tendem a aderir às superfícies curvas, em vez de se deslocarem em linha recta. Numa explicação mais simples, pense na maneira como um fio de água acompanha a curvatura de uma colher quando a colocamos sob ele. Em vez de cair imediatamente, a água “abraça” a curva da colher antes de se separar dela. Isto acontece porque o fluido “quer” seguir o caminho mais próximo da superfície – e, neste caso, a superfície é a colher.No caso do ar, o efeito Coanda tem um impacto fundamental na deslocação dos objectos que viajam a grande velocidade, como os carros de F1 ou os aviões. Quando o ar flui sobre uma superfície curva, como a carroçaria de um carro de corrida ou as asas de um avião, o fluxo do ar adere à superfície, ajudando a controlar a forma como o veículo se desloca através do ar.A VELOCIDADE NOS CARROS DE F1Nos carros de Fórmula 1, o efeito Coanda desempenha um papel fundamental na melhoria do rendimento aerodinâmico. Neste desporto, todos os pormenores são importantes para ganhar segundos cruciais e a aerodinâmica é essencial para alcançar velocidades mais altas e estabilidade nas curvas. Mas, como se aplica o efeito Coanda a um carro de F1?Um dos sítios onde o efeito Coanda é mais eficaz é no difusor traseiro, uma peça da carroçaria situada na parte inferior traseira do carro. O ar que passa sob o carro acelera quando chega a esta peça, criando uma zona de baixa pressão que suga o “carro” para o solo. Este fenómeno, conhecido como downforce, ou carga aerodinâmica, contribui para que os carros se mantenham colados ao asfalto, permitindo-lhes dar curvas a maior velocidade sem perder tracção.O efeito Coanda é essencial para este processo. Ao desenharem as superfícies do carro para que o ar flua de forma controlada, os engenheiros de F1 conseguem que o ar adira às superfícies curvas do carro, maximizando a quantidade de ar que passa pelo difusor, gerando assim maior carga aerodinâmica. Desta forma, o carro “cola-se” ao solo, resultando numa maior estabilidade e melhor rendimento nas curvas.Este efeito também é empregado nos ailerons dianteiros e traseiros dos monolugares. Os ailerons são desenhados para “conduzir” o fluxo de ar de forma a gerar o máximo de carga aerodinâmica possível, mas sem criar demasiada resistência ao avanço. É um equilíbrio delicado e o efeito Coanda contribui para a aderência do ar às superfícies curvas dos ailerons, evitando turbulências e melhorando a eficiência aerodinâmica.COANDA PELOS ARESEmbora o efeito Coanda seja aproveitado para manter os carros colados ao chão na Fórmula 1, o seu propósito na aviação é muito diferente: fazer com que os aviões se levantem no ar. O mesmo princípio é aqui aplicado de forma inversa para gerar sustentação.O fluxo de ar em redor das asas de um avião assume uma forma curva, tal como acontece no difusor de um carro de F1, mas com um objectivo distinto. As asas estão desenhadas de modo a acelerar o ar que passa sobre elas, enquanto o ar que passa por baixo se desloca mais lentamente. Este desequilíbrio entre as velocidades cria uma diferença de pressões: a pressão é mais baixa na parte superior da asa e mais alta na parte inferior, gerando uma força ascendente que levanta o avião.Graças ao efeito Coanda, o fluxo de ar permanece colado à superfície da asa, mantendo assim a diferença de pressões e, por conseguinte, a sustentação. Sem este fenómeno, os aviões teriam muito mais dificuldades em levantar voo e manter-se no ar.

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Os conselhos dietéticos na Antiguidade Clássica

Antes das tendências do Instagram e das dietas baseadas no tipo de ADN, os médicos gregos e romanos utilizavam a alimentação como principal fonte de cuidados de saúde. Por chocante que pareça, os seus conselhos parecem modernos e incrivelmente sensatos.Demasiada carne vermelha (sobretudo de vaca) poderia causar cancro, segundo o médico romano Galeno, do século II d.C. Quem quisesse perder peso, escreveu Hipócrates, deveria experimentar aquilo a que chamamos actualmentecardio em jejum: fazer exercício com o estômago vazio, antes de comer. E a canja de galinha, escreveu Dioscórides, o pai da farmacologia é “muito frequentemente dada às pessoas que estão mal de saúde para as fazer melhorar”.“A coisa mais importante de todas”, escreveu o escritor romano Celso, “é que todas as pessoas conheçam a natureza do seu próprio corpo”. A maioria das pessoas tem algum tipo de fraqueza, prosseguiu – e quer tenha predisposição para ganhar peso ou dificuldades em mantê-lo, padeça de obstipação ou os alimentos passem demasiado depressa pelo seu organismo – “a parte mais problemática deve sempre receber mais atenção”, e devemos ajustar a nossa alimentação em conformidade.É tudo uma questão de equilíbrioAs ideias antigas sobre a alimentação têm as suas raízes em teorias arcaicas sobre a forma como o corpo funcionava. A maioria dos médicos gregos e romanos acreditava que todos os corpos existiam num espectro de quente, frio, húmido e seco. Regra geral, a partir do médico romano Galeno, acreditava-se que as propriedades húmida, seca, quente e fria correspondiam a humores (ou substâncias) no organismo. O sangue era quente e húmido; a fleuma era fria e húmida; a bílis negra era fria e seca; e a bílis amarela era quente e seca. Já no tempo de Hipócrates, acreditava-se que uma deficiência ou excesso de uma destas substâncias poderia causar dores e doenças. As principais formas de regulá-las era através do exercício, que podia aquecer o corpo, e da alimentação, a qual, dependendo das substâncias, poderia aquecer ou arrefecer o corpo a partir do seu interior.Alguns organismos, como o das mulheres, eram considerados mais propensos a serem húmidos, enquanto outros, como o dos homens jovens, eram mais quentes e mais secos. Em termos gerais, porém, a saúde poderia alcançar-se mantendo o equilíbrio destas propriedades, explica Claire Bubb, professora assistente de Literatura e Ciência Clássica no Instituto sobre a Saúde do Mundo Antigo, na autora do recentemente publicado How to Eat: An Ancient Guide for Healthy Living.“Pondo as coisas de uma forma bastante simplista”, diz Bubb, “a teoria básica era que um paciente que padecesse de uma doença quente e seca [como exemplo, cólera], encontraria algum alívio numa alimentação fria e húmida (e era consideravelmente menos arriscado dar alface a alguém do que uma… droga cujos efeitos adversos poderiam ser catastróficos)” A alface era considerada um alimento refrigerante capaz de regular a temperatura corporal das pessoas que estavam a sobreaquecer, fosse devido à sua natureza intrínseca ou por causa de uma doença ou do clima.Muitas das propriedades aquecedoras ou refrigerantes dos alimentos parecem instintivas: a alface e o pepino refrigeram, mas a rúcula aquece porque é picante. A carne é um alimento que aquece, sobretudo se for assada (um modo de confecção que não usa líquidos e requer temperaturas mais altas). Os legumes crus são alimentos refrigerantes e devem, por isso, ficar reservados ao Verão, quando o organismo precisa de arrefecer.Segundo a medicina antiga, estas prescrições funcionavam. Nas suas Faculdades dos Alimentos, Galeno relata que, quando era jovem – e, devido à idade, mais quente – consumia, com sucesso, alface devido às suas propriedades refrigerantes. Agora que era mais velho, a alface adquirira uma nova função como soporífero. “Para mim, o único remédio para a insónia era comer alface à noite”, escreveu.Embora a alimentação fosse importante para diagnosticar e tratar as doenças, era ainda mais essencial para a sua prevenção. Numa época em que os tratamentos cirúrgicos e farmacêuticos ainda estavam a dar os primeiros passos, a maioria das doenças eram incuráveis. Como tal, a dieta era um cuidado de saúde preventivo – e uma das poucas formas de uma pessoa evitar adoecer. Se uma pessoa precisasse de arrefecer, escreveu Celso em De Medicina, deveria beber água fria, dormir e comer alimentos ácidos. Se quisesse aquecer, deveria comer “todos os alimentos salgados e amargos e carne”.Dieta personalizadaOs conselhos dietéticos da antiguidade eram “extremamente personalizados”, diz Bubb. “A dieta ideal tem de ser feita à medida do indivíduo, por isso, a ideia de uma dose diária recomendada não faria qualquer sentido”, acrescenta. Um atleta da antiguidade, como um gladiador corpulento, era aconselhado a comer alimentos fortificantes, como porco ou vaca. Um funcionário administrativo que estivesse o dia inteiro sentado a uma secretária, a fazer contas ou outras tarefas burocráticas, deveria consumir alimentos mais leves, como peixe. No entanto, algumas pessoas, observou o médico Galeno, tinham mais facilidade em digerir carne do que peixe. As regras eram diferentes para elas.Regra geral, a maioria dos pacientes eram aconselhados a seguir dois princípios essenciais: comer alimentos sazonais e evitar mudanças drásticas. O primeiro tinha menos a ver com a disponibilidade (uma vez que todos comiam sazonalmente) e mais com ajustar a alimentação ao clima: alimentos refrigerantes (pepino, alface, legumes crus) durante o Verão e uma dieta aquecedora, à base de alimentos mais reconfortantes (pão e carne assada) durante o Inverno.Embora a maioria desses autores estivessem a aconselhar aquilo a que podemos chamar adieta mediterrânica – azeite, peixe, legumes e cereais – a alimentação de uma pessoa da antiguidade estava condicionada pelo seu estatuto socioeconómico. Os alimentos essenciais de uma dieta ‘média’ eram pão de lentilhas (do tipo mais escuro e denso), um molho de peixe fermentado conhecido como garum, peixe, de vez em quando e, numa semana boa, carne. Os ricos tinham acesso a produtos alimentares bem temperados e bem preparados, uma grande variedade de tipos de carne e peixe, como pantera e língua-de-flamingo (uma espécie de búzio, Cyphoma gibbosum).Quanto às mudanças drásticas, embora os médicos antigos percebessem o desejo pela transformação corporal, acreditavam que as mudanças radicais na alimentação poderiam causar doenças. Passar de uma dieta de Inverno para uma dieta de Verão de um dia para o outro, por exemplo, era considerado extremo – tão extremo como praticar um estilo de vida sedentário numa semana e correr maratonas na seguinte. Celso advertia: “não se pode passar do esforço físico excessivo para o repouso súbito, nem de um repouso prolongado para o esforço físico sem sofrer efeitos nocivos graves”. Mesmo ao mudar de uma estação para a outra e aumentar a quantidade de exercício físico, escreveu Diocles no seu Regime para a Saúde, “deve aumentar lentamente e ter cuidado com os exageros”. É interessante ver que os estudos modernos concordam com as crenças antigas: alterações pequenas e graduais ao estilo de vida são muito mais eficazes e sustentáveis para melhorar a saúde em geral do que alterações grandes e abruptas.As guerras das dietasEmbora os médicos contemporâneos debatam o valor nutricional de vários tipos de gordura (‘gorduras boas’ como abacate e frutos secos são recomendados e alimentos fritos e carnes processadas estão associados a doença cardíaca), os especialistas da antiguidade discordavam em relação a ingredientes como as lentilhas. As lentilhas eram valorizadas por filósofos estóicos como Zenão de Cítio e Musónio Rufo, para os quais a alimentação tinha muito a ver com a autocontenção e evitar os excessos de alimentos estrangeiros extravagantes. Em Preceitos para Conservar a Saúde, o autor grego Plutarco defendeu que ninguém se deveria afastar muito de uma dieta simples à base de lentilhas, porque “as coisas menos caras são sempre melhores para o corpo”. No entanto, muitos médicos romanos, diz Bubb, achavam que as lentilhas não eram saudáveis. Nas suas Substâncias Médicas, Dioscórides disse que “a lentilha, quando consumida regularmente, provoca problemas de visão, dificuldades de digestão, dores de estômago gases e obstipação nas entranhas”. Do mesmo modo, embora a maioria das pessoas louvasse os méritos da couve como uma espécie de cura milagrosa, outros discordavam. “A couve, escreveu Catão o Velho, um estadista romano e autor de De Agricultura, é o legume que ultrapassa todos os outros”. Pode ser comida crua ou cozinhada e borrifada com vinagre, fazia “bem à barriga” e até produzia urina com propriedades medicinais. Consumida antes de uma festa, acrescentava ele, poderia contribuir para evitar a ressaca e a indigestão causada por comer em excesso.Escrevendo três séculos mais tarde, Galeno – sem dúvida, melhor médico – discordou. Embora reconhecesse que a couve tinha propriedades purificantes, escreveu em As Faculdades dos Alimentos que “enfaticamente, não é um alimento saudável, como a alface, tendo um sumo pernicioso e malcheiroso”.Jejum e gorduras saudáveisAlguns aspectos dos conselhos dietéticos da antiguidade são surpreendentemente compatíveis com as tendências e filosofias de estilo de vida da actualidade. Numa época tão recuada como o século V a.C., os textos de Hipócrates aconselhavam as pessoas a experimentarem o jejum intermitente (era comum fazer apenas uma refeição por dia), praticar treino funcional, velejando, caçando e correndo sobre terreno irregular, e seguir uma dieta rica em gorduras (manteiga, queijo de ovelha e azeite) para perder peso, diz Bubb. “Os pratos devem ser ricos em gordura”, escreveu Hipócrates para que [a pessoa que faz dieta] se sinta saciada após consumir a mais ínfima quantidade. Os cientistas da actualidade concordam que, num ambiente controlado, a gordura exerce um efeito sobre a saciedade.Mesmo assim, nem todos os conselhos parecem práticos ou seguros para as pessoas que se preocupam com a sua saúde actualmente. O leque comparativamente limitado dos tratamentos médicos disponíveis levava os médicos que seguiam os ensinamentos de Hipócrates a recomendarem purgas frequentes e o consumo de vinho a pessoas de todas as idades (embora diluído). Tomar banhos longos e receber massagens, que faziam parte de um regime geral para a preservação da saúde, parece apelativo – mas é difícil com os nossos horários de trabalho actuais.E depois existem as coisas estranhas. A fixação antiga na couve, que era quase uma droga universal para muitos no antigo Mediterrâneo, parece inócua. No entanto, Bubb realça que outras opiniões médicas da antiguidade são mais dúbias – como a ideia de que “o manjericão podre dá origem espontânea a escorpiões, que comer demasiados figos causa piolhos, que as frutas em geral são más para a saúde – ou que caminhar nu era uma boa estratégia para perder peso.”Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Uma mão cheia de dicas para uma caminhada

Numa piada de gosto duvidoso, podia começar por dizer que o melhor conselho para mantermos a segurança quando vamos caminhar é precisamente… não ir caminhar. Mas a cabeça necessita de um alívio que só as pernas podem proporcionar. Caminhar, ao ar livre, é não só terapêutico como medicinal. No entanto, é importante não esquecer que meter os pés à estrada, ao passadiço ou ao trilho merece cuidado, atenção e respeito: cuidado com o corpo, atenção ao comportamento e respeito pelo local onde se encontra. Dar corda as sapatos é dar corda à mente, e o que queremos aqui deixar são cinco conselhos sobre caminhada que são válidos para todas as estações e todos os humores – alguns de segurança, outros de saúde, todos sobre como ter a melhor experiência de caminho possível. Vamos a isso?1. CONHEça-se A sI MESMOSiga a máxima do templo de Apolo em Delfos e conheça-se. Principalmente os seus limites. Não seja garganeiro e, se for principiante, escolha uma volta comedida. Não queira lançar-se numa ronda louca pelo Caminho de Santiago quando o máximo que anda diariamente é da sala para a cozinha. Escolha uma área que lhe seja familiar, perto de casa, e se quiser ser um pouco mais arisco, até pode ser um trilho campestre. Mas daqueles que se fazem em duas horas e que tenham todo o caminho bem marcado com cores.Na Europa, há Pequenas Rotas e Grandes Rotas. As primeiras são simbolizadas com traços amarelo e vermelho; as segundas com vermelho e branco. Acima de tudo, seja realista e honesto consigo. Decida qual é o objectivo da caminhada. Vai relaxar? Vai treinar? Vai pôr-se à prova? Qualquer uma é válida; mas saiba reconhecer os seus sinais físicos e, acima de tudo, não seja demasiado ambicioso. 2. O EXCESSO DE ZELO NUNCA FEZ MALAntes de partir, verifique bem uma série de pormenores. Um simples que muitos esquecem: qual é a previsão do tempo? Dessa forma, pode escolher melhor o vestuário e o calçado, bem como calcular o tempo de realização da caminhada. Da mesma maneira, se sentir que o seu corpo não está a 100% – uma dor de cabeça, indisposição de estômago, um problema no joelho são bons exemplos –, repense e guarde a aventura para outra altura. Ninguém o julgará. Outra coisa: avise alguém para onde vai e quanto tempo acha que vai demorar. Caso aconteça o pior e se perca, alguém saber onde foi poupará muito tempo às equipas de socorro.3. PÁRE, PENSE E PREPARE-SEOra, o que levar? Se for simplesmente dar uma volta ao fim do dia, calçado confortável, roupa ligeira e protector solar – mesmo no Inverno – chegam. Agora, se quiser ir para a montanha ou mesmo fazer uma caminhada junto à praia que dure um dia, outras preparações são necessárias.Para começar, combustível: comida e líquidos. Água, de preferência. Quanto aos sólidos, cada um pode escolher o que mais gosta, mas convém que tenha calorias para queimar, principalmente hidratos ou proteínas. Frutos secos ou cereais são sempre uma boa opção. Açúcares também: sumos de fruta ou, a dieta nos perdoe, um chocolatinho aceitam-se. Sem esquecer o deus maior dos caminhantes e corredores, a banana, cujo potássio dá um jeito danado para evitar cãimbras.Escolha bem a mochila que leva. Uma tonelada de bolsos não é necessária, mas ajuda se tiver mais do que dois compartimentos. Deve ser impermeável e ajustável ao ombro – isto é essencial para garantir uma eficaz distribuição do peso pelo corpo e menos cansaço acumulado. Nunca esquecer também o impermeável, mesmo que não haja previsão da chuva: na montanha, principalmente, o clima muda muito rapidamente. Calçado confortável é fundamental: se tiver comprado aquelas botas de caminhada lindas no dia anterior, não as levem a estrear. Os seus pés podem não achar boa ideia.  E um boné, claro, é tão útil para o sol como para a chuva. Assim num extra, principalmente se for para a floresta, uma lanterna e um apito são boas maneiras de se ajudar se a caminhada correr mal.Finalmente, um kit de primeiros socorros é indispensável. Pode fazê-lo mais ou menos complexo, mas um básico terá sempre pensos, ligaduras de gaze estéreis, tesoura, um líquido anti-séptico, analgésicos simples para dor de cabeça ou inflamações, repelente e pó electrólito.4. FAÇA-SE AO CAMINHO... flexível e respeitosamentePortanto, está equipado, fez o seu plano e está no início do caminho. E agora? Agora lembre-se que, mesmo que vá em grupo, a única coisa certa da caminhada é que vai ter sempre a sua própria companhia. Como tal, escolha um ritmo que lhe seja confortável e não tente acompanhar um passo mais rápido só porque o ego lhe está a dar bicadas. Assim, rebenta o motor e depois terá grandes dificuldades em andar.Se precisar de parar, faça-o, nem que seja uns minutinhos. Acima de tudo, não tenha vergonha de se sentir fraco. Não tenha também receio de corrigir o seu plano: se vir que não tem tempo para terminar a caminhada à hora que previa, ou se as condições climatéricas mudarem para pior, volte para trás. O mesmo caso se  sinta perdido: avançar com a leve ideia de que “é por aqui” é um erro pelo qual todos já passámos. Eu incluído.Tente também não deixar vestígios da sua passagem na natureza. Recolha o lixo, mesmo o biodegradável, mas também respeite o silêncio do ecossistema. Afinal, a natureza serve para fugir ao bulício. Há também uma série de pequenas regras de etiqueta não escritas que recomendamos. Se decidir pausar a caminhada, não obstrua o caminho. Caminhantes que sobem têm prioridade em relação aos que descem. Não retire elementos do meio natural: só fotografias e recordações. Se decidir fazer uma pausa fisiológica, afaste-se do caminho principal. Por fim, evite ao máximo sair desse caminho, pois vai destruir o meio natural envolvente.5.  NÃO SE ESQUEÇA QUE É UM MERO VISITANTENo caso eventual de se cruzar com animais, não os perturbe nem os alimente. E se não os conhecer, não lhes toque: há insectos venenosos com os quais não vai querer ter um encontro imediato. Na maior parte de Portugal, o animal mais perigoso que pode encontrar é a víbora-cornuda, uma das poucas cobras venenosas do nosso país; mas em zonas do interior principalmente, o javali e o veado são muito comuns e territoriais; e no extremo Norte e Nordeste, há a possibilidade de se cruzar com lobos, um animal majestoso, mas que gosta de ser deixado em paz. Se tiver a rara visão de um lince, na serra da Malcata ou em redor de Mértola, considere-se abençoado… e não o chateie. Se levar algum animal de estimação, use uma coleira e não deixe que ande à solta.Por fim, é a melhor altura para conhecer um amigo essencial do caminhante: o alongamento, obrigatório no final de um esforço. Poupe as dores nos dias seguintes. Deve esticar os músculos das pernas sem exagero, simplesmente permitindo que o ácido láctico se dissipe. Dê prioridade às barrigas da perna, os músculos posteriores da coxa e não esqueça os gémeos ou também as plantas e dedos dos pés, onde boa parte da tensão se acumula.E é isto! O tempo limpo convida a caminhar, mas em Portugal pode fazê-lo durante todo o ano. As dicas que lhe deixamos podem ser adaptáveis ao tipo de caminhada e ao mês em que a fizer, mas o gozo e o respeito, esses, são transversais. Boa caminhada!

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Salto do lugar mais profundo

Como a queda é tão longa, grande parte da água evapora e transforma-se em névoa antes de tocar o solo, criando um espectáculo natural de tirar o fôlego. Grande parte da água provém das chuvas que se acumulam no topo do Auyantepui, o imenso bloco de arenito de onde ela cai.O nome "Salto Ángel" vem do piloto Jimmy Angel, que na década de 1930 sobrevoou a região em busca de ouro... e não só não o encontrou, como também sofreu um acidente com a sua mulher e dois acompanhantes: saíram ilesos da aterragem de emergência, mas demoraram 11 dias a descer a pé pela escarpada meseta. As autoridades venezuelanas decidiram baptizar a queda d'água com o seu nome, embora nos últimos anos se tenha procurado recuperar o nome original na língua pemón: Kerepakupai Merú, que significa algo como "salto do lugar mais profundo".

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O íman invisível: os perigos ocultos da ressonância magnética

Era uma tarde aparentemente como outra qualquer em Long Island, até o som metálico de uma corrente fazer tremer o silêncio clínico, um homem de 61 anos foi arrastado violentamente pela força de um equipamento de ressonância magnética em Westbury, Nova Iorque, depois de entrar na sala com um colar metálico grosso. O campo magnético da máquina, invisível, mas fortíssimo, não distinguiu entre tecnologia médica e joalharia, transformando aquele objecto do quotidiano numa armadilha mortal. Keith McAllister estava apenas a acompanhar a esposa na clínica Nassau Open MRI. Acabou por falecer no hospital, onde esteve internado durante alguns dias.Este incidente voltou a evidenciar os riscos reais de uma técnica que, embora segura quando utilizada por pessoas devidamente preparadas, pode tornar-se perigosa quando as advertências são ignoradas. As autoridades confirmaram que o homem não tinha autorização para estar na sala durante o exame. Embora raro, este tipo de erro já aconteceu anteriormente, também com consequências trágicas.Em 2001, um rapaz morreu quando um tanque de oxigénio foi atraído para o interior de uma máquina de RM em funcionamento. Em 2018, outro incidente, ocorrido na Índia terminou com uma vítima mortal devido a uma causa semelhante. E em 2023, uma enfermeira ficou presa entre uma maca e o túnel da máquina.O que é A RESSONÂNCIA MAGNÉTICA?A ressonância magnética (RM) é uma ferramenta essencial para o diagnóstico médico contemporâneo. Utiliza um campo magnético forte e ondas de rádio para gerar imagens pormenorizadas do interior do corpo, sem recorrer a radiação ionizante, como acontece nas tomografias computorizadas (TAC).A sua eficácia de diagnóstico é inquestionável, mas a utilização do magnetismo implica regras rigorosas: nada metálico pode entrar na sala. No entanto, essas directrizes nem sempre são respeitadas e é assim que surgem os problemas.RiscosEmbora a RM não implique dor nem exposição a radiação, existem factores de risco claros e documentados, especialmente para pessoas com pacemakers, próteses ferromagnéticas ou implantes cocleares. Até algo aparentemente tão inócuo como uma tatuagem pode causar complicações, se a tinta contiver pigmentos com partículas metálicas.Mesmo assim, alguns pacientes sentem ansiedade ou claustrofobia quando se vêem envoltos pelo túnel estreito da máquina. Em muitos casos, estes riscos são evitáveis se os protocolos forem respeitados e se o paciente for examinado de forma rigorosa antes do exame.Os potenciais danos causados por um objecto metálico dentro de uma sala de RM não devem ser subestimados. Desde queimaduras na pele até lesões mortais causadas por objectos arremessados a grande velocidade, os perigos são reais e conhecidos.Os equipamentos de RM geram campos magnéticos que ultrapassam 1,5 teslas em muitos casos, uma força capaz de mover uma cadeira de rodas ou levantar uma botija de oxigénio do chão. Por conseguinte, antes de entrar na sala, as pessoas devem retirar relógios, piercings, cartões com banda magnética e qualquer outro objecto metálico. Os implantes, em particular, devem ser previamente avaliados a fim de assegurar a sua compatibilidade com este tipo de exames.A utilização de contrastes intravenosos, embora segura para a maioria das pessoas, pode causar reacções adversas, sobretudo a pessoas com insuficiência renal, alergias ou anemia falciforme. Por isso, deve sempre informar-se com o radiologista antes do procedimento, sobretudo se tiver tido reacções anteriores a tintas mariscos ou iodo. Além disso, embora não se tenham identificado danos directos, muitas instituições preferem evitar fazer ressonâncias magnéticas durante a gravidez, em especial no primeiro trimestre.Avanços tecnológicosNuma tentativa de tornar estes exames mais toleráveis, sobretudo para crianças e pessoas com fobia de espaços fechados, surgiram inovações tecnológicas. Uma equipa da King’s College de Londres desenvolveu um capacete de realidade virtual compatível com ambientes magnéticos, que simula visualmente outro ambiente enquanto o paciente se submete à ressonância.Esta distracção imersiva ajuda a mitigar a ansiedade e até mostrou resultados promissores em ensaios clínicos. O ambiente visual ajusta-se aos sons, vibrações e movimentos reais do equipamento, conseguindo criar uma coerência sensorial que mitiga a sensação de clausura.Em paralelo, os equipamentos de ressonância magnética abertos, aqueles que não envolvem completamente o paciente, estão a ganhar popularidade. São particularmente úteis para exames musculoesqueléticos, como os que avaliam joelhos, tornozelos ou pulsos, nos quais não é necessária uma visão profunda do corpo. Estes equipamentos reduzem a sensação de clausura e, em alguns casos, não requerem a utilização de contraste intravenoso, diminuindo ainda mais o risco de reacções adversas.A ressonância magnética é, sem dúvida, um dos maiores avanços da medicina de diagnóstico. No entanto, tal como tudo o que envolve uma potência invisível e uma tecnologia sofisticada, exige respeito, conhecimento e responsabilidade.

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Já nas bancas

Os janízaros: A guarda pessoal do sultão de Istambul era odiada pelos seus excessos e privilégios.A Costa Rica antes de Colombo: Vindos do Sul do México, os chorotegas criaram no Oeste da Costa Rica uma sociedade dominada por caciques.Nefertari, o túmulo de uma rainha: Há mais de três mil anos, Ramsés II mandou construir um túmulo no vale das Rainhas para a sua esposa favorita, Nefertari. O primeiro alfabeto: Inscrições com quase quatro mil anos documentam o primeiro alfabeto da história, do qual derivam todos os que se desenvolveram em seguida no Próximo Oriente e no Mediterrâneo.Estilicão, o defensor de Roma: Descendente de uma família de vândalos, o general Estilicão manteve unido o Império Romano contra os invasores germanos, mas acabou por ser vítima de uma conspiração palaciana. Os dias decisivos de Dom Afonso Henriques: Não foi fácil o percurso de legitimação daquele que viria a ser o primeiro rei de Portugal. Dom Afonso Henriques teve de enfrentar a família, os reinos vizinhos e a autoridade papal até consolidar a sua autonomia e ver validada a sua pretensão real. Muita da aura do rei forjou-se em combate e as sucessivas campanhas vitoriosas ajudaram-no a silenciar os detractores. No final da vida, pôde por fim descansar. O Reino de Portugal estava formado e reconhecido. Marco Polo, pioneiro da Rota da Seda: A criação do Império Mongol no século XIII permitiu a travessia do continente euro-asiático de forma segura. Marco Polo foi um dos viajantes que aproveitaram essa conjuntura.Tróia e o tesouro de Príamo: Aos 42 anos, Heinrich Schliemann liquidou os seus negócios e usou a fortuna para embarcar num projecto audaz: descobrir o local exacto da Tróia cantada por Homero, um lugar que muitos consideravam mais lendário do que real. A sua tenacidade foi recompensada em 1873 com a revelação de um tesouro.Garibaldi, o herói da unificação italiana: Em 1860, Giuseppe Garibaldi lançou-se, com um milhar de voluntários, numa expedição que mudou a história de Itália. Os túmulos de Mancheng: Em 1968, em plena Revolução Cultural, descobriu-se a sul de Pequim uma sepultura opulenta  do século II d.C. A história da cultura han mudou para sempre.O canal do Panamá: A construção do canal do Panamá foi uma das maiores sagas de engenharia do início do século XX, mas teve um custo humano dramático.

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Da nossa estante: O vulcão que expele lava azul

É ao anoitecer que o vulcão Kawah Ijen, na região oriental da ilha de Java, mostra o seu lado mais fascinante. Com 2.386 metros de altitude, este gigante de fogo é um dos 143 vulcões que se mantêm activos no arquipélago da Indonésia, um país formado por milhares de ilhas assentes sobre o Anel de Fogo do Pacífico, uma das zonas da Terra com mais intensa actividade sísmica e vulcânica.O Kawah pertence ao complexo vulcânico Ijen, no interior de uma grande caldeira com 20 quilómetros de diâmetro. À medida que a luz solar vai elanguescendo, as suas ladeiras brilham, cobertas por uma miríade de chamas azuis que parece acompanhar as vertentes como espectros incorpóreos. Azuis e iridescentes, como pequenos néons bailarinos, as chamas brilham em Kawah Ijen, mas são muito ténues, tornando-se distinguíveis apenas na escuridão. A sua origem justifica-se por reacções químicas induzidas por circunstâncias termodinâmicas especiais.A peculiaridade deste vulcão justifica-se pela acumulação de enxofre alojado no seu interior.A peculiaridade deste vulcão justifica-se pela acumulação de enxofre alojado no seu interior. Uma grande percentagem deste elemento químico emerge na forma líquida e cria rios encarniçados que solidificam e cristalizam em contacto com a atmosfera, formando grandes blocos de um amarelo intenso. Outra grande parte do enxofre é expelida sob a forma de gás. “O Kawah Ijen é um estratovulcão cujas erupções assumem a forma de explosões freáticas e magmáticas, projectando para o exterior vapor, água, cinza e pedras”, explica Joan Martí, coordenador do Grupo de Vulcanologia da Universidade de Barcelona. O magma, extremadamente viscoso, circula a grande profundidade sob a crosta terrestre e, se emergir sob a forma de lava, solidifica rapidamente e avança pouco sobre o terreno. Em troca, a enorme quantidade de gás sulfuroso que se encontra preso sobre a crosta é irremediavelmente impelida a procurar uma saída para o exterior.”Submetido a enormes pressões e temperaturas superiores a 600ºC, muito mais altas do que o seu ponto de ignição (360ºC), o gás é canalizado por qualquer via de escape, seja uma greta, uma fissura ou uma fumarola, e é ejectado em plena combustão, envolto em chamas. Uma vez cá fora, arde novamente ao entrar em contacto com o oxigénio. No entanto, enquanto a temperatura desce, o gás liquidifica, formando pequenos rios de enxofre líquido sobre os quais “navegam” esses fogos tão brilhantes e azuis, uma tonalidade que se deve à presença de dióxido de enxofre. Estes rios ácidos flamejantes terminam o seu percurso na bacia de um grande lago ácido que alberga uma cratera, a maior do mundo com estas características, atingindo um quilómetro de diâmetro. É um lago fumegante e quente, com uma tonalidade turquesa opalescente. Mas cuidado… Um banho aqui seria trágico: o lago contém 36 milhões de metros cúbicos de ácido sulfúrico e ácido clorídrico. Para o experiente fotógrafo Olivier Grünewald, que há quase vinte anos retrata vulcões, o Kawah Ijen é um vulcão diferente e especial. Visitou-o pela primeira vez em 2005 e já chegou a passar 30 noites no seu interior, acompanhado pelo operador de câmara Régis Etienne. “Não é fácil instalarmo-nos na cratera para trabalhar com normalidade. A atmosfera é quase irrespirável, as emanações de gás são irritantes e, por vezes, o fumo é tão espesso que não distinguimos as nossas próprias mãos”, explica. E isto para não falar no líquido corrosivo que flui por toda a parte, devido ao qual Olivier teve de deitar fora um par de óculos estragados para sempre pelo ácido.O vulcanólogo português Victor Hugo Forjaz também conhece o poder deste vulcão. Em Maio de 1970, um grupo científico no qual se integrava este especialista açoriano foi evacuado de emergência por um helicóptero militar americano. “Fiquei com o pulmão esquerdo afectado e hoje sofro de sulfurose à conta da aventura”, diz. “Os pobres habitantes são um estudo de caso darwiniano: deveriam estar mortos ao fim de algumas viagens, mas a natureza (por vezes cruel) adaptou-os àquele ambiente.”Não foi só a beleza do Kawah Ijen que atraiu o fotógrafo parisiense. Olivier queria ver com os seus próprios olhos como centenas de mineiros trabalham no interior da cratera, removendo e carregando blocos de enxofre sem auxílio mecânico ou protecção. “Os mineiros, que começam a trabalhar às três horas da manhã, arrancam blocos de enxofre nas orlas do lago, no interior da cratera, e transportam-nos até ao topo. Dali, dirigem-se para a fábrica da empresa PT Candi Ngrimbi, que explora a mina desde 1967, que lhes paga cerca de cinco cêntimos por cada quilograma de enxofre”, relata Olivier.Cada mineiro transporta entre 70 e 90 quilogramas por viagem (pesos superiores ao seu) dentro de dois cestos de bambu unidos por um pau colocado sobre os ombros. Fazem um transporte por dia, por vezes dois, para no fim do dia de trabalho ganharem 4 e 8 euros – apesar de tudo, bastante mais do que ganhariam na maioria dos trabalhos disponíveis. Apesar de carregarem estes pesados blocos minerais até à empresa exploradora, esta não oferece aos seus trabalhadores contrato, seguro, nem sequer máscaras protectoras, pelo que eles mal conseguem sustentar as suas famílias. Pagam um preço alto, depois de vários anos passados a labutar na mina, e a sua saúde fica gravemente comprometida. Os problemas  respiratórios são comuns, tal como a artrose, as lesões nas costas, a irritação nos olhos e na garganta, assim como danos irreparáveis na dentição, afectada pelas partículas corrosivas. Todavia, os mineiros têm uma certeza: o Kawah Ijen é a sua melhor opção.Depois de Olivier Grunewald permanecer tantas horas no vulcão durante o dia e também durante a noite, os mineiros tiveram a certeza de que ele e Régis Etienne realizavam um trabalho profissional que procurava a sua colaboração. Não se tratava das típicas “visitas de estrangeiro”, como as que acontecem no Verão, no decurso das quais os turistas andam sem pudor com as máquinas fotográficas entre os mineiros, fotografando-os sem parar e sem pedir licença, “como se estivessem num jardim zoológico”, conta o fotógrafo.Ele e Etienne, quase sempre equipados com uma máscara, incluindo para dormir, conseguiram captar a alma e a essência daqueles mineiros e também deste vulcão tão especial, onde é preciso caminhar com muita atenção. Embora o Kawah Ijen não sofra uma erupção importante desde 1936, nos últimos 40 anos 74 mineiros perderam a vida devido às explosões que libertam subitamente nuvens de enxofre e labaredas que podem atingir cinco metros de altura. Estas emanações repentinas envenenam a atmosfera de tal forma que podem exceder 40 vezes os valores que na Europa se consideram seguros para a saúde.Estes mineiros fazem um transporte por dia, por vezes dois, para no fim do dia de trabalho ganharem 4 e 8 euros. Aqui, porém, os únicos limites são aqueles a que são capazes de resistir “homens fortes de Java”, alcunha dada pelos autóctones aos mineiros, e a única segurança é proporcionada pela experiência, adquirida à força de tropeçar nestas paragens. Gerações inteiras encontraram aqui o seu sustento, carregando um mineral omnipresente em processos industriais, como o fabrico de pólvora, fósforos, adubos, líquido para baterias, produtos cosméticos, dispositivos para branqueamento do açúcar ou vulcanização da cortiça. E há trabalho em abundância porque o Kawah produz cerca de cinco ou seis toneladas diárias de enxofre.Olivier comenta que o Kawah Ijen é um dos poucos lugares do mundo onde se desenvolve uma actividade mineira tão primitiva. Mas não é o único vulcão onde pode observar-se este fascinante fogo azul. Já foi visto a surgir das entranhas do Dallol, na Etiópia, e terá sido documentado na ilha eólia de Vulcano e no Vesúvio. Foi nas redondezas deste último que o naturalista Plínio, o Velho, perdeu a vida no dia 25 de Agosto do ano 79, segundo os registos deixados pelo seu sobrinho Plínio, o Jovem.Reza a história que, antes do amanhecer e em plena erupção do Vesúvio, fascinado com o espectáculo, o sábio aproximou-se pouco a pouco da montanha até perder os sentidos. Quem sabe se, antes de morrer, essas pequenas chamas azuis lhe teriam dado a sua última alegria? Artigo publicado originalmente na edição de Junho de 2014 da revista National Geographic.

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Chamas azuis

Em vulcões como o Kawah Ijen, no Leste de Java, as chamas azuis surgem quando gases sulfurosos extremamente quentes (a mais de 360 °C) entram em contacto com o oxigénio do ar e inflamam-se. O enxofre arde com uma chama azulada e o resultado é um espectáculo fantasmagórico e brilhante no meio da escuridão da noite.A lava real continua vermelha ou laranja, como em qualquer outro vulcão, mas a cor das chamas depende dos elementos presentes nos gases que ela libera; e estes, por sua vez, da composição dos materiais no interior. O cobre, por exemplo, queima com uma chama verde, o potássio é violeta e o sulfureto é azul intenso. Assim, o que ilumina a noite em Kawah Ijen é uma espécie de laboratório infernal de química ao vivo.

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Fotogaleria: as 9 subespécies de tigre em imagens

A distribuição histórica do tigre é bastante alargada – desde a vizinhança do Mar Cáspio até ao Sudeste Asiático, passando ainda pela Turquia e pela Sibéria. Com uma distribuição tão vasta, ocupando grande parte do continente asiático, não é surpreendente que as populações locais de cada região tenham desenvolvido adaptações específicas às suas condições, tendo dado origem a nove subespécies diferentes historicamente reconhecidas que chegaram até ao século XX.Infelizmente, e devido à enorme contracção das populações de tigre causada pelos humanos neste período, duas delas – ou talvez três (falaremos disto mais à frente) – estão hoje extintas. Passemos então a caracterizar brevemente as diferentes subespécies deste carismático animal. As subespécies de tigre: uma taxonomia em fluxoAs nove subespécies descritas acima correspondem à taxonomia tradicional desta espécie, mas esta tem, nos últimos anos, sido posta em causa por alguns estudos que analisaram as diferenças de DNA entre as putativas subespécies. Um particularmente importante, de 2015, veio revolucionar a visão da espécie, propondo que as diferenças genéticas só justificam a separação em duas subespécies de Panthera tigris, correspondendo Panthera tigris tigris  às subespécies continentais e Panthera tigris sondaica às subespécies das ilhas indonésias. Isto, a confirmar-se, terá implicações muito relevantes em termos de conservação.No entanto, outro estudo, da universidade de Pequim, publicado em 2018 na Current Biology, veio pôr água na fervura, reafirmando a validade taxonómica das subespécies tradicionais com base em análise genómica. Certo parece ser que o debate ainda não acabou.

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O que são as placas tectónicas: os gigantes que movem a Terra

De acordo com a tectónica de placas, a Terra, como um enorme quebra-cabeças, é formada por diferentes placas que estão em constante movimento. Devido às correntes de magma que brotam do manto terrestre, algumas placas colidem com outras, outras roçam-se e algumas separam-se.Os movimentos criam cadeias montanhosas, vulcões e provocam terramotos que moldaram o nosso planeta até ao seu estado actual. Todas as placas se encontram na chamada litosfera, que é a camada superficial da Terra e inclui a crosta e a parte superior do manto terrestre.Os continentes geralmente estão situados numa dessas placas. Daí vêm os nomes Placa Africana, Placa Antártica, Placa Norte-Americana, Placa Sul-Americana e Placa Australiana (que ocuparia a Oceânia). A Europa e a Ásia estão na mesma placa, a Placa Eurasiática, e o oceano Pacífico está, em grande parte, na Placa do Pacífico.Além dessas, dezenas de placas menores preenchem as lacunas resultantes e desempenham um papel muito importante na orografia e noutros acidentes geológicos do planeta. Por exemplo, o choque entre a Placa Indiana e a Eurasiática formou a imponente cordilheira do Himalaia, onde se encontram os picos mais altos do planeta. Por outro lado, o choque entre a Placa Australiana e a subplaca de Sundra foi o que provocou, em 2004, o grande tsunami no oceano Índico, que ceifou cerca de um quarto de milhão de vidas.Por isso, é importante conhecer as placas e os seus movimentos para determinar os riscos potenciais para as populações e poder prevenir catástrofes naturais. No caso da microplaca ibérica, que ocupa a nossa península, o seu atrito com as placas africana e eurasiática, da qual faz parte, provoca terramotos que podem ser sentidos ou mesmo causar danos nas populações, como foi o caso do terramoto de Lorca em 2011.O movimento lento das placasÉ comum comparar a velocidade do deslocamento das placas tectónicas com a velocidade de crescimento das unhas, uma comparação bastante acertada por duas razões. A primeira, porque em alguns casos a velocidade é semelhante, e a segunda porque em ambos os casos o movimento é constante e praticamente imperceptível de dia para dia. Só depois de algumas semanas é que percebemos que cresceram e que é hora de cortá-las. O mesmo aconteceria com os continentes, mas em vez de meses, seriam necessários centenas de milhares ou milhões de anos para notar mudanças significativas.No entanto, uma diferença fundamental é que o movimento das placas tectónicas não é uniforme. Há placas que se deslocam a uma velocidade maior do que outras ou, mesmo dentro da mesma placa, pode haver regiões mais rápidas do que outras. Actualmente, acredita-se que a Placa do Pacífico seja a que tem um deslocamento mais rápido, chegando a se deslocar 15 cm por ano em algumas regiões, cerca de 4 vezes mais rápido do que a velocidade de crescimento das unhas.Nos limites dos gigantesEsses movimentos provocam três tipos de limites tectónicos, ou seja, situações que ocorrem nas bordas das placas. Quando as placas se separam umas das outras, criam limites divergentes ou bordas construtivas. Quando as placas colidem, formam limites convergentes ou bordas destrutivas e, quando se movem lateralmente em relação umas às outras, formam o que é chamado de limite transformante. Já lá vamos.Limites divergentesNos limites divergentes, as placas separam-se e formam uma fenda chamada rift. Nesse ponto, a espessura da crosta diminui e permite que o magma proveniente do manto possa brotar. É o caso, por exemplo, da dorsal oceânica atlântica, uma gigantesca cordilheira de montanhas e vulcões submarinos, produto da separação das placas eurasiática e norte-americana no Norte e da africana e da sul-americana no Sul. A Islândia e a sua actividade vulcânica também são produto desse movimento.Em África também se encontra um desses limites em formação. Especificamente, na zona que ocupa a actual Somália e parte da Etiópia, Tanzânia, Quénia, Moçambique e Maláui, está a formar-se lentamente uma enorme fenda denominada Grande Vale do Rift. Nesta região, uma parte da Placa Africana está a começar a separar-se e a formar o que já foi denominado Placa Somali. Ao longo de milhões de anos, espera-se que esta região se separe do continente e acabe por se transformar numa ilha.Este processo também é chamado de borda construtiva porque nessas zonas é criada uma nova crosta terrestre. Ao brotar do manto, o magma endurece e passa a fazer parte da crosta, onde permanecerá durante milhares de milhões de anos ou até chegar ao outro lado da placa.Limites convergentesNas zonas de colisão entre duas placas, podem ocorrer várias situações. Se uma placa continental colide com outra, as enormes massas de terra empurram-se umas às outras e o material acaba por escapar por onde pode, geralmente para cima, na forma de cadeias montanhosas. É o caso do Himalaia, onde se encontra o Evereste, o pico mais alto do planeta, com uma altura de 8.848,86 metros, conforme confirmado recentemente pela China e pelo Nepal. Actualmente, ambas as placas continuam a colidir, pelo que é possível que o monte continue a crescer nos próximos anos.No caso de uma colisão entre uma placa oceânica e uma continental, ou entre duas placas oceânicas, a mais densa acaba por ceder e desliza por baixo da outra. No primeiro caso, geralmente é a continental que subduz a oceânica; nas oceânicas, depende de outros factores. Vários processos geológicos interessantes derivam desse movimento. Um deles é que, na zona de subducção, são criadas fossas marinhas, regiões de grande profundidade onde habitam espécies únicas. Numa dessas fossas, a Fossa das Marianas, encontra-se o Abismo Challenger, que atinge quase 11 km e é o ponto mais profundo dos oceanos. Até à data, um total de 8 pessoas chegaram a pousar neste ponto utilizando submarinos especializados chamados batiscafos.A centenas de quilómetros de distância das zonas de subducção, formam-se arcos vulcânicos continentais ou oceânicos. Até há relativamente pouco tempo, pensava-se que a placa oceânica, ao derreter, era a responsável por fornecer material fundido suficiente para a formação dessas zonas vulcânicas activas. Mas um estudo realizado no país vizinho pelo Museu Nacional de Ciências Naturais (MNCN-CSIC), pelo Instituto Andaluz de Ciências da Terra (IACT-CSIC-UGR) e pela Universidade de Salamanca mostrou que o magma não provém da antiga crosta, mas do próprio manto. O estudo foi publicado em Fevereiro de 2023 na revista Earth and Planetary Science Letters.Limites transformantesFinalmente, quando duas placas não se separam nem colidem frontalmente uma com a outra, mas se deslocam roçando-se, formam o que se denomina limites transformantes. Nesses casos, a borda entre as placas falha por ruptura. Ou seja, depressões no terreno rodeadas por zonas rochosas fracturadas pela tensão que as placas acumulam nessas zonas. Essas tensões também causam terremotos, como o que ocorreu na cidade de São Francisco em 1906, resultado de um movimento brusco da Falha de São Andrés.A placa ibéricaO caso da microplaca ibérica é singular. Trata-se de uma união de duas placas ainda menores, a placa ibérica e parte da placa de Alborão, que ficaram presas entre a Placa Africana e a Placa Euroasiática. Por isso, a Península Ibérica tem uma situação tectónica muito complexa, onde se podem observar padrões de relevo muito característicos.Um exemplo claro são os Pirenéus, que são o resultado do movimento de rotação da placa que ocorreu durante o Miocénico (há entre 252 e 66 milhões de anos). Assim como o estreito de Gibraltar, que se abriu pela última vez há apenas 5,96 milhões de anos e pôs fim à chamada crise salina do Messiniano, um período geológico em que o mar Mediterrâneo se evaporou parcialmente, deixando enormes salinas em seu lugar.Esta geologia singular torna a Península Ibérica um dos ambientes mais valiosos para a realização de estudos geológicos. Além disso, proporciona a Portugal e Espanha condições únicas para que, ao longo das eras, se tenham desenvolvido espécies endémicas de uma diversidade impressionante.

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Um tornado solar: 3 imagens de um fenómeno tão fascinante quanto perigoso

A partir de um local com céu escuro na Reserva Dark Sky Alqueva, no Alentejo, o astrofotógrafo Miguel Claro capturou, nos últimos anos, imagens estelares da cromosfera, a camada laranja-avermelhada da atmosfera solar.O Sol produz energia no seu núcleo através de um processo chamado fusão nuclear. Essa energia viaja para o exterior da atmosfera, produzindo um ambiente extremamente complexo e dinâmico com uma variedade de fenómenos especiais, como tornados e protuberâncias solares.“Fotografar o Sol é tão exigente quanto incrível”, afirma Claro. Quando olha para o Sol através do seu equipamento, ele vê que este “sempre oferece algo novo, algo que não estava lá no dia anterior”.A seguir, apresentamos uma série de características fascinantes captadas da nossa estrela.Um tornado solar é criado quando os campos magnéticos fazem girar um filamento de plasma fervente semelhante a um tornado na atmosfera do Sol. De acordo com o Observatório Solar Dinâmico da NASA, localizado no espaço, estes podem girar a velocidades de até 299.000 quilómetros por hora. A título de comparação, os tornados na Terra atingem velocidades de apenas 483 quilómetros por hora. Os cientistas estimam que existam até 11.000 tornados solares sobre a superfície do Sol ao mesmo tempo.A 10 de Maio de 2024, uma das tempestades solares mais intensas que atingiu a Terra em mais de duas décadas deu nas vistas. Estas ocorrem quando rajadas repentinas e fortes de partículas carregadas provenientes do Sol atingem a atmosfera terrestre. Elas podem provocar um belo espectáculo de luzes na forma de auroras e também causar estragos em tecnologias terrestres. As redes eléctricas e a frota de satélites espaciais podem, assim, ser afectados por este fenómeno.

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Héctor Bellerín, o jogador que sonha com um futuro mais amigo do ambiente no desporto

A transformação de Héctor Bellerín começou há quase dez anos, quando se tornou vegano. Era ele defesa do Arsenal, uma equipa da Premier League inglesa, e queria descobrir uma forma melhor de treinar e recuperar.A sua decisão certamente lhe fez bem ao corpo, mas também expandiu a mente. “Isso abriu-me portas” ao ambientalismo, diz o antigo jogador do Sporting, agora com 30 anos. “Tornei-me mais sensível à crueldade contra os animais e mais consciente de como uma dieta à base de carne era prejudicial para o planeta. E também me tornei mais consciente da forma como consumo.”Para combater a desflorestação, Héctor começou a trabalhar com uma associação sem fins lucrativos para plantar árvores na Amazónia. A ideia era plantar três mil árvores por cada jogo que o Arsenal ganhasse. “Recebi até mensagens de rivais da Premier League a dizer: ʽEste mês quero que vocês ganhem e, com sorte, poderemos plantar mais árvoresʼ”, lembra o jogador. Bellerín emergiu então provavelmente como a maior consciência ambiental do desporto. Actualmente, a jogar no Bétis de Sevilha, na sua Espanha natal, trabalha com o clube para reduzir a pegada de carbono da equipa. As iniciativas são criativas. Além de instalar no estádio cadeiras feitas de redes de pesca recuperadas no leito marinho, o clube também ofereceu a todos os jogadores e membros da equipa as suas próprias scooters eléctricas. Bellerín usa agora uma bicicleta eléctrica como principal meio de transporte pela cidade.As metas finais de sustentabilidade do Bétis são ambiciosas: os planos para a remodelação do seu estádio Benito Villamarín prevêem que ele seja amplamente alimentado por energia solar, e o clube comprometeu-se a baixar até zero as suas emissões de carbono até 2040. “Para mim, é  um sistema pioneiro”, diz. “Há imensos clubes atentos ao que estamos a fazer e desejamos promover o mesmo tipo de acções noutros contextos.”Durante a pandemia, o jogador pensou muitas vezes nos clubes das divisões inferiores do futebol, muitos dos quais enfrentando dificuldades devido à falta de venda de bilhetes. Lembrou-se de um em particular, o Forest Green Rovers, um clube inglês da quinta divisão conhecido pelas suas iniciativas de sustentabilidade – e por ser o primeiro clube de futebol do mundo certificado como neutro em carbono pela Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas.Bellerín adquiriu uma participação minoritária no clube, e o seu financiamento ajudou a tornar a equipa ainda mais ecológica. Os jogadores viajam para os jogos num autocarro eléctrico, o campo é mantido com cortadores de relva eléctricos e o novo estádio da equipa, com 5.000 lugares, está a ser construído quase inteiramente em madeira. “O clube tem altos e baixos em termos desportivos”, diz Bellerín. “Mas também chamou a atenção de muitos agentes do futebol para uma equipa que está mesmo a tentar ser radical.” A consciência ecológica de Héctor estende-se também aos seus projectos paralelos. Um conhecido apaixonado por moda que desenhou uma colecção para a H&M e desfilou para a Louis Vuitton na Paris Fashion Week, Bellerín agora compra exclusivamente artigos em segunda mão e recentemente lançou a sua própria marca de moda personalizada, a Gospel Estudios, que utiliza principalmente materiais excedentes e oferece transparência na sua cadeia de abastecimento. “Quando comprar algo da nossa marca, na etiqueta poderá ver o nome de cada pessoa que participou no projecto”, explica Bellerín. “Portanto, é uma etiqueta muito longa.” O defesa gostaria que mais jogadores se posicionassem sobre política e meio ambiente, embora compreenda porque alguns permanecem calados, receosos de reacções negativas da direcção dos clubes e dos fãs. “Porque temos a coragem de permanecer fiéis àquilo em que acreditamos, engolimos muita treta”, diz ele. “Eu mesmo, hoje em dia, não me importo com o que as pessoas têm a dizer sobre o que penso.” Os melhores defesas são líderes que se fazem ouvir no relvado. E Héctor Bellerín nunca teve medo de dizer como o jogo deve ser jogado.

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Voltaremos a ouvir o toirão-do-mato? Eis a história de uma espécie saudosa

O toirão-do-mato é uma pequena ave, de cerca de 15 centímetros de comprimento e 20 de envergadura, de tamanho e forma semelhantes a uma codorniz. Pese embora a semelhança com estes membros da família Phaisanidae, pertence não só a uma família própria (os Turnicidae), como a uma ordem completamente diferente, a dos Charadriiformes, que inclui uma panóplia de espécies geralmente aquáticas, como as aves limícolas, mas também as gaivotas e outras aves marinhas como os airos.No entanto, as aves desta família adaptaram-se a um modo de vida bastante distinto da maior parte das suas congéneres, passando o tempo em matos e zonas arenosas com vegetação ou até mesmo em selva com coberto arbustivo, mas longe da água. Quando ocorreu na Península Ibérica, o toirão-do-mato era particularmente associado a habitats com palmeiras-das-vassouras (Chamaerops humilis), endémicas do Mediterrâneo. Em termos físicos, embora ambos os sexos tenham uma plumagem bastante críptica, a fêmea exibe cores mais vivas, com tons avermelhados terrosos no dorso e creme no ventre, com uma mancha avermelhada na zona do papo, que se pode estender, e marcas em forma de V nos flancos. O seu período reprodutor é variável conforme a zona da sua área de distribuição e a disponibilidade alimentar, mas assume-se que na Península Ibérica se concentrasse nos meses de Primavera e Verão. Outras curiosidades: sendo uma ave omnívora, o toirão-do-mato alimenta-se tanto de insectos e pequenos invertebrados como de sementes e rebentos, e a maioria das populações é sedentária e, portanto, não migratória. Inversão de papéisO toirão-do-mato e as restantes aves da sua família apresentam um conjunto de características que as tornam, senão únicas, pelo menos muito raras dentro da sua classe. Ao contrário do habitual, nesta espécie são as fêmeas que, além de serem maiores e apresentarem uma plumagem mais vistosa (embora não muito mais), defendem territórios, constroem um ninho e emitem vocalizações com intuito reprodutor. São, aliás, estas vocalizações que dão o nome português (e também o espanhol torillo) à espécie: a fêmea emite um hummmmmm muito grave que lembra um mugido, enquanto o macho apenas responde com um ténue kekekeke. Estas aves também se destacam por apresentarem um sistema reprodutor poliândrico, no qual uma fêmea defende o seu território sendo visitada por vários machos com que acasala. Aquando da postura, que consiste tipicamente em 4 ou 5 ovos, a fêmea divide nos primeiros dias tarefas de incubação com o macho, mas, em períodos posteriores à eclosão das crias, é o macho que fica responsável por zelar pela descendência, alimentando-a e defendendo-a até que esteja pronta para se autonomizar, por volta dos 20 dias de vida.Turnix sylvaticus sylvaticus: uma subespécie à beira do abismoQuando olhamos para a ficha desta ave na União Internacional para a Conservação da Natureza, podemos ser surpreendidos ao constatar que esta espécie é considerada “abundante”, o estatuto de menor ameaça atribuído por esta organização. A nossa confusão aumentará, sem dúvida, quanto formos informados que, desde que foi declarada oficialmente extinta em Espanha em 2018, esta passou a ser a primeira espécie de ave a extinguir-se oficialmente na Europa continental em mais de um século e meio.Como conciliar estas informações aparentemente contraditórias? A resposta é relativamente simples: apesar de Turnix sylvaticus ser uma espécie de distribuição muitíssimo alargada, existindo na maior parte da África subsaariana e do subcontinente indiano, a sua subespécie que ocorreu na Península Ibérica é bastante mais rara. Na verdade, a única população que dela subsiste desde que existem dados fiáveis ocorre numa área relativamente diminuta em Marrocos e apresenta grandes flutuações populacionais, estando no entanto numa trajectória de declínio. Recentemente, foi também registada a sua ocorrência na Argélia, depois de 25 anos sem observações. Infelizmente, uma das duas aves registadas foi abatida acidentalmente por um caçador que a confundiu com uma codorniz. As causas do declínio tão acentuado desta ave, que era no século XIX frequente em habitat adequado na Península Ibérica, estarão no geral relacionadas com mudanças no regime agrícola e a destruição dos matos costeiros que esta espécie favorecia.Consta que, em Portugal, o toirão-do-mato foi particularmente comum no Sul, mas que também terá ocorrido no litoral dos distritos de Coimbra e Aveiro, assim como na zona de Abrantes. Em meados do séc. XX, desaparece por completo dos registos no nosso país. Mesmo tendo em conta que esta ave é de difícil observação quando não vocaliza, não é descabido considerar que se terá extinguido algures durante este período, sobrando apenas alguns exemplares em colecções de museu, como no Museu da Ciência de Coimbra, para lembrar que algum dia existiu.Em Espanha, o toirão-do-mato resiste mais algum tempo: o último registo palpável corresponde à captura de três exemplares em Doñana, em 1981, mas provavelmente a espécie terá subsistido mais um par de décadas, havendo registos ocasionais ao longo da década de 1990 nas províncias de Cádiz e Huelva. Mas em 2018 é finalmente dada como extinta, depois de mais de 20 anos sem registos fiáveis. Agora, o futuro da espécie no Paleártico Ocidental é uma incógnita. Voltará o toirão-do-mato a ouvir-se entre nós? Ou deixar-se-á minguar o seu último baluarte em Marrocos?

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“Método de loci”, a técnica ancestral serve para se lembrar de (quase) tudo

Em Orlando, no estado da Florida, uma dúzia de idosos reúne-se num YMCA duas vezes por semana. Alguns empurram andarilhos, outros deslizam em cadeiras de rodas. Após algum exercício ligeiro e piadolas, passam ao treino a sério – trabalhar os músculos da memória. A maioria deles enfrenta as primeiras fases de demência e espera conservar as suas memórias durante mais algum tempo.Estão a aprender uma técnica ancestral denominada “método de loci”, que transforma qualquer espaço familiar num sistema de armazenamento para nova informação. Quer lembrar-se da sua lista de supermercado? Associe o leite à fotografia de finalista da sua irmã que está na sala de estar – visualmente, de uma forma que quase parece absurda. Talvez imaginando o leite a escorrer do nariz dela? Associe maçãs à janela – uma série de Golden Delicious a partirem o vidro.O orador romano Cícero utilizava este método para decorar discursos há dois milénios. Actualmente, os “atletas de memória” que participam em competições utilizam-no para introduzirem milhares de pontos de dados nos seus cérebros. E agora a técnica ancestral está a ajudar pessoas de formas novas e surpreendentes – abrandando o declínio cognitivo, tratando a depressão e a perturbação de stress pós-traumático (PSPT) e até ajudando o cérebro a recuperar de lesões cerebrais traumáticas.Como os cientistas começam agora a descobrir, esta ferramenta complementa de formas surpreendentes o funcionamento normal dos nossos cérebros.O palácio da mente No Campeonato da Memória dos EUA, pessoas aparentemente vulgares demonstram possuir uma memória invulgar. Os concorrentes decoram centenas de palavras aleatórias, dezenas de histórias de vida de pessoas estranhas e a ordem de cartas de jogar baralhadas – tudo a uma velocidade relâmpago. É o tipo de pessoas capazes de debitar mil dígitos de Pi (π) sem o menor esforço.Todos eles usam variantes do método de loci, igualmente conhecido como “Palácio da Memória” ou método da “sala romana”. Os passos essenciais são muito simples: faça um mapa mental de um sítio familiar e depois crie associações entre itens e locais específicos ao longo de um caminho. Mas será fácil? Não necessariamente. O truque é usar a imaginação para tornar essas ligações mentais memoráveis – quanto mais estranhas, mais vívidas e mais estapafúrdias, melhor.Reza a lenda que o método foi inventado pelo poeta grego Simónides de Ceos, que saiu ileso da derrocada de um edifício no século V a.C. Simónides foi identificando as vítimas à medida que eram retiradas dos destroços, recordando-se de onde estavam sentadas em torno da mesa do banquete.No entanto, culturas nativas de todo o mundo já usavam técnicas parecidas muito antes disso. Trilhos de peregrinação de nativos americanos, versos de canções aborígenes australianas e estradas cerimoniais de ilhas do Pacífico seguem um padrão semelhante: os anciãos cantavam, dançavam ou contavam histórias em sítios específicos, tornando a informação memorável ao associarem informação a localizações e contextos.“É chocante para mim que isto ainda esteja tão pouco estudado quando foi a forma dominante de guardar informação de, literalmente, toda a civilização até ao aparecimento da imprensa”, diz o neurocientista Robert Ajemian, do MIT, que estuda como o cérebro usa o método de loci.Por que razão o palácio da memória funcionaA neurociência está a aprender aquilo que culturas ancestrais pareciam saber instintivamente. O método de loci utiliza as nossas capacidades naturalmente fortes de navegação espacial e memória visual – capacidades que a evolução aperfeiçoou ao longo de milhares de gerações.Embora quase ninguém seja naturalmente fantástico a lembrar-se de informação abstracta, como números ou palavras, o cérebro humano está concebido de modo a lembrar-se daquilo que vimos e de onde estivemos.Estudos recentes de imagiologia do cérebro mostram que utilizar o método de loci cria redes mais robustas estabelecendo ligações entre várias partes do cérebro envolvidas na memória: o córtex pré-frontal, o hipocampo e o córtex visual. Os praticantes da técnica do Palácio da Memória estão, literalmente, a reprogramar os seus cérebros de modo a serem mais eficientes na memorização. Uma vez dominada essa técnica, podem desenvolver sistemas elaborados de imagens personalizadas para representar números ou cartas de jogar, por exemplo, ou outras informações difíceis de recordar.Apesar da sua eficácia, as variações do método de loci não são amplamente ensinadas, nem amplamente investigadas, diz Ajemian – para sua grande frustração. Fomos demasiado rápidos a desvalorizá-lo como um truque, diz ele, em vez de o considerarmos uma ferramenta de aprendizagem preciosa que sustenta o conhecimento humano há milénios. A sua potencial aplicação mais pungente poderá ser na luta contra a demência.Uma nova esperança para as mentes em envelhecimentoPara Michael Dottino, a memória é um negócio de família. O seu pai fundou o Campeonato da Memória dos EUA e Michael deu formação de técnicas de memória a empresários e estudantes. Certo dia, o Centro Comunitário Judeu local pediu-lhe para experimentar algo novo: criar uma aula para idosos com princípios de demência.O programa do Instituto da Memória, do qual foi co-fundador juntamente com a treinadora de bem-estar Catherine Hagan, reúne os seus membros duas vezes por semana no Dr. P. Phillips YMCA, em Orlando. As sessões de quatro horas combinam treino de memória com actividade física, interacção social e exercícios cognitivos, como o método de loci. O objectivo, diz Dottino, é abrandar o ritmo de declínio dos participantes.Passados três anos, ele acha que os resultados do programa são encorajadores. Alguns dos primeiros participantes continuam a aparecer duas vezes por semana, mantendo o regime. Dottino chama uma deles, Karen Vourvopoulos, que conserva toda a sua função cognitiva.“A aula deu nova vida à minha mãe”, diz Matina Vourvopoulos, filha de Karen. “Ela está mais enérgica, inspirada, criativa e entusiasmada com a vida. Quem me dera que houvesse um Instituto da Memória para todos os idosos em todas as comunidades.”A neuropsicóloga clínica Erica Weber está a fazer abordagens semelhantes através de ensaios clínicos rigorosos. Existem poucos programas de memória – e separados por grandes intervalos – e os pacientes pagam-nos frequentemente do seu próprio bolso. Se estas estratégias conseguirem provar a sua eficácia, talvez as companhias de seguros comecem a comparticipá-las.Um dos desafios actuais, diz Weber, é que as principais fontes de financiamento para investigação sobre reabilitação – o Departamento de Defesa dos EUA e o Instituto Nacional para a Investigação da Incapacidade, Vida Independente e Reabilitação – estão a enfrentar grandes cortes (este último foi, inclusivamente, encerrado).A investigação tem-se mostrado promissora até à data. Um estudo de grande escala, financiado pelos Institutos Nacionais da Saúde, mostrou que o treino cognitivo pode ajudar adultos idosos saudáveis a manter e melhorar as suas capacidades mentais.Mas não é preciso esperar até à idade da reforma para começar a utilizar estratégias de memória como o método de loci. “Experimente praticar as estratégias antes de precisar de depender delas”, aconselha Weber. Pense nisto como a mensalidade de um ginásio cognitivo – é melhor começar a levantar pesos mentais antes de o músculo ficar fraco.Aplicações para além do envelhecimentoIsto significa que os idosos não são os únicos que podem beneficiar deste treino. Weber adapta o método de loci para ajudar pessoas com lesões cerebrais traumáticas – causadas por acidentes de viação ou quedas, por exemplo – a recuperarem a função cognitiva. Aquilo a que ela chama Técnica da Memória Narrativa Modificada decompõe os palácios da memória em componentes mais simples, como transformar informação verbal em imagens mentais.O leque de pacientes com quem trabalha tem vindo a alargar, incluindo pessoas com esclerose múltipla, deficiência cognitiva relacionada com o VIH e lesões da medula espinal com impacto na função cerebral.Talvez mais intrigante seja o facto de os especialistas em saúde mental estarem a explorar o Palácio da Memória como ferramenta terapêutica. As pessoas com depressão ou PSPT podem criar palácios cheios de memórias positivas – refúgios mentais para revisitarem durante tempos difíceis.O conceito faz sentido a nível intuitivo: se conseguirmos treinar o cérebro de modo a armazenar e recuperar de forma eficiente qualquer informação através da memória espacial, porque não treiná-lo para aceder a estados calmos e positivos quando mais precisamos deles?Na era dos smartphones, quando confiámos tantas tarefas da nossa memória ao Google e ao GPS as mnemónicas antigas são lembretes de quão surpreendentes os nossos cérebros são. Nas palavras da neurocientista Ajemian, do MIT, “utilizar estas técnicas é um exercício cognitivo fundamental, da mesma forma que a aeróbica é um exercício físico fundamental”.Os nossos antepassados transportavam bibliotecas inteiras na cabeça. Com alguma prática, poderemos, pelo menos, garantir que não nos esquecemos do leite.Este artigo, publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com, faz parte da série A Sua Memória, Reprogramada, uma exploração de National Geographic sobre as fronteiras difusas e fascinantes da ciência da memória – incluindo conselhos sobre como tornar a sua própria memória mais potente.

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Yellowstone ao entardecer

Esta fotografia de Sergi Reboredo mostra uma vista panorâmica da Grande Fonte Prismática no Parque Nacional de Yellowstone ao pôr-do-Sol, nos EUA. Esta nascente quente é conhecida pelas suas cores vibrantes e variadas, causadas principalmente pela presença nas suas águas de microrganismos termofílicos (têm a capacidade de se desenvolverem em condições de calor extremo).O facto de a fonte termal ter diferentes temperaturas ao longo do seu comprimento cria diferentes habitats para diferentes tipos de microrganismos, o que contribui para a variação de cores observada na fotografia.As bactérias termofílicas, em particular, são conhecidas por produzirem pigmentos que vão desde os azuis e verdes aos vermelhos e amarelos, dependendo da temperatura e das condições ambientais. É a combinação destes microrganismos e dos seus pigmentos que cria o espectro de cores que torna a Grande Fonte Prismática tão visualmente impressionante.

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Os quatro grandes mistérios que o Vera Rubin poderá resolver

No alto de uma montanha, no vasto deserto do Atacama, no Chile, um novo telescópio virou os seus olhos mecânicos para o céu, observando as estrelas com uma intensidade sem precedentes. O Observatório Vera C. Rubin irá captar centenas de imagens todas as noites ao longo dos próximos dez anos.Astrónomos de todo o mundo estão excitadíssimos por causa do Rubin, que recebeu este nome em homenagem à falecida astrónoma que descobriu provas da existência de matéria escura. Os espelhos do observatório irão recolher uma enorme quantidade de luz, captando o brilho de objectos ténues e distantes. Essa luz será focada pela maior câmara fotográfica digital do planeta, uma máquina com 3.200 megapixéis do tamanho de um SUV, capaz de produzir imagens a partir de vários comprimentos de onda de luz.Em vez de se focar num segmento de céu durante horas a fio, o Rubin foi concebido de forma a ter um campo de vista amplo, girando a cada cinco segundospara observar um novo local, tremendo o mínimo. Uma vez coladas, as observações irão produzir imagens em time-lapse sem precedentes de todo o céu nocturno, observado a partir do hemisfério Sul, revelando um universo vibrante.O início do funcionamento a 100 por cento do Rubin está agendado mais para o final deste ano, depois de os técnicos concluírem os últimos testes. E para onde se aponta um telescópio de 500 milhões de dólares americanos? Os cientistas prevêem que o observatório irá descobrir milhões de asteróides e cometas, vários milhões de supernovas 17.000 milhões de estrelas na Via Láctea, 20.000 milhões de galáxias e outros fenómenos astrofísicos que podem não ter sido detectados anteriormente. O nosso copo cósmico transbordou. Outros observatórios, em terra e no espaço, concederam-nos inúmeras maravilhas cósmicas, mas nenhum telescópio observou o céu nocturno como este irá observar.Poderemos pensar se 10 milhões de estrelas explosivas será demasiado e, com efeito, os astrónomos com quem falei sobre o Rubin dizem sentir-se um pouco assoberbados. “Há cem anos, íamos ao telescópio, recolhíamos os nossos dados, talvez numa placa fotográfica, trazíamo-los para casa e guardávamo-los numa gaveta da nossa secretária”, diz Pauline Barmby, astrónoma na Western University, no Canadá. Vai haver tantos dados “que teremos mesmo de encontrar muitas formas diferentes de os analisar”, diz Barmby.Os cientistas estão prontos para vasculhar as observações, que poderão ajudar a desvendar alguns dos maiores mistérios do universo, desde a forma como sistemas solares funcionam às forças de grande escala que impulsionam o futuro do universo.Conheça os quatro maiores mistérios que o Observatório panorâmico irá investigar.1. Em busca do esquivo “Planeta 9”Ao longo da última década, os astrónomos interrogaram-se sobre um mistério que poderá reescrever completamente os manuais científicos: existirá mesmo outro planeta no nosso sistema solar, algo do tamanho do Neptuno, à deriva na escuridão? Os cientistas referem-se a este mundo hipotético como Planeta Nove e o Rubin poderá esclarecer-nos sobre a sua existência. (Plutão, como deve saber, já não detém o título de nono planeta do sistema solar, tendo sido reclassificado como planeta anão em 2006, devido a várias definições astronómicas.)A teoria do Planeta Nove surgiu de observações de corpos celestiais gelados que orbitam para lá de Neptuno, numa região denominada cinturão de Kuiper. Alguns destes objectos parecem traçar órbitas inesperadas no espaço. Parece haver outra coisa, para além da gravidade do Sol, a influenciar os seus movimentos. Uma das explicações é a presença de um planeta gigante invisível, que exerça gravidade suficiente para moldar as suas viagens orbitais.Existem outras explicações para as órbitas estranhas, desde as mais extravagantes (talvez haja ali um buraco negro minúsculo ou provas que defendam uma nova teoria da gravidade) às mais mundanas (talvez não haja nada de estranho nas órbitas e a nossa imagem do cinturão de Kuiper esteja simplesmente incompleta.)Os telescópios existentes não são capazes de detectar o brilho ténue de um eventual planeta assim tão distante. Mas o Rubin poderá encontrar o Planeta Nove no seu primeiro ou segundo ano de funcionamento, diz Megan Schwamb, astrónoma da Queen’s University, em Belfast, na Irlanda do Norte. Os cientistas definiram uma área de busca no céu nocturno. Se o planeta lá estiver, “iremos vê-lo da mesma forma que vemos Plutão”, diz Schwamb – uma cabeça de alfinete brilhante, no meio das sombras escuras do cinturão de Kuiper, reflectindo a luz da sua estrela.Se não houver nenhum grande momento de o ‘X marca o local’ para o Planeta Nove, “isso não significa que ele não esteja lá”, diz Samantha Lawler, astrónoma da Campion College, no Canadá. “Pode simplesmente estar mais distante, ser mais pequeno ou menos reflector”. Os astrónomos terão de continuar a escrutinar o comportamento dos objectos trans-Neptunianos e o Rubin está prestes a descobrir 37.000 destes objectos, multiplicando o actual catálogo por dez. Num mar de corpos celestiais recentemente descobertos, poderão vir à tona evidências convincentes sobre o Planeta Nove ou irem completamente por água abaixo.Embora Schwamb e Lawler adorassem dar as boas-vindas a um novo planeta, estão entusiasmadas com a ideia de aprender mais sobre o reino existente para lá de Neptuno, que é intrigante por direito próprio. Os objectos congelados do cinturão de Kuiper são restos da formação do nosso bairro cósmico, comparáveis a raspas de borracha varridas da folha com a mão, e os astrónomos podem estudá-los para compreender melhor as suas eras passadas. “Não tenho dúvidas de que haverá outros padrões estranhos observáveis naquelas órbitas que irão conduzir a outras ideias interessantes sobre aquilo que poderá ou não existir actualmente no nosso Sistema Solar e a forma como este mudou ao longo do tempo”, diz Lawler.2. Descobrindo mais “visitantes” de outros sistemas solaresEm 2017, um telescópio terrestre instalado no Hawai captou um objecto invulgar a deslocar-se no Sistema Solar, desvinculado da gravidade do Sol. O Oumuamua, como foi posteriormente designado, levantou muitas questões sobre uma população cósmica previamente desconhecida e algumas conjecturas malucas sobre origens alienígenas ainda pairam por aí. Um segundo objecto surpresa, designado Borisov, apareceu em 2019, adensando ainda mais o mistério.O Rubin irá proporcionar muitas mais oportunidades de estudar estes objectos interestelares, que podem vaguear pelo interior da galáxia durante centenas de milhões de anos antes de encontrarem o calor de uma estrela. Estes objectos aparecem sem aviso prévio e deslocam-se rapidamente, por isso podem ser difíceis de apanhar – a não ser que estejamos constantemente a captar imagens em time-lapse do céu nocturno.Crê-se que os objectos interestelares foram projectados para fora dos seus sistemas nativos durante a formação dos planetas, uma época notoriamente turbulenta. (Pedaços do nosso próprio Sistema Solar, arremessados para longe há vários milhares de milhões de anos também devem flutuar algures na galáxia.) Alguns investigadores estimam que o Rubin, ao longo da sua década de funcionamento, possa descobrir entre cinco e 50 objectos interestelares. Chris Lintott, astrofísico de Oxford, é mais optimista, apostando em 100. É um grande leque, que sublinha quão nova e excitante é esta área de estudo. Sempre que o Rubin detectar um objecto interestelar, desencadear-se-á uma perseguição frenética: telescópios instalados em todo o mundo e no espaço irão acompanhar o alvo até ele sair do seu alcance, tentando averiguar como se desloca, qual a sua composição e – porque não? – se contém sinais de tecnologia artificial.Cada vagabundo cósmico encontrado pelo Rubin proporcionará mais um vislumbre sobre como poderá ter decorrido a formação dos planetas na Via Láctea. Será que os planetas gigantes como Júpiter, Saturno e Úrano são comuns em redor de outras estrelas? A imagem interestelar diária do Rubin poderá ajudar a responder a essa pergunta. Ou as suas conclusões poderão indicar que este tipo de planetas é mais raro do que pensamos. “Se encontrarmos muito poucos [objectos interestelares], acho que teremos de repensar que tipo de sistemas planetários existem na galáxia”, diz Lintott.Mesmo com o novo e potente observatório, é possível que os astrónomos não consigam rastrear os objectos interestelares até aos seus pontos de origem exactos, porque “já andaram muito pela galáxia”, diz Michele Bannister, astrónoma planetária da Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia. No entanto, podem analisar a sua composição química para recolher informações sobre a sua estrela-natal, incluindo a sua idade. Os cientistas podem até conseguir determinar se dois ou mais objectos interstelares são originários do mesmo aglomerado de estrelas. E podem utilizar o futuro catálogo do Rubin para testar várias teorias, incluindo se existem corredores inteiros destes objectos interestelares, serpenteando pela galáxia como fitas. Até uma pequena quantidade destes objectos “diz-nos muito sobre os processos que ocorrem em toda a nossa grande e maravilhosa galáxia”, diz Bannister.3. Completando a fotografia da Via Láctea A formação de galáxias é um processo conturbado, diz Barmby, a astrónoma da Western University. “Há gás a entrar, gás a sair, estrelas a formarem-se, estrelas a morrer e tudo isso acontece ao longo de cronologias super-longas que, na verdade, não conseguimos observar”. Por vezes, ao longo do processo, as estrelas de uma galáxia são atraídas pela força gravitacional de outra. Estes fenómenos são conhecidos como fluxos estelares e espera-se que o novo observatório revele muitas mais destes na nossa própria Via Láctea, pairando como abelhas em torno da rosa reluzente da galáxia.As observações do Rubin irão permitir aos astrónomos acompanhar o movimento de estrelas individuais durante longos períodos de tempo, podendo revelar se tiveram origem no interior da Via Láctea ou se vieram aos tropeções de uma galáxia vizinha.Também se espera que o Rubin descubra mais galáxias pequenas orbitando a Via Láctea, que poderão ter doado inadvertidamente algumas dessas estrelas. Cada galáxia tem a sua própria e fascinante personalidade cósmica: uma das mais pequenas tem apenas um punhado de centenas de estrelas, face aos 10.000 milhões de Via Láctea, diz Yao-Yuan-Mao, astrofísico da Universidade de Utah. Ele espera que o Rubin descubra todas as galáxias pequenas que possam, eventualmente, ser observadas, sem contar com aquelas que se encontram atrás do disco brilhante da Via Láctea, que permanecerão para sempre fora do alcance visual da Terra. “Vamos obter uma imagem super-completa do sistema da nossa Via Láctea”, diz Mao.E, comparando o nosso sistema galáctico com outros, os astrónomos podem abordar uma das perguntas mais excitantes da disciplina: se a forma como o cosmos funciona aqui, na nossa zona, é idêntica em todo o lado. “O conhecimento que inferimos do estudo da Via Láctea será aplicável, de forma geral, a todo o universo?”, diz Mao. “Ou haverá algo de especial ou único na Via Láctea?”4. Sondando a matéria escura e a energia escuraEnquanto capta imagens de milhões de objectos cósmicos, o observatório também andará em busca de duas coisas completamente invisíveis: matéria escura e energia escura.Todas as estrelas, galáxias, gás – toda a matéria que conseguimos observar – compõe apenas 5 por cento “de todas as coisas do universo”, diz Alex Drlica-Wagner, astrofísico da Universidade de Chicago. O resto é matéria escura, um tipo de matéria que não emite, nem absorve luz e constitui 25 por cento da composição do universo, e energia escura, uma entidade fantasma que representa até 70 por cento. Embora os cientistas nunca tenham observado nenhuma delas directamente, já viram o cosmos comportar-se de formas que sugerem a sua existência. O Rubin não revelará todos os seus segredos, mas a mera quantidade de dados recolhidos será um verdadeiro parque de diversões para os cientistas testarem as suas teorias sobre estes fenómenos.Os astrónomos começaram a suspeitar da existência de matéria escura na década de 1930, quando repararam que algumas galáxias permaneciam aglomeradas apesar de estarem a viajar suficientemente depressa para se afastarem, sugerindo que havia outra força a manter a rede galáctica intacta. Na década de 1970, a astrónoma que deu nome ao telescópio Rubin descobriu um efeito semelhante nos limites das galáxias, onde estrelas sibilantes que deveriam ter escapado, permaneciam fixas no seu lugar. A marca do material invisível até pode ser encontrado utilizando a própria luz das estrelas.A matéria escura consegue dobrar a luz quando passa por ela, fazendo com que a sua fonte – uma galáxia distante, por exemplo – pareça distorcida. O Rubin irá recolher essas vistas distorcidas, permitindo aos astrónomos “mapear onde se encontra a matéria escura ao observar a forma como a luz se curva ao viajar na nossa direcção”, diz Drlica-Wagner. Esses mapas podem ajudar-nos a esclarecer a natureza das partículas de matéria escura, incluindo se estas são quentes ou frias – características aparentemente pequenas, mas com a capacidade de reformular o nosso conhecimento da forma como o universo forma as galáxias.A energia escura é ainda mais misteriosa. A ideia surgiu na década de 1990, quando os astrofísicos calcularam que o universo estava a expandir-se mais depressa, em vez de estar a abrandar ao longo do tempo, algo que contrariava as leis da física que governavam o resto do cosmos. Foi determinado que a força por detrás do fenómeno era a energia escura, embora os cientistas não saibam, ao certo, o que é – apenas que parece comportar-se de uma forma diferente de tudo o resto no universo, diz Drlica-Wagner.Ao contrário da matéria escura, que como as coisas cósmicas normais é provavelmente composta por algum tipo de partículas, a energia escura estica o próprio tecido do espaço, afastando as galáxias em vez de as juntar. O enorme catálogo de estrelas explosivas do Rubin será útil para nos esclarecer sobre esta questão: os cientistas podem usar determinados tipos de supernovas para acompanharem a expansão do universo e, por sua vez, o papel nela desempenhado pela energia escura. Os dados do Rubin podem confirmar ou refutar novas teorias que sugerem que a energia escura está a mudar ao longo do tempo, em vez de se manter constante, revolucionando até as previsões de Einstein sobre esta força intrigante.Entusiasmo sobre o desconhecido No final, as descobertas mais excitantes do Rubin poderão ser algo que os astrónomos não previram. É esta a natureza dos telescópios novos e realmente bons: o entusiasmo por detrás de não sabermos aquilo que não sabemos. “Se alguém disser, nunca vi um coelho com 1,80 metros de altura, podemos responder OK, mas procuraste mesmo bem?”, diz Michael Wood-Vasey, um astrónomo da Universidade de Pittsburgh, que passou anos a ajudar a preparar o Observatório Rubin. Talvez o novo observatório, com o seu olhar constante e atento, descubra alguns coelhos cósmicos.

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Operação “Fúria Divina”: como a Mossad marcou o homem errado

As noites de Verão em Lillehammer, uma pequena cidade do Sul da Noruega, são confusas e brilhantes por causa de um sol permanente durante as 24 horas do dia. Nas margens do lago Mjøsa, cada dia de veraneio não encerra, empurra-se com a luz solar, um longo dia permanente.No entanto, no dia 21 de Julho de 1973, esse não era o evento mais estranho a desenrolar-se na recatada e sossegada urbe. Alertados pelo barulho de tiros, vários polícias acorreram a um pequeno bairro residencial onde, estendido sobre o passeio, jazia o cadáver de um homem. O choque normal de um homicídio vinha acrescido do facto de, em 36 anos, não ter ocorrido qualquer um destes crimes em Lillehammer. Um crime misteriosoA vítima foi identificada como Ahmed Bouchiki. Vivendo integrado há anos nesta comuna do Sudeste da Noruega, não havia qualquer motivo aparente para o crime. A maneira como ocorreu o assassinato, com recurso a vários tipos de armas e a lembrar uma execução, plantou em alguns residentes a teoria de que só podia ter sido uma emboscada. Uma delas, Toriil, esposa de Bouchiki, descreveu que o casal fora ao cinema e, depois de apanhar o autocarro para casa, desceu para caminhar na noite amena. Então, um carro a alta velocidade estacou perto de ambos. Dois indivíduos, armados com metralhadoras, saíram e balearam Bouchiki, enquanto outros dois permaneceram dentro do veículo. Os atiradores regressaram então à segurança do carro, que desapareceu a grande velocidade. No mesmo dia, um jovem de 16 anos foi encontrado atropelado a pouca distância do local onde Bouchiki tombou varado por balas. De início, a polícia norueguesa viu-se perdida. No entanto, algumas dicas chegaram aos ouvidos das autoridades, que rapidamente apanharam a inesperada pista das acções de serviços secretos de inteligência. A proveniência? Israel. Não soou tão descabido na altura como se calhar pode parecer. Afinal, que interesse teria este simples empregado de hotel, vigilante de piscina, para um governo como Israel? Mas era da suspeita geral que uma série de atentados cometidos em vários países europeus faziam parte de uma operação de vingança da Mossad.Será que Bouchiki era, afinal, um terrorista? A pista foi seguida e, no dia seguinte, quatro israelitas foram presos no aeroporto de Oslo, transportando consigo largas quantias de dinheiro e passaportes falsos. Dois outros cidadãos da mesma nacionalidade foram aprisionados no apartamento de um adido da embaixada israelita em Oslo. Os assassinos haviam fugido no dia anterior, estando em segurança em Israel. O caso estava, no entanto, muito longe de estar acabado ou sequer perto do seu início... que se dera no ano anterior.OS PRECENDENTESOs Jogos Olímpicos de Munique de 1972 ficaram irremediavelmente marcados pelos atentados do Setembro Negro, uma ramificação da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) que resultaram no rapto de membros da equipa olímpica israelita, num cerco de várias horas e, como resultado final, na morte de 11 israelitas, entre treinadores e atletas. O impacto mental do acto – judeus novamente a serem massacrados na Alemanha, nem trinta anos passados do final da Segunda Guerra Mundial – levou a primeira-ministra israelita Golda Meir uma operação conhecida hoje como “Fúria Divina”. A Mossad foi autorizada a dar caça e executar por qualquer meio os indivíduos envolvidos nos acontecimentos de Munique, entre terroristas, financiadores e mandatários políticos. A supervisionar tudo isto, estava o chamado Comité X, comandado por Meir e pelo ministro da defesa Moshe Dayan. Na coordenação da operação, estava o general Aharon Yariv e o líder dos serviços secretos israelitas Zvi Zamir. Mais importante do que matar terroristas, interessava a Meir uma exibição dramática de como qualquer inimigo de Israel nunca estaria seguro. Com a operação “Fúria Divina”, não interessava apenas matar criminosos. Era necessário fazê-lo de forma espectacular e visível. A mensagem era o mais importante.Quando Meir assistiu a três dos operativos do Setembro Negro envolvidos em Munique a serem libertados como moeda de troca depois do rapto de um avião da Lufthansa, qualquer dúvida moral desapareceu na sua mente. Foi elaborada uma lista com dicas de informantes palestinianos e de serviços secretos europeus. No topo desta lista, estava, Abu Daoud, considerado o autor moral dos atentados de Munique, e Ali Hassan Salameh, chefe de operações do Setembro Negro e seu principal financiador. A lista nunca foi revelada publicamente, mas estima-se ter entre 20 a 35 nomes, e os critérios que levaram o Comité X a atribuir responsabilidade pelos atentados a estes alvos nunca foram justificados. A NARRATIVA oficialNo entanto, o governo israelita devia manter o direito a negar qualquer ligação oficial aos ataques. As equipas foram formadas por pessoas que na sua maioria não trabalhavam na Mossad, mas possuíam habilidades que as tornavam valiosas. O único elemento da secreta israelita cuja ligação temos a certeza é Michael Harari.Os ataques iniciais correram bem, mas atingiram alvos pouco relevantes. Meir queira executar Salameh, visto pela Mossad como o verdadeiro operador do massacre de Munique. É aqui que as coisas começam a dar para o torto. Uma informação chegou aos ouvidos de Harari: Salameh estava prestes a viajar para a Escandinávia. Para tentar encontrar o local específico onde se alojaria, a Mossad seguiu um homem que, segundo a mesma fonte, era muito próximo de Salameh. Operativos israelitas testemunharam então uma conversa entre este indivíduo e o alegado Salameh, junto a uma piscina em Lillehammer. Membros da Mossad foram então convocados para uma rápida operação e o caso Salameh fica aparentemente resolvido: o terrorista palestiniano morrera baleado na rua junto a uma mulher.Como já deve ter calculado, Salameh não era Salameh: era Bouchiki; e o que a Mossad estava a fazer não cabia em qualquer provisão do Direito Internacional. A Noruega não deixou passar esta morte em claro. Como tal, a “Fúria Divina” tornou-se num acontecimento público. Por azar de Israel, um dos elementos capturados, Dar Arbel, era claustrofóbico e entrou em pânico mal foi introduzido na sua diminuta cela. Em troca de ser transferido para instalações mais amplas, divulgou tudo o que sabia quando interrogado pelos noruegueses. Isto levou a raids policiais noutras cidades europeias, como Paris ou Berlim, onde foram expostas casas de protecção, documentação comprovando a ligação do governo de Israel a toda a operação e, mais importante, elos entre a “Fúria Divina” e a morte de Bouchiki. Durante o julgamento em Oslo, foram reveladas algumas decisões infelizes, nomeadamente o facto de Mike Harari ter ordenado o ataque a Bouchiki perante a oposição de todos os agentes no local, que estavam convencidos de que o alvo não era Salameh. A Noruega não esqueceNinguém sabe quantos outros alvos desta operação eram inocentes ou culpados, acabando a justiça norueguesa a condenar a prisão todos os envolvidos que capturou. Israel tentou a libertação destes por via diplomática, sem sucesso. O único favor que conseguiu das autoridades nórdicas foi a classificação da sentença como top secret. Este segredo só viria a ser levantado em 2000, quando uma comissão do governo da Noruega reviu o caso e chegou à conclusão de que os serviços secretos de Israel eram os verdadeiros responsáveis pelo assassinato de Bouchiki.Israel nunca assumiu esta culpa oficialmente, mas um relatório de 179 páginas do governo norueguês deixa claro que não se tratou de um homicídio: foi uma violação total da soberania norueguesa e seguiu a actuação das autoridades polícias norueguesas, que dois anos antes haviam emitido um mandato de captura para Michael Harari, que morreu sossegadamente em casa com 87 anos de idade. Os eventos da “Fúria Divina” são retratados no filme Munique, de Steven Spielberg.

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Uma cor distinta

Ao contrário da tonalidade intensa dos adultos, os filhotes nascem cobertos por uma penugem branca ou acinzentada que muda gradualmente de cor. A sua famosa tonalidade rosada não é genética, mas sim adquirida com o tempo, graças aos carotenóides presentes nos pequenos crustáceos e nas algas que fazem parte da sua alimentação.O curioso é que, apesar do que muitas pessoas acreditam, nem todos os flamingos são rosados. A intensidade e o tom da sua plumagem variam de acordo com a dieta específica de cada população. Aqueles que se alimentam principalmente de crustáceos tendem a adquirir uma cor mais intensa, quase coral, enquanto aqueles que consomem mais algas ou certos tipos de moluscos podem apresentar um rosa mais pálido ou até mesmo alaranjado. Em áreas onde os alimentos ricos em carotenóides são escassos, os flamingos podem apresentar um tom mais apagado, o que, por sua vez, afecta a sua atractividade durante o cortejo. Essas mudanças permitem aos investigadores distinguir algumas populações das outras.

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São Miguel, Açores: Os desafios de ser ilhéu

Pode ouvir todos os episódios do programa “Em Terra de Ninguém” na sua plataforma de podcast favorita aqui: Spotify | Apple Podcasts. Metade do meu sangue é açoriano. Há 35 anos que venho ao arquipélago. A minha família é de São Miguel. Ao desembarcar nesta ilha verde, a surpresa é sempre constante. A começar pela humidade. O ar tem uma qualidade distinta, algo entre o fresco, o húmido e o salgado.Grande parte do tempo é passado no Vale das Furnas. O percurso até lá, pela estrada, é serpenteado, acompanhando a costa. E o oceano, obviamente, à minha direita, parece estender-se infinitamente. É um contraste com a vegetação densa à esquerda, onde pastam as chamadas vacas felizes de um lado e do outro. Sou uma pessoa de hábitos. Gosto de ir de Ponta Delgada até às Furnas pelo sul e regressar pelo norte. Não dá para escolher qual a estrada mais bonita porque ambas deixam o queixo no chão.Ser açoriano é entender que tudo o que o mar nos traz é muito mais do que uma boa refeição. É olhar em redor e acautelar a solidão.Quando chego às Furnas, o cheiro a enxofre invade o ar. E não é exactamente agradável, mas faz parte da identidade deste lugar. Caminho em direcção às caldeiras e o chão debaixo dos meus pés parece quente a certa altura. As fumarolas brotam do solo, deixando uma névoa espessa. Observo um grupo de locais a desenterrar enormes panelas da terra. O famoso cozido das Furnas, uma tradição fortíssima por aqui. É uma tradição longeva. As pessoas fazem principalmente aos fins-de-semana. É um cozido diferente.Sigo em direcção à lagoa, onde o silêncio é quebrado apenas pelos pássaros que voam baixo sobre as águas. Aqui é tudo. É a verdadeira protagonista do Vale das Furnas. Embora esteja habituado ao sotaque micaelense, há sempre diálogos impossíveis de entender.Vir aos Açores é mergulhar de cabeça no mar e na natureza. É deixar que os sentidos se apurem. É reparar nas pequenas coisas e seres. No pombo-torcaz, timidamente à espreita, nas nascentes que dão vida e alma a cada refúgio. Do vento às aves, da protecção das criptomérias à ondulação já comum no porto de pesca. Ser açoriano é entender que tudo o que o mar nos traz é muito mais do que uma boa refeição. É olhar em redor e acautelar a solidão.Vir aos Açores é mergulhar de cabeça no mar e na natureza. É deixar que os sentidos se apurem. É reparar nas pequenas coisas e seres. No pombo-torcaz, por exemplo.OS ILHÉUS ERGUEM A VOZMelhor do que explicar a ilha de São Miguel, adjectivá-la e narrá-la, é ouvi-la... e registá-la:“Ser ilhéu é viver numa permanente inquietação, desafio e aventura”, define-se assim, sorrindo, o meu tio Manuel Gago da Câmara. A minha prima Teresa, também Gago da Câmara, fala-me, com voz pausada, de uma das dificuldades de viver numa ilha. A arte, a cultura, a saúde e a educação nem sempre chegam com a mesma fluidez que no resto do país: “Na outra parte do país, a pessoa pode deslocar-se de carro e procurar ajuda. Aqui temos sempre a questão do avião. Podemos ficar presos com mau tempo ou não haver vagas, e a despesa é sempre superior.” Há um tom de lamento, mas também de consciência prática: “E quando falo de cultura, estamos muito limitados: espectáculos, concertos, apresentações de livros. Para as crianças, até a História de Portugal pode ficar distante, porque não é tão simples levá-las a ver castelos, museus ou fortalezas. E nem todos os pais têm possibilidade de comprar esse bilhete.”Já a Maria, outra prima, vê o copo meio cheio: “Viver em São Miguel continua a ser um cantinho do céu. Temos tudo relativamente perto, conseguimos acompanhar as actividades da nossa filha, e com o novo hospital até a saúde melhorou.” Há desafios, sim – como a educação superior, que obriga, muitas vezes, à saída de São Miguel –, mas há uma qualidade de vida que continua a ser rara: “Ainda é um bom sítio para viver. Um bom sítio para ver os nossos filhos a crescer.”“Para as crianças, até a História de Portugal pode ficar distante, porque não é tão simples levá-las a ver castelos, museus ou fortalezas. E nem todos os pais têm possibilidade de comprar esse bilhete.”(Teresa Gago da Câmara)Mais uma prima, a Helena Cardoso Dias, junta-se à conversa: “[Ser ilhéu] é ter que esperar duas horas para um avião que chega atrasado mais duas horas e que demora mais duas horas para chegar ao seu destino mais próximo. Mas, ao mesmo tempo, é muito bom viver numa ilha onde toda a gente quer vir de férias. E nós, estamos cá. A viver.”  Por fim, Nuno Cardoso Dias, o seu marido, expõe a sua realidade de forma poética e dialética: “Toda a ilha tem duas linhas. Uma em que a terra acaba, outra do horizonte. O maior desafio do ilhéu é escolher em qual destas linhas se concentra.”Viver numa ilha pode não ser fácil. Mas, como bem dizem por cá, faz com que a pessoa se torne sempre mais viva. E isso sente-se. À flor da pele. E do mar.

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Porque se celebra hoje o Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação

Desde cedo, a literatura médica veicula a ideia dos transplantes, embora durante muito tempo esta se tenha apenas materializado através dos enxertos de pele. Sim, havia no livro Legenda aurea, do arcebispo Tiago de Voragine, a descrição de um milagre que envolvia um transplante de um membro inferior, mas era apenas a imaginação do escritor e teólogo medieval a funcionar.É no século XIX que se começa a realizar esta operação com resultados positivos, ainda que limitados. Só nos anos 50 do século XX é que se consegue aperfeiçoar a todos os níveis esta técnica. E é precisamente nesta década que são efectuados os primeiros transplantes com sucesso de um órgão interno – o rim, o candidato ideal a este posto, uma vez que podia ser doado em vida sem necessariamente diminuir a qualidade de vida do doador. O primeiro caso de transplante bem-sucedido dá-se entre os irmãos gémeos Herrick, por iniciativa do cirurgião Joseph Murray, em 1953: Richard, que recebeu o rim saudável do seu irmão Ronald, viveu mais 8 anos após a operação. Poucos anos depois, em 1959, seria levado a cabo o primeiro transplante renal entre indivíduos não geneticamente idênticos (embora fossem irmãos gémeos fraternais), com ainda mais sucesso: o paciente viveria 25 anos após a cirurgia. A introdução da imunossupressão em 1962 torna possível o transplante renal entre pacientes sem relação familiar e, no final da mesma década, já se ensaiam transplantes de outros órgãos, como fígado, pâncreas, pulmões e, finalmente, coração.Com o avanço das técnicas cirúrgicas e de medicamentos imunossupressores/modeladores, as taxas de sucesso melhoram rapidamente e, hoje, além de ser possível o transplante de todos estes órgãos com alta taxa de sucesso, é também viável o transplante de estruturas complexas como membros, a face ou estruturas tão delicadas como a córnea.Transplantação em PortugalDentro de portas, o grande pioneiro da transplantação foi o médico Alexandre Linhares Furtado, pertencente à época aos quadros dos Hospitais da Universidade de Coimbra (que é aí homenageado hoje). É devido à sua operação de transplante renal, a 20 de Julho de 1964, no mesmo dia em que Neil Armstrong e Buzz Aldrin pisavam a Lua, que se escolheu este dia para celebrar a doação de órgãos e a transplantação no nosso país. Ao abrigo da lei portuguesa, qualquer pessoa pode, desde que saudável e na plena posse das suas faculdades mentais, oferecer-se como dador vivo de rim, fígado ou de medula óssea. Quanto aos restantes órgãos, são, por óbvias razões, apenas possíveis de obter a partir de dadores cadáver. Neste caso, a legislação em vigor assume todos os cidadãos como dadores por defeito, desde que cumpram alguns requisitos: a morte tem de ser em contexto hospitalar, de causa conhecida e não infecto-contagiosa ou cancerígena, e o corpo tem de ser, após a morte cerebral ou falência cardio-respiratória irreversível, mantido artificialmente até ao momento da recolha dos órgãos.É-lhe permitido, no entanto, recusar o uso dos seus órgãos, sendo necessário para isso a sua inscrição no Registo Nacional de Não-Dadores. Esta recusa pode ainda ser apenas parcial: ou seja, pode autorizar o uso de rins ou fígado para fins médicos, mas não do coração, por exemplo.

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A beleza da diferença

Dois dias após o Natal de 2023, uma ave em particular chamou a atenção de Hugo Marques durante um passeio pela Estrada do Zambujal como vista para o estuário do Sado. Porquê? Distinguia-se das suas companheiras por ter uma deformação no bico. A deformação, ou "diferença", como lhe chama o autor desta fotografia, porém, não a impedia de se alimentar.Na verdade, Hugo estava perante um flamingo-comum (Phoenicopterus roseus), uma ave bastante abundante nos estuários do Sado e do Tejo, podendo ser observada praticamente todo o ano em várias zonas do continente, apesar de não ser nidificante por cá. Mas nem sempre foi assim: antes da década de 1980 eram de facto bastante raras as observações no nosso país desta emblemática ave.

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A primeira natureza

"Se a ideia de natureza selvagem do governo era devolver a terra à sua forma anterior, porque não devolver os Apaches à sua forma anterior?". Kathleen Orlinsky, a autora da imagem, recorda as palavras que lhe foram ditas por Joe Saenz, membro da Nação Apache Chiricahua e guia de montanha em Gila, uma floresta nacional protegida. Não existe uma palavra específica para "natureza selvagem" na língua apache que ele fala, apenas uma palavra para terra: benah.

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As notícias da morte destas criaturas foram manifestamente exageradas

Criado originalmente para um contexto paleontológico, designando uma espécie (ou outro taxon) que desaparecia do registo fóssil apenas para voltar a aparecer numa data posterior, o conceito “espécie Lázaro” foi estendido à biologia da conservação e à ecologia, aplicando-se a uma espécie considerada extinta, mas que é redescoberta mais tarde como ainda viva.Embora compreensivelmente este fenómeno seja mais típico de zonas remotas e pouco exploradas, nem sempre é o caso. O nome, como deve imaginar, é uma alusão bíblica, referindo-se ao episódio em que Jesus Cristo ressuscita Lázaro de Betânia quatro dias após a sua morte. Conheçamos, então, algumas destas espécies cujos relatos da sua morte, tal como os da de Samuel Clemens, revelaram ser exagerados:1. O celecanto (Latimeria chalumnae e Latimeria menadoensis)Comecemos por um dos mais famosos membros desta categoria, ou antes, por dois: as duas espécies vivas de Latimeria, membros únicos vivos da ordem Coelacanthiformes. A ordem a que pertencem é uma das mais antigas linhagens de peixes, remontando os seus primeiros fósseis ao Devónico, há mais de 440 milhões de anos. Embora a documentação existente apontasse para que tivessem sido comuns e diversas, estas criaturas desapareceram totalmente do registo fóssil há cerca de 66 milhões de anos, tendo-se assumido que se teriam extinguido nesta altura… até 1938, quando um pescador apanhou um exemplar do que viria a ser baptizado como Latimeria chalumnae ao largo da África do Sul.Foi a naturalista e curadora Marjorie Courtenay-Latimer (cujo último nome serviria para baptizar o género) que reconheceu o exemplar como algo de excepcional e contactou o seu colega ictiólogo J.L.B. Smith, da Universidade de Rhodes, que o identificaria como um parente próximo dos celecantos fósseis. Mais tarde, e depois de se estabelecer que a população do Oceano Índico Ocidental se centrava nas ilhas Comores, seria ainda descoberta uma segunda espécie ao largo da Indonésia, em 1999.2. O tacAé-do-sul (Porphyrio hochstetteri)O tacaé-do-Sul (takahē, em maori) é o maior dos ralídeos, um grupo de aves espalhado por todo o mundo – muitas vezes, das primeiras a colonizar ilhas – e que é representado no nosso país por espécies tão familiares como a galinha-de-água, o galeirão e o outrora ameaçado caimão (Porphyrio porphyrio), seu congénere e portanto parente próximo.Nativo da Nova Zelândia, como muitas aves de ilhas sem predadores, perdeu a capacidade de voar, o que levou a que fosse facilmente caçado, não só pelos humanos (tanto europeus como maori), mas também pelos mamíferos introduzidos.Ao contrário de muitos dos seus parentes, não está associado a zonas húmidas, mas a prados, muitas vezes em zonas montanhosas. Em 1898 foi considerado extinto, mas cinquenta anos depois, Geoffrey Orbell e os seus companheiros encontraram a última população existente nas montanhas Murchison, Fiordland.3. A taça de Neptuno (Cliona patera)Esta enorme esponja do oceano Índico, que pode alcançar mais de um metro de diâmetro, foi descoberta em 1822 e, durante algumas décadas, chegou a ganhar alguma popularidade enquanto banheira para bebés.No entanto, na década de 1870, e devido à exploração comercial, estava aparentemente extinta em Singapura, de onde era principalmente extraída, e os últimos exemplares vivos foram avistados em 1908, ao largo da Indonésia...até 2011, quando, depois de alguns indivíduos mortos darem à costa na Austrália na década de 1990, foram finalmente avistados dois indivíduos jovens no fundo oceânico ao largo da ilha singapurense de St. John.4. A MOSCA Thyreophora cynophila Nem sempre as espécies Lázaro ocorrem em lugares remotos: esta curiosa espécie de mosca, com uma cabeça de uma cor laranja berrante, foi descrita em 1798 pelo naturalista alemão Georg Wolfgang Franz Panzer, depois deste a ter recolhido de um cadáver de um cão na cidade de Mannheim.Desde 1849 que os registos desta espécie se tinham reduzido a um zero constante. O último espécime foi localizado perto de Paris, em França e, a partir desse ano, assumiu-se a extinção de uma espécie que, durante mais de um século, foi citada como um dos poucos endemismos europeus a ter sido levado à extinção. Qual não foi a surpresa quando, em 2010, esta mosca foi registada não em um, mas em dois locais de Espanha, num total de seis indivíduos, por uma equipa que estudava as populações de moscas em cadáveres a fim de auxiliar a polícia em métodos forenses. Entre um registo e outro, tinham-se passado mais de 160 anos, e centenas, ou milhares, de quilómetros.5. A Rã pintada da Palestina ou Rã pintada de Hula (Latonia nigriventer)Este anuro – inicialmente descrito como uma espécie de Discoglossus, mas que mais tarde se revelou o único membro vivo de um género até então apenas conhecido no registo fóssil da Europa, o Latonia – era conhecido apenas pelo registo de cinco exemplares do lago Hula, tendo sido dado como extinto na década de 1950 quando os pântanos da região foram drenados para construção.No entanto, e depois de investigadores da organização A Rocha terem alertado para a possibilidade de terem avistado um indivíduo da espécie rã pintada da Palestina, foi confirmado em 2013, com base numa observação de 2011, que esta resistia nas zonas húmidas circundantes, entretanto restauradas. Estima-se que a sua população seja, hoje em dia, de algumas centenas de indivíduos, apesar de a área de ocorrência conhecida ser muito diminuta: cerca de dois quilómetros quadrados!6. A lagosta-das-árvores ou bicho-pau de Lord-Howe (Dryococelus australis)A lagosta-das-árvores, um enorme fasmídeo sem asas, endémico da ilha de Lord Howe e ilhéus circundantes, chegou a ser comum na ilha principal do pequeno arquipélago, situado entre a Austrália e a Nova Zelândia, no mar de Tasman.A sua condição mudou, no entanto, com o naufrágio do navio SS Makambo em 1918, que introduziu a ratazana-negra Rattus norvegicus na ilha. Em dois anos, o novo morador tinha acabado completamente com a população local destes insectos, e mais nenhum foi avistado durante as décadas seguintes.Eis que, em 1964, uma equipa de montanhistas que visitou o ilhéu da Pirâmide de Ball, ali próximo, relatou ter avistado um cadáver de um destes animais. No entanto, seria apenas em 2001 que os cientistas australianos David Priddel e Nicholas Carlile seriam capazes de confirmar a sobrevivência deste animal, que foi imediatamente apelidado de “insecto mais raro do mundo”, visto que apenas foi possível detectar 24 indivíduos vivendo debaixo de arbustos da planta Melaleuca howeana. Desde então, programas de reprodução ex-situ tornaram possível o crescimento da população para vários milhares em jardins zoológicos por todo o mundo, que hoje estão a ser preparados para uma futura reintrodução após o extermínio planeado do seu predador introduzido na ilha principal.

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MIND, a dieta que pode desacelerar o envelhecimento do seu cérebro

Muitas pessoas temem perder a sua agilidade mental com a idade. Não admira que assim seja, uma vez que todos estamos a par do aumento das taxas de demência à medida que a população envelhece: um estudo publicado na edição de Janeiro da revista Nature Madison sugeriu que é possível que o número de adultos norte-americanos com demência duplique até 2060, alcançando um milhão de pessoas. É um clube ao qual ninguém quer pertencer. Felizmente, a ciência está a mostrar que os hábitos de alimentação saudáveis podem ter um impacto poderoso na protecção da função cognitiva e da memória.Criada em 2015 por investigadores que estudam os efeitos da alimentação na função cerebral e no declínio cognitivo, a adequadamente designada dieta MIND combina a dieta mediterrânica – com o seu foco em cereais integrais, fruta, vegetais, leguminosas e azeite – com a dieta DASH, rica em frutas e vegetais (concebida para prevenir ou tratar a hipertensão). Efectivamente, a dieta MIND resume-se a consumir alimentos mais ricos em nutrientes, como legumes de folha verde e bagas, evitando alimentos altamente processados e teores elevados de gorduras saturadas.Estudos mostram que a dieta MIND está associada a uma melhor função cerebral e pode até contribuir para abrandar o declínio cognitivo relacionado com a idade. As pessoas mais fiéis à dieta MIND sentiram um envelhecimento mais lento dos seus cérebros – o equivalente serem 7,5 anos “mais novas” do que as que não seguem tanto os seus princípios.A dieta MIND (abreviatura de Mediterranean-DASH Intervention for Neurodegenerative Delay, ou seja, Intervenção Mediterrânica-DASH para Atraso Neurodegenerativo) também pode desempenhar um papel na protecção contra a doença de Alzheimer e a demência. Num estudo que acompanhou adultos de meia-idade e idosos durante uma média de quatro anos e meio, aqueles que seguiram mais de perto a dieta MIND demonstraram taxas mais baixas de doença de Alzheimer. Até as pessoas que a praticavam de forma moderada demonstraram um risco decrescido de doença de Alzheimer, melhor do que os que os que praticavam moderadamente as dietas mediterrânica ou DASH. Uma vez após outra, em estudos com adultos porto-riquenhos residentes na área de Boston e adultos de meia-idade e idosos na China, a investigação demonstrou que praticar uma dieta semelhante à MIND está associado com melhor função cognitiva global e menos declínio ao longo do tempo.Mesmo iniciada numa fase mais tardia da vida,a dieta MIND está associada a uma redução constante do risco de demência, segundo numa nova investigação apresentada na reunião anual da Sociedade Americana para a Nutrição. Aqueles que melhoraram a sua adesão à dieta MIND ao longo de um período de dez anos, manifestaram menos 25 por cento de riscos de desenvolver demência.As conclusões são promissoras, não só para os idosos, mas também para os mais jovens. Mulheres de meia-idade obesas que praticaram a dieta MIND durante três meses demonstraram mais melhorias na sua memória funcional, memória de reconhecimento verbal e atenção, comparadas com mulheres que seguiram uma dieta de restrição calórica. Um estudo publicado na edição de Abril de 2025 da revista Child Neuropsychology concluiu que as crianças com entre sete e 13 anos cuja alimentação se parecia mais com a dieta MIND tinham “probabilidades significativamente mais baixas de Perturbação de Hiperatividade/Défice de Atenção”, comparadas com crianças cuja alimentação era menos parecida.Os segredos dos seus poderes protectores? Os alimentos da dieta MIND diminuem a inflamação e o stress oxidativo, ambos maus para o cérebro.Comer de uma forma boa para o cérebroA dieta MIND não é rígida. É mais um estilo de vida e uma forma de pensar nos alimentos que são melhores para o corpo e para o cérebro. Baseia-se num sistema de pontos que classifica as pessoas em função de quão fiéis são à dieta: quanto mais alguém aderir aos princípios da abordagem MIND – consumindo, maioritariamente, alimentos à base de vegetais, gorduras saudáveis e proteínas magras, e evitando alimentos altamente processados gorduras saturadas e congéneres – maior a sua “classificação”.“Uma das belezas da dieta MIND é não termos de ser perfeitos e sentirmos vantagens na mesma”, diz Christy Tangney, professora de nutrição clínica e medicina familiar e preventiva no Centro Médico da Universidade Rush, em Chicago, e uma das criadoras da dieta MIND. “A dieta MIND oferece mais flexibilidade do que as dietas Mediterrânica ou DASH.”Os elementos principais da dieta MIND são:legumes de folha verde-escura (espinafres, couve kale, acelga, repolhos, rúcula); outros vegetais coloridos como espargos, brócolos, couves-de-bruxelas, cenouras e pimentos; bagas (todos os tipos); azeite extra virgem; e frutos secos como amêndoas, nozes e pistácios. Igualmente importantes são cereais integrais como o arroz integral e selvagem, quinoa, cevada, espelta aveia e pães integrais, leguminosas, e peixes e aves (carne branca, sem pele). E sim, o vinho é permitido, com moderação.Esta dieta também incentiva as pessoas a evitarem (ou, pelo menos, reduzirem) as carnes vermelhas e processadas, manteiga e margarina, queijos gordos, bolos e outros doces, fast food e alimentos fritos. “Um dos nossos principais objectivos é reduzir a gordura saturada e o consumo adicional de açúcar”, diz Tangney, porque promovem a inflamação.A verdade é que a dieta MIND, a dieta mediterrânica e a dieta DASH têm muito em comum – ênfase nas frutas, vegetais e cereais integrais, e evitamento de gorduras saturadas, carnes vermelhas e processadas, alimentos fritos, fast food e doces. Enquanto a dieta DASH privilegia o consumo restrito de sódio e a incorporação de lacticínios magros, a MIND não. E embora os alimentos de base vegetal recomendados nas três dietas sejam semelhantes, a dieta MIND concentra-se mais nos legumes de folha verde, bagas e frutos secos.Como a dieta MIND combate a inflamaçãoMuitos dos alimentos valorizados na dieta MIND – como os legumes de folha verde e as bagas – possuem um teor elevado de compostos vegetais chamados flavonóides, que têm poderosos efeitos antioxidantes e anti-inflamatórios, diz Natalia Palacios, epidemiologista e professora associada de saúde pública na Universidade de Massachusetts Lowell. “O stress oxidativo e a inflamação fazem muito mal ao cérebro – e os antioxidantes, sobretudo os flavonóides, ajudam a reduzir a inflamação.”Entretanto, “o peixe, que é valorizado na dieta MIND, é desde há muito considerado um dos alimentos mais saudáveis para o cérebro devido ao seu teor elevado de ácidos gordos ómega-3, que ajudam a proteger os neurónios de danos”, diz Palacios. “Quanto mais velhos ficamos, mais inflamação temos no cérebro e no corpo”, explica Rudy Tanzi, neurocientista e director do Centro McCance de Saúde Cerebral no Massachusetts General Hospital. “É a inflamação neurológica que conduz à disfunção no cérebro, bem como a danos nas células nervosas e morte celular”.“Quanto temos uma inflamação que desencadeia a morte celular, desenvolvemos mais inflamação e torna-se um círculo vicioso”, acrescenta Tanzi. “O maior benefício da dieta MIND é combater a inflamação e os danos causados pela inflamação.”Outra das suas vantagens reside no facto de o teor de fibras e a diversidade dos nutrientes vegetais alimentarem o microbioma intestinal de uma forma positiva, fazendo com que “tenha mais bactérias protectoras e menos bactérias nocivas”, comenta Tanzi. Por sua vez, isto exerce um efeito ascendente positivo na saúde cerebral.A dieta MIND até pode influenciar o volume total do cérebro, para além de estimular funções cognitivas como a memória verbal, a memória visual, a velocidade de processamento e a compreensão e o raciocínio verbais, conforme relatado por um estudo.“Em termos de integridade do cérebro, os polifenóis e outros antioxidantes preservam o volume do hipocampo e a integridade da matéria branca”, explica Uma Naidoo, directora de nutrição e psiquiatria de estilo de vida no Massachusetts General Hospital, em Boston e autora de This Is Your Brain on Food.Com efeito, um estudo publicado em 2023 na revista Alzheimer’s & Dementia concluiu que as pessoas que praticavam uma alimentação mais parecida com a dieta MIND tinham volumes maiores do hipocampo, tálamo e outras regiões essenciais do cérebro – que desempenham papéis fundamentais na memória, aprendizagem, controlo motor, atenção e regulação emocional – e menos hiperintensidades de matéria branca (indicadoras de danos nos tecidos), observadas em exames de ressonância magnética.Em última análise, a dieta MIND recorda-nos de que aquilo que comemos afecta tanto o nosso cérebro, como o nosso corpo. “O mais importante para a saúde do cérebro é a qualidade e a coerência da alimentação, dia após dia, ano após ano”, diz Palacios.“Não é uma questão relacionada com a idade”, acrescenta Naidoo. “Eu acho que deveríamos comer sempre assim. Queremos que as pessoas estejam sempre a pensar na saúde do seu cérebro.”Este artigo, publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com, faz parte da série A Sua Memória, Reprogramada, uma exploração de National Geographic sobre as fronteiras difusas e fascinantes da ciência da memória – incluindo conselhos sobre como tornar a sua própria memória mais potente. A National Geographic Society, empenhada em divulgar e proteger as maravilhas do nosso mundo, financiou o trabalho do Explorador Steve Ramirez. Saiba mais sobre como a NGS apoia os seus Exploradores.

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Uma tendência pós-pandémica: a aventura chegou às cidades europeias

Fazer as malas para uma escapadela urbana costumava envolver sapatos confortáveis, um ou dois conjuntos mais elegantes, muito apetite e um fígado resistente. O importante é desfrutar e passear um pouco para ver as vistas e prevenir a gota.O conteúdo das malas pode ser muito diferente hoje em dia: fatos de banho, sapatilhas, botas de caminhada, calçado à prova de água, equipamento desportivo e talvez até um fato de Lycra. Isto deve-se ao facto de haver muito mais para fazer do que provar menus de degustação e vinho artesanal em muitas das nossas cidades europeias preferidas.Os trilhos de ciclismo e corrida são agora comuns – uma parte integral de quase todas as cidades, menos das mais assumidamente sedentárias. Nos últimos anos, porém, surgiram inúmeras aventuras urbanas ao ar livre, que proporcionam aos visitantes uma nova perspectiva, simultaneamente empolgante e cheia de endorfinas.Andar de paddleboard no centro histórico de Liubliana. Descer em rapel uma ponte com 70 metros de altura sobre o rio Douro, no Porto. Nadar numa barcaça transformada em Berlim. Surfar num antigo canal em Roterdão. Andar de caiaque junto a palácios do século XIII em Estocolmo. Esquiar (para baixo) ou escalar (para cima) uma central eléctrica em Copenhaga. As opções são tão variadas como inovadoras.Noutras paragens, os viajantes podem misturar as vistas com escaladas em estádios e caminhadas até terraços, aventuras de corrida livre, excursões de canoa, expedições de bicicleta eléctrica e – em algumas cidades costeiras – uma introdução ao e-foiling (surf, mas sem se cansar a remar).O que está a impulsionar esta mudança? Um foco pós-pandémico na saúde física e mental, certamente. Um relatório recentemente preparado pela Neilson Beach Clubs, proprietária de vários resorts na Europa, incluindo na Grécia, na Croácia e na Sardenha, concluiu que mais de três quartos dos inquiridos deseja incluir alguma actividade durante as férias – um padrão que se espelha no sector das fugas de fim-de-semana.“Agora que a saúde e a boa forma são uma parte integral da nossa cultura, as pessoas estão a escolher programas de férias com ênfase no bem-estar, em vez das tradicionais vistas”, diz David Taylor, presidente executivo da Neilson.Lena Andersson fundou a Go! Running Tours em Copenhaga em 2013. Uma dezena de anos mais tarde, a empresa que organiza percursos de visita em jogging funciona em quase 80 cidades de todo o mundo – mais de metade das quais na Europa. No seu entender, o aumento explosivo da popularidade da corrida só explica parte da proliferação. Para cada corredor habitual que ela e a sua rede de guias recebem, existem muitos corredores novos em busca de animar a sua fuga urbana com algo invulgar e imersivo.“Os visitantes querem explorar a cidade mais profundamente”, diz ela. “Querem misturar-se, interagir e criar ligações com os habitantes locais, receber dicas e recomendações. No final de uma visita, já viram os principais pontos de interesse, mas também já sabem tudo sobre o guia que os acompanhou. Já encontraram os sítios onde vão beber café durante a estadia e os seus restaurantes preferidos.”Embora alguns turistas de fim-de-semana levem o seu estilo de vida activo com eles, outros estão a ser forjados pelos próprios destinos.Graças a climas mais quentes, mais horas de sol e um planeamento urbano ‘centrado no ser humano’, muitos dos destinos urbanos de fim-de-semana incluem actividade no seu ADN. E isso é algo que os turistas querem experimentar cada vez mais.“As pessoas não vêm a Copenhaga por causa das grandes atracções turísticas, uma vez que não as temos”, diz Giuseppe Liverino, do Wonderful Copenhagen, o departamento turístico da capital dinamarquesa. “Vêm pelo estilo de vida. Andar de bicicleta para todo o lado, alugar um caiaque, dar umas braçadas no mar, um mergulho no gelo seguido por uma ida à sauna. Não são actividades fabricadas – é o que os residentes fazem. Aquilo que os turistas querem actualmente é uma mistura de experiências autênticas e ‘fora da caixa’.Dar algo em TROCALena está convencida de que a sensibilidade ambiental contribui para esta tendência. “Se formos a uma cidade e utilizarmos a nossa própria energia para nos deslocarmos, estamos a reduzir o impacto nesse local”, afirma. Alguns visitantes vão mais longe e tentam ter um efeito positivo visível. A GreenKayak tem operações em cerca de 20 cidades europeias, permitindo aos visitantes pedirem um caiaque emprestado em troca de recolherem lixo. Até à data, quase 85.000 pessoas já participaram nesta actividade. “É uma vitória tripla”, diz o fundador Tobias Weber-Andersen. “As pessoas podem ser activas, explorar a cidade de novas formas e dar algo em troca. Sentem que estão a contribuir.”As aventuras ao ar livre têm outra vantagem, sobretudo no nosso tempo de restrições financeiras: são acessíveis. Se planear um itinerário urbano em torno de marcos históricos, espectáculos e restaurantes da moda, os custos podem subir rapidamente. Se for nadar, alugar uma bicicleta, numa prancha de paddle ou nuns patins, o preço será comparativamente modesto. E também permite às pessoas com pouco tempo permite ver mais coisas em menos tempo.O subtil, mas inevitável, casamento do desporto com o marketing turístico também alimenta o interesse pelas aventuras urbanas activas. Barcelona foi a anfitriã da America’s Cup, Paris foi a cidade anfitrião dos Jogos Olímpicos no ano passado… as cidades andam atrás dos grandes eventos desportivos na mesma forma que as marcas sempre cortejaram as grandes estrelas do desporto. Porquê? Porque isso lhes dá atenção global, posiciona-as como dinâmicas e activas e garante um fluxo generoso de visitantes que partilham esse ponto de vista.Inevitavelmente, as redes sociais também desempenham o seu papel. Ninguém faz uma publicação sobre uma simples caminhada. São as aventuras urbanas interessantes que dão pontos (literalmente, no caso da aplicação Strava), e os destinos estão a reagir em conformidade, imaginando ofertas que sabem que vão gerar interesse no Instagram e noutras plataformas.Isto não é necessariamente mau, diz Tobias. “Nós incentivamos as pessoas a usarem as redes sociais”, afirma. “Elas podem sentir-se felizes e orgulhosas por serem activas e estarem a fazer algo diferente. E nós espalhamos a mensagem de que as nossas cidades precisam de ser cuidadas.”Três cidades cheias de acção a visitar1. RoterdãoEnquanto o seu vizinho nortenho, Amsterdão, se debate com o excesso de turismo, a segunda cidade mais visitada dos Países Baixos continua a apurar aquilo a que podemos chamar ‘turismo optimizado’. A sua obliteração pelas bombas alemãs na Segunda Guerra Mundial deixou os designers do pós-guerra com uma tela em branco e o resultado foi uma cidade tão aberta e eficiente quanto jovem e dinâmica, com muitos espaços verdes e vias aquáticas.Caminhe pelos cerca de 800 metros do oásis urbano de Dakpark, ou Parque Telhado, assim designado devido ao facto de ser elevado a fim de optimizar as vistas sobre o porto e a cidade em seu redor.Em alternativa, ao nível do solo, junte-se aos patinadores, skaters e corredores que andam pelos trilhos florestados do Kralingse Bos, nas franjas da cidade. Existem trilhos de jogging e uma pista de atletismo aberta ao público em Roel Langerakpark e os espaços verdes estão ligados por ciclovias de piso suave. A natação urbana também faz furor. Um dos melhores sítios é o Zwembad Rijnhaven, no meio da cidade, que dispõe de plataformas para apanhar sol e escadas para entrar na água.Por que razão deve ir agora? Em linha com o espírito activo e empreendedor da cidade, a primeira piscina urbana ao ar livre foi inaugurada no ano passado num antigo canal perto do edifício neo-renascentista da Câmara Municipal de Roterdão. Após uma década em construção, a RIF0101 – assim designada devido à palavra holandesa para ‘recife’ e ao código postal onde se encontra – gera ondas imaculadas, permite frequentar aulas, com fatos e pranchas disponíveis para alugar, e até tem um bar com uma esplanada enorme. Também é possível alugar canoas e SUPs para explorar as vias fluviais que saem da piscina. Ainda tem energia para gastar? O maior rapel da Europa fica na altíssima Euromast, junto ao tranquilo Parque Het, com uma descida de quase 100 metros.2. Copenhaga Em 2022, o Tour de France começou com uma corrida em contra-relógio de 13 quilómetros nas ruas de Copenhaga. O prelúdio desta corrida que visita vários países raramente ocorrera numa localização mais adequada. A capital dinamarquesa é a cidade mais bicicletocêntrica de todas as cidades europeias – uma consequência de um planeamento inteligente e focado na habitabilidade. Os turistas não conseguem evitar deixar-se contagiar. Alugar uma bicicleta é facílimo (a maioria dos hotéis, bem como as lojas de bicicletas alugam-nas ou pode usar apps como a Donkey Republic). Com os automóveis postos à margem, os mil e um espaços verdes da cidade são menos poluídos e têm imensos trilhos para correr e caminhar. Copenhaga irá receber o campeonato mundial de corrida urbana no próximo Outono e o ‘plogging’ – uma actividade que combina jogging com recolha de lixo – é uma das propostas da iniciativa CopenPay. Com planos de alargamento previstos para este Verão, oferece benefícios e experiências gratuitas aos visitantes em troca das suas actividades ecológicas.Por que razão deve ir agora? É a reinvenção do antigo porto militar e industrial e a sua transformação num gigantesco parque de recreio aquático que define o tom. A água é suficientemente limpa para permitir a apanha de mexilhões e ostras para os restaurantes da cidade e existem mais de dez havnebadet (banhos portuários). Piscinas ao ar livre como Islands Brugge e Fisketorvet são populares durante todo o ano, apesar dos Invernos escandinavos gelados, e também é possível fazer esqui aquático, andar de caiaque, canoa, paddleboarding e outros desportos aquáticos. A CopenHill — uma fusão inédita entre uma central de energia verde e um centro de aventura — continua a ser um grande atractivo. Para além da sua pista de esqui com 500 metros e uma parede de escalada com vistas vertiginosas da cidade, existe um trilho de caminhada ajardinado com 200 árvores que sobe até ao miradouro mais alto de Copenhaga. Enquanto você queima energia, a fábrica gera-a.3. Munique Talvez seja a proximidade dos Alpes ou o seu legado de acolher grandes eventos desportivos. Uma coisa é certa: é uma cidade que tem actividade nas veias. Existem 1.200 quilómetros de ciclovias e estima-se que 80 por cento dos habitantes de Munique tenham uma bicicleta. Os espaços verdes que revestem as margens do Isar tentam residentes e turistas a desfrutar do ar livre. O mais conhecido é, possivelmente, o Englischer Garten – um dos maiores parques urbanos do mundo, que é um pólo de actividade durante todo o ano. No Verão, os surfistas fluviais fazem-se às águas brancas do Eisbach, um afluente do Isar, jangadas de madeira descem o rio e banhistas e pessoas reunidas em torno de piqueniques convergem nas praias de areia branca. Nos meses de Inverno, a pista de esqui cross-country de 5,5 quilómetros que serpenteia pelas planícies de aluvião do rio é um grande atractivo. É possível fazer excursões a cavalo e existem quase 80 quilómetros de trilhos no parque para joggers e ciclistas.Por que razão deve ir agora? ‘Duas horas a grande altitude’ é assim que o estádio olímpico de Munique promove a sua experiência de escalada no telhado, no cimo do espaço que recebeu os Jogos Olímpicos de 1972 e a final do Campeonato do Mundo dois anos mais tarde. A visita culmina – se tiver coragem – numa tirolesa que desce até ao relvado. Durante o Verão, a variedade de piscinas e sítios onde é possível nadar na cidade quase rivaliza com a de Copenhaga. Dantebad está aquecida a 30ºC durante todo o ano. Prinzregentenbad, do outro lado do Isar, na zona oriental da cidade, tem uma piscina exterior e uma praia fluvial adjacente que é popular entre os jogadores de voleibol. E, se quiser experimentar uma abordagem alternativa aos palácios de Schloss Schleissheim e Schloss Nymphenburg, faça como os senhores bávaros faziam no passado e desloque-se numa gôndola veneziana pelos canais adjacentes. Depois de toda essa actividade, vai saber-lhe bem sentar-se um pouco.Artigo publicado na Colecção Cidades Europeias de 2025 da National Geographic Traveller (Reino Unido) e em nationalgeographic.com.

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Harmonia arbórea

O Palácio Mei-ling, no Parque Nacional da Montanha Zhongshan, em Nanjing, na China, apresenta uma peculiaridade quando visto de cima: a casa assemelha-se a uma esmeralda – com o seu telhado brilhante – e as árvores à sua volta, ao colar que a envolve.O palácio foi outrora a casa do líder Chiang Kai-shek e da sua mulher Soong May-ling, mas ficou desabitado depois de terem fugido para Taiwan em 1949, no final da guerra civil chinesa. Alguns afirmam que esta ilusão de óptica criada pelas árvores foi intencional e que o colar simboliza o amor do casal, enquanto outros contestam esta afirmação.Seja como for, o palácio foi aberto ao público em 2013, após um intenso trabalho de restauro que procurou manter a essência original deste local. Inclusive, as telhas do tecto foram substituídas não só por outras da mesma cor, mas também da mesma forma.

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Como projectar uma cidade que melhore a nossa saúde mental, segundo a ciência

Erin Peavy estava grávida de quatro meses quando a sua mãe faleceu de cancro. Depois de a sua filha nascer, em Janeiro de 2019, a solidão instalou-se. A mãe era o seu chão, uma fonte de apoio constante. Agora, sozinha em casa com um bebé recém-nascido e o marido a trabalhar a tempo inteiro, Peavey agarrou-se a um conselho que a mãe sempre lhe dera: mantém-te ligada às pessoas.Todos os dias, Peavey metia o bebé no marsúpio e dava passeios no seu bairro em Dallas, no Texas. Passava tempo em cafés, fazia conversa de circunstância na mercearia e ganhou o hábito de visitar outros espaços propensos ao convívio, conhecidos em inglês como “third places”, uma expressão cunhada pelos sociólogos urbanos para se referirem a pontos de encontro informais que não são o lar, nem o local de trabalho, mas podem promover a comunidade. Peavey, arquitecta de formação, diz que não sentia necessidade de ter conversas profundas com outras pessoas – apenas de se sentir ligada aos demais enquanto estava na rua.“Era uma espécie de antídoto para a solidão e as dificuldades mentais com que me debatia por ter perdido a minha mãe ao mesmo tempo que me tornei mãe pela primeira vez”, diz. “Estava simplesmente abismada com esta dádiva que o meu ambiente construído era para mim… ajudou-me a lidar com a situação.”Muitos especialistas consideram a solidão uma epidemia de saúde pública da actualidade e o antigo Cirurgião Geral dos EUA advertiu para o facto de afectar cerca de metade dos adultos norte-americanos e aumentar o risco de morte prematura para níveis comparáveis com fumar 15 cigarros por dia. Contudo, à medida que estes desafios de saúde mental aumentam, especialistas como Peavey interrogam-se: E se os espaços à nossa volta pudessem ajudar-nos a sentirmo-nos menos sozinhos?“O ambiente construído, que é tudo, desde as nossas ruas às nossas casas e aos sistemas de transporte, é uma parte muito importante de como interagimos uns com os outros”, diz Julia Day, sócia da empresa global de estratégia urbana Gehl. “Embora abordar uma epidemia exija várias ferramentas, as alterações do design e da programação dos espaços são um ingrediente-chave.” O relatório da Foundation for Social Connection de 2024 realça esta ideia, mostrando como o ambiente construído pode dificultar ou incentivar interacções sociais relevantes – sejam breves ou profundamente pessoais.Estas ideias não são novas, mas têm vindo a ganhar tracção. Peavey diz que isto se deve, em parte, ao facto de a pandemia ter ajudado a eliminar o estigma da solidão e ter tornado as pessoas mais cientes do seu ambiente físico enquanto estiveram confinadas em casa. “Ao longo dos últimos cinco anos, aproximadamente, começámos a reconhecer que são factores estruturais com um grande impacto na nossa saúde, bem-estar, produção económica, etc.”, diz ela. “E que um deles é o nosso ambiente físico e construído.”Desenhando para promover a conexãoNão existe nenhuma solução universal para criar designs tendo em vista a conexão social. No entanto, arquitectos, planeadores urbanísticos e legisladores, entre outros, desenvolveram várias estratégias que aumentam as probabilidades de interacções espontâneas ou relevantes – tanto em espaços residenciais privados como e espaços públicos.Peavey criou um conjunto de directrizes de design para a saúde mental suportadas por evidências ao qual chamou PANACHe. Um dos tipos de espaço que possui estes elementos, diz, são as praças italianas: são espaços abertos às pessoas (acessibilidade), têm restaurantes e lojas (activação) e edifícios construídos em tijolo e pedra, frequentemente cobertos por trepadeiras (natureza). “Quando os sítios conseguem ajudar-nos a sentirmo-nos mais ancorados e calmos, algo que é uma parte importante daquilo que a natureza nos proporciona, podem ajudar as pessoas a sentirem-se mais receptivas”, afirma.Estas ideias também se reflectem numa residência de estudantes da Universidade da Califórnia, em San Diego, co-desenhada pelo gabinete de arquitectura Safdie Rabines Architects e HKS Architects, onde Peavey é chefe de design na área da saúde e bem-estar. A residência conta com espaços partilhados para cozinhar e socializar, escadas interligadas e janelas grandes com vista para áreas comuns, que promovem interacções sociais e académicas. Após a sua conclusão, os estudos mostraram uma diminuição de 8,2 por cento no número de alunos que diziam estar deprimidos e um aumento de quase 28 por cento na satisfação com os espaços residenciais.Noutras paragens, uma empresa de consultoria chamada Happy Cities, sediada no Canadá, está a ajudar a aplicar ideias semelhantes ao alojamento urbano. Perante a crescente crise do alojamento a nível global, Emma Avery, planeadora urbanística e responsável pela comunicação da empresa, diz que tem havido mais interesse na abordagem do seu gabinete aos alojamentos com múltiplas unidades, como edifícios residenciais e vivendas geminadas.“Temos o problema dos preços excessivos do alojamento. Temos a crise climática. Temos a crise do isolamento social e da solidão e temos mesmo de trabalhar juntos para resolver todas estas coisas em simultâneo”, diz Avery. “Se vamos construir milhares de casas novas em torres de arranha-céus, como podemos assegurar que não estamos a agravar o isolamento social?”Com isso em mente, a Happy Cities e o Hey Neighbour Collective co-produziram um conjunto de ferramentas baseado numa década de investigação. As recomendações-chave incluem edifícios que se fundem com o bairro à sua volta, criando espaços de transição gradual entre a esfera pública e a esfera privada dispondo de instalações partilhadas.Estes conceitos orientaram o desenvolvimento da Our Urban Village, em Vancouver, um projecto de “coabitação light” de 12 fracções, onde os residentes vivem de forma colaborativa. Em consonância com o seu princípio convidativo, existem, por exemplo, passeios largos, um pátio partilhado e recantos que incentivam o descanso e a interacção. Um estudo mostrou que seis meses depois de se mudarem para lá, 100 por cento dos residentes disseram que nunca ou raramente se tinham sentido sozinhos e 88 por cento consideravam um ou mais vizinhos seus amigos.“A solidão não implica necessariamente a ausência de relações sociais, mas o quanto essas relações nos satisfazem”, diz Avery. É “por isso que estamos muito focados em criar espaços convidativos para as pessoas fazerem uma pausa e onde se sintam mais receptivas à conexão e ao seu próprio ritmo”.Os espaços públicos são outra área que tem atraído mais interesse, sobretudo desde a pandemia. Embora o seu conjunto de ferramentas se foque no alojamento, Avery diz que alguns conceitos também se podem aplicar a espaços públicos. Um deles é a activação, através da qual o espaço é dinamizado com coisas para ver e fazer, seja um sítio para as pessoas se sentarem, um parque para brincar ou um jardim comunitário.Um estudo recentemente elaborado por Gehl e investigadores da área da saúde pública da Universidade de Toronto realça o valor de activar os espaços públicos. Eles examinaram The Bentway, um espaço outrora desvalorizado, situado sob uma via rápida em Toronto, que foi transformado através do design e da programação. A maior parte dos visitantes disse que se sentia mais saudável e mais socialmente conectado no espaço – sobretudo devido à inclusão de elementos paisagísticos, bancos públicos e eventos de arte.Day diz que, embora os planeadores urbanísticos reconheçam o valor desses elementos, os profissionais de saúde pública precisam, frequentemente, de dados mais concretos sobre os benefícios que defendam a sua inclusão.“Fazer outros estudos semelhantes, como o projecto de The Bentway, é muito útil para desenvolver parcerias mais significativas entre a saúde pública, os planeadores urbanísticos e os construtores, que podem trabalhar juntos, como deve ser, e assegurar que a questão do isolamento social é uma parte essencial de um resumo de projecto”, diz ela.Desafios e possibilidadesTranspor estas ideias de design para a realidade é tudo menos simples. Os ambientes construídos são fortemente regulados e negociados entre diversas partes interessadas, incluindo os construtores, as autarquias, o governo e membros da comunidade, cujos interesses frequentemente se opõem. As prioridades e as políticas também podem mudar com as mudanças de governo.É necessária uma maior colaboração entre os diversos sectores e mais investigação. Candice Ji, planeadora urbanística e designer na Gehl, diz que havia poucos dados sistemáticos disponíveis quando este assunto começou a ser estudado. “Continuamos a criar a base de evidências necessária para a tomadas de acções através dos diferentes estudos que temos vindo a conduzir”, afirmou.Eric Klinenberg, professor de sociologia da Universidade de Nova Iorque e autor de Palaces for the People, diz que o valor das infra-estruturas sociais ganhou reconhecimento ao longo da última década, mas isso nem sempre resultou na criação de mais recursos. “O investimento nos espaços públicos e nas infra-estruturas sociais continua a ser escasso e desigual”, afirma. “Os cortes governamentais na área social, nos parques, escolas, bibliotecas e espaços públicos, tendem a aumentar a ameaça representada pela solidão e o isolamento, precisamente numa altura em que as pessoas precisam de laços mais fortes.”Mesmo assim, algumas cidades estão a aplicar estas ideias. Por exemplo, embora se foquem na saúde pública, as Directrizes de Design Activo da cidade de Nova Iorque, também incentivam a inclusão de elementos paisagísticos que promovam a interacção social. O plano de dez anos de Barcelona para diminuir a solidão inclui reestruturar a cidade, criando espaços comunitários e promovendo novas formas de partilha de alojamento. Em Seul, na Coreia do Sul, o plano Seul Sem Solidão faz uma abordagem multifacetada, incluindo usar as lojas de conveniência como pontos de encontro onde as pessoas se possam juntar em torno de uma tigela de ramen, e assegurar a existência de um número suficiente de espaços abertos.“Quando conseguimos começar a criar sítios que promovem a confiança, o sentimento de pertença e combatem a solidão”, diz Peavey, “isso tem múltiplas e diversas consequências positivas nas nossas vidas”.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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Sana Javeri Kadri quer que a sua prateleira de especiarias atinja todo o seu potencial

A missão de Sana Javeri Kadri para mudar a indústria global das especiarias começou com um pequeno acto. Escolheu como alvo o leite dourado.Há quase uma década, em 2016, Javeri Kadri trabalhava em marketing numa marca da indústria alimentar em São Francisco, quando reparou na moda que invadia os cafés americanos. Sabia que o ingrediente essencial da bebida, curcuma em pó, crescia sobretudo na sua Índia natal. No entanto, ao contrário das diversas opções de café, chocolate ou fruta (fornecidas directamente pelos produtores), havia pouca visibilidade na cadeia de abastecimento.Quando regressou a Mumbai no ano seguinte, investigou e apercebeu-se de que os produtores que praticavam agricultura regenerativa na Índia utilizavam técnicas de cultivo e processamento diferentes, produzindo variedades superiores a qualquer outra que ela tivesse visto em Mumbai e na Califórnia. No entanto, nenhum agricultor parecia estar a lucrar com a popularidade da curcuma. Por isso, decidiu reinventar a cadeia de abastecimento. “Assim construí algo de raiz e tornei possível o que parecia impossível”, diz ela.O comércio global das especiarias assenta sobre mais de quinhentos anos de colonialismo e é caracterizado por longas cadeias de abastecimento, pouca transparência e agricultores que recebem uma miséria pelo seu trabalho. É frequente as especiarias ficarem anos paradas entre o produtor e o vendedor, perdendo intensidade pelo caminho. Por isso, Sana investiu o único dinheiro que tinha – cerca de 2.800 euros do seu reembolso fiscal – para comprar a curcuma mais fresca que conseguisse encontrar e levá-la para a Califórnia. “Empacotava-a à mão na minha cave e vendia-a na Internet”, recorda. Graças ao seu talento para o marketing através do Instagram e alguns contactos essenciais no mundo alimentar, o negócio levantou voo.Actualmente, a empresa Diaspora Co. tem uma oferta de 41 especiarias, incluindo pimenta preta e cardamomo, e misturas de especiarias originárias da Índia e do Sri Lanka. Ao contrário de empresas convencionais, a Diaspora trabalha directamente com mais de150 explorações agrícolas, alcançando milhares de agricultores e pagando-lhes em média o quádruplo do preço de tabela pelas especiarias orgânicas que cultivam. Os produtos de alta qualidade permitem à empresa cobrar em conformidade, o que conduziu a um maior investimento nos seus parceiros agrários.Sana continua a proporcionar aos consumidores um nível inigualável de transparência, divulgando as explorações agrícolas onde cada especiaria é cultivada, bem como a data das colheitas e os valores dos contratos. “Como o nosso produto vem da Ásia Austral, parece-me existir um pressuposto muito problemático de que deveria ser barato”, diz ela. “Isso deve-se basicamente aos efeitos do colonialismo e do racismo, devido aos quais desvalorizamos este trabalho e o valor deste produto.”Recentemente, a empresa expandiu-se, estando agora presente nas lojas da cadeia Whole Foods e em lojas grossistas. É uma diferença que se sente no paladar.

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Conservas, o nascimento da dieta industrial

No século XVIII, a conservação de alimentos tornou-se uma necessidade premente para os exércitos e ainda mais para os marinheiros, que frequentemente embarcavam em viagens oceânicas que duravam meses. Os processos tradicionais de conservação, como a salga de carne e peixe e o biscoito (pão sem fermento muito cozido), tinham tempo limitado de armazenamento, mau sabor e prejudicavam a saúde.Em 1795, Nicolas Appert, um francês pasteleiro de profissão, concebeu um procedimento de conservação tão simples como eficaz. Os alimentos eram colocados em recipientes de vidro hermeticamente fechados, depois fervidos durante um determinado período de tempo (acção que, tal como Pasteur descobriu em 1860, eliminava os microrganismos), conservando-os com todo o sabor. Naqueles anos de guerras revolucionárias, Appert criou uma fábrica com dezenas de trabalhadores e fornecia os seus frascos à Marinha francesa. Em 1810, o governo de Napoleão ofereceu-lhe um prémio de 12 mil francos para publicar o seu método num livro que teve várias edições.Nessa altura, outro francês, Philippe de Girard, viajou para Londres com a intenção de explorar economicamente a invenção. Girard contribuiu com uma inovação decisiva: em vez de recipientes de vidro, passou a utilizar folha-de-flandres, ou seja, chapas de ferro estanhadas. Associou-se a um empresário inglês, Peter Durand, e apresentou-se à Royal Society de Londres.Aprovado pela rainhaEm 1811, Durand vendeu a patente a outro empresário, Bryan Donkin, um notável engenheiro e inventor. Dois anos depois, Donkin abriu a primeira fábrica de conservas da história. Num clássico golpe publicitário, deu a provar os seus produtos a membros da elite londrina, incluindo os duques de Wellington e de York, que por sua vez os ofereceram à rainha e ao regente, que mostraram a sua “alta aprovação”. Outra importante personalidade da cultura inglesa da época, Joseph Banks, ofereceu-se para degustar, perante a Royal Society de Londres, uma lata produzida dois anos e meio antes e declarou que se encontrava “em perfeitas condições”. Donkin tornou-se o fornecedor oficial de comida enlatada da Marinha britânica, embora de início se destinasse apenas a soldados doentes. A fábrica fechou em 1821, mas muitas outras assumiram a sua tarefa quer na Europa quer na América.Em Portugal, Sebastián Ramirez criou, em 1853, em Vila Real de Santo António, uma fábrica de produção de conserva de peixe, a primeira do país. A partir de 1908, surgiram novas unidades de produção em Olhão, Albufeira e Setúbal. A fábrica Ramirez é a mais antiga do mundo ainda em laboração.Nasce o abre-latasInicialmente, as latas eram pesadas e era preciso um esforço considerável para as abrir. O manual de instruções de um fabricante dizia: “Para abrir as latas, deve cortar-se a parte superior com um cinzel e um martelo.”Os primeiros abre-latas surgiram apenas na década de 1850, quando a mecanização permitiu a produção de latas mais leves. Tornaram-se muito populares os abre-latas com decoração em forma de cabeça e rabo de boi, que eram distribuídos com latas de carne de vaca.No início da década de 1970, Manuel Guerreiro Ramirez desenvolveu uma lata de conservas de abertura fácil, com argola, um projecto que demorou três anos até se encontrar o ponto de equilíbrio em que a incisão na chapa era simultaneamente suficientemente robusta para resistir ao manuseamento e também fácil de abrir quando se puxava a argola. Nascia a lata de abertura fácil com selo português que alterou o mercado das tradicionais latas de conserva.A CRONOLOGIA da comida enlatada1795-1810 - NicolasAppert desenvolve um método de embalamento de alimentos a vácuo dirigido ao abastecimento militar.1811 - Girard aplica o método de Appert ao fabrico de latas. O seu sócio inglês Durand vende a patente a Bryan Donkin.1813 - Por incentivo do engenheiro e inventor Bryan Donkin, é construída em Londres a primeira fábrica de conservas.1855-1870 - Surgem vários modelos de abre-latas, nomeadamente o de William W.Lyman, com uma roda de corte.

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O neurocientista que está a trabalhar na ‘eliminação’ de memórias indesejadas

Pense na sua memória mais feliz. Um casamento, o nascimento de um filho ou talvez uma noite perfeita na companhia dos seus amigos. Retenha essa memória por uns instantes. Lembre-se dos pormenores. O que tinha vestido? A que cheirava? Como o fez sentir-se?Agora faça o oposto. Pense numa memória triste – a perda de um ente querido, ser despedido ou uma separação dolorosa. Retenha também essa memória.Qual preferiria conservar?É evidente que quer a memória feliz, aquela que o fez sentir-se bem e contente com a vida. No entanto, as memórias dolorosas permanecem durante anos ou, por vezes, décadas, como feridas escondidas sob a superfície. Se pudesse escolher, quereria ficar com elas – ou apagá-las totalmente?Se isto lhe começa a parecer-lhe algo saído de O Despertar da Mente ou Inception, fique sabendo que anda lá perto – e que Steve Ramirez concordaria consigo. Ramirez é um neurocientista da Universidade de Boston e Explorador da National Geographic, cuja investigação decorre junto à fronteira da ciência da memória. Talvez ele seja mais conhecido pelos estudos que ajudou a realizar e que demonstraram ser possível implantar uma memória falsa em ratos. As conclusões foram publicadas na revista Science em 2013 e na Royal Society em 2014.A sua investigação assenta numa verdade fundamental: a memória é volúvel. Muda e transforma-se sempre que nos lembramos de algo. Ramirez compara isto com carregar em “gravar como” num documento de Word. Sempre que recuperamos uma memória, alteramo-la ligeiramente. Ramirez está a explorar a possibilidade de conseguirmos dominar esse processo de “gravar como” – reescrevendo intencionalmente as nossas memórias, em vez de deixarmos que mudem acidentalmente. Até à data, já aprendeu a fazer algo ainda mais surpreendente: não destruir uma memória má, mas criar uma memória nova.A ciência de nos lembrarmos de algo que nunca aconteceu“Nós sabemos que as memórias são maleáveis e susceptíveis a alterações”, diz Ramirez. “Sempre que nos lembramos delas, são gravadas e editadas com nova informação. Queríamos ver isso em laboratório. Porque se conseguíssemos fazer isso directamente no laboratório e no cérebro, conseguiríamos obter uma imagem de maior resolução de como as memórias funcionam quando estão a ser distorcidas ou modificadas.O estudo fundamental da equipa foi publicado na revista Nature em 2012. Nesse estudo, os cientistas identificaram e activaram um aglomerado de neurónios no cérebro de ratos que codificou uma memória de medo, mais especificamente um choque ligeiro nas patas. Para tal, os investigadores alteraram geneticamente os ratos para que os neurónios relacionados com a memória se tornassem sensíveis à luz. Em seguida, as criaturas foram colocadas numa caixa e receberam um choque nas patas – fazendo com que a memória desse choque ficasse codificada nas células cerebrais sensíveis à luz.Depois, a equipa implantou cirurgicamente um cabo de fibra óptica minúsculo no crânio de cada rato, para conseguir acender um laser dentro do seu cérebro. Quando acendido, o laser accionou a memória má como se fosse um interruptor.Mais tarde, quiseram ver se conseguiam criar uma memória falsa. Para tal, colocaram o rato dentro de uma caixa segura e deixaram-no explorá-la. No dia seguinte, colocaram o rato numa caixa diferente, activaram a memória da caixa segura, acendendo o laser no seu cérebro, e deram-lhe um choque nas patas em simultâneo. Quando devolveram o rato à primeira caixa, ele ficou paralisado com medo – embora nunca tivesse recebido um choque naquela caixa.A equipa implantara, efectivamente, uma memória falsa no rato.“O elemento mais importante dessa experiência é termos demonstrado que conseguíamos activar artificialmente uma memória enquanto o animal estava a sentir algo. Depois, essa versão nova e actualizada tornou-se a última versão dessa memória gravada pelo cérebro do animal”, explica. “O rato ficou assustado num ambiente onde, tecnicamente, nada de mau acontecera.”Dentro da sala de montagem do cérebroEntre os lasers, as memórias falsas e as experiências com choques, poderíamos pensar que isto está a encaminhar-se para a ficção científica. Ramirez aceita a comparação, uma vez que o seu trabalho roça frequentemente esse universo. “Acho que a ficção científica e a realidade científica estão com o passo sincronizado, influenciando-se frequentemente uma à outra de formas surpreendentes e imprevisíveis”, diz ele. “Os ocasionais ‘erros’ da ficção científica são inevitáveis, mas o trabalho que inspira e os sonhos e visões que origina são praticamente ilimitados e eu adoro-a precisamente por essa razão.”Mesmo assim, pode parecer assustador, sobretudo quando pensamos nas potenciais aplicações nos seres humanos. Contudo, Ramirez diz que a manipulação da memória seria realizada de forma muitíssimo menos invasiva nas pessoas. Em vez disso, quando queremos activar uma memória feliz noutra pessoa, tudo o que temos de fazer é perguntar-lhe sobre ela. (Lembra-se do início da história ou já se esqueceu?)“Nós podemos actualizar uma memória aparentemente segura e torná-la negativa”, diz, referindo-se aos testes com os choques nas patas. “Mas e o oposto: conseguiremos transformar uma memória negativa numa memória positiva?”Apesar das comparações da cultura pop com Inception ou O Despertar da Mente, as aplicações do trabalho de Ramirez no mundo real são muito menos cinematográficas – e possivelmente mais profundas. O seu trabalho está a criar bases para ajudar pessoas com perturbação de stress pós-traumático a processarem memórias más ou pessoas com perturbações neurodegenerativas, como doença de Alzheimer ou demência, a viverem mais e melhor.Num artigo ainda inédito, que se encontra actualmente a ser revisto por pares, a sua equipa afirma ser capaz de identificar o local exacto onde uma memória se irá formar no cérebro dias antes de ela acontecer. É como conseguir prever onde um raio vai cair antes de a tempestade sequer se formar. No futuro, isto poderá permitir aos médicos antever os efeitos da doença de Alzheimer, Parkinson e demência,antes de as doenças surgirem.“Imagine ser capaz de fazer um mapa ao estilo do Google Maps para a memória, mas ao nível de cada célula cerebral”, diz ele. “Você poderia dizer: isto é uma memória positiva no cérebro. Fica neste sítio, nesta rede de actividade tridimensional. Podemos ampliar a área e se alguma coisa parecer estar a falhar, poderá ser um vestígio de algum tipo de declínio cognitivo, perda de memória, amnésia ou Alzheimer.’”Ainda estamos muito longe de fazer um mapa ao estilo do Google Maps para a memória. No entanto, Ramirez sublinha que a sua área de investigação ainda está a dar os primeiros passos. Ele põe as coisas da seguinte forma: o estudo da neurociência tem cerca de cem anos, enquanto a física tem mais de 2.000 anos. “Relativamente à física, a neurociência ainda está na sua fase do Teorema de Pitágoras”, diz, gracejando.Ainda há muita coisa que não sabemos sobre o cérebro e, consequentemente, sobre a forma como a memória funciona. Contudo, Ramirez e neurocientistas como ele estão a transformar a ficção científica em realidade científica, que poderá, um dia, permitir-nos editar e manipular as nossas próprias experiências. Mais importante do que isso, a sua investigação ajuda-nos a compreender as formas profundas como a memória nos molda – e como podemos começar a moldá-la.Este artigo, publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com, faz parte da série A Sua Memória, Reprogramada, uma exploração de National Geographic sobre as fronteiras difusas e fascinantes da ciência da memória – incluindo conselhos sobre como tornar a sua própria memória mais potente. A National Geographic Society, empenhada em divulgar e proteger as maravilhas do nosso mundo, financiou o trabalho do Explorador Steve Ramirez. Saiba mais sobre como a NGS apoia os seus Exploradores.

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Uma criatura antiquíssima

Não estamos a falar de um tubarão ou de uma baleia, mas de uma planta marinha da espécie Posidonia australis que se estende por mais de 180 quilómetros e tem, pelo menos, 4.500 anos de idade. Mas uma análise genética detalhada deixou os cientistas boquiabertos: todas as amostras recolhidas em diferentes pontos da baía compartilhavam exactamente a mesma impressão genética. Ou seja, não se trata de uma floresta de plantas, mas de uma única, uma imensa clonagem de si mesma, nascida de uma única semente que se vem expandindo lentamente ao longo de milénios.Além do seu tamanho gigantesco, esta planta possui uma característica que a torna ainda mais singular: é poliplóide, o que significa que tem três conjuntos completos de cromossomas. Este detalhe genético pode explicar a sua capacidade de se adaptar a ambientes tão variados, resistindo à salinidade, temperaturas extremas e outros desafios marinhos. É surpreendente que o maior ser vivo já identificado seja uma humilde, mas tenaz, pradaria submarina – um lembrete de que, sob a superfície, a vida guarda segredos tão extensos quanto antigos.

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Sobreviventes da era dos dinossauros

O rio flui, espraiado e silencioso. É Dezembro no Sul do Cazaquistão e a paisagem junto do rio Syr Darya apresenta-se tingida por tons de castanho-acinzentado, produzido por ervas murchas, planícies de aluvião cobertas de sedimentos e árvores desfolhadas. Não é propriamente o troço de rio mais pitoresco, pois está cheio de embalagens de alimentos, garrafas e até um automóvel em decomposição. No alto, uma névoa de fumo de carvão e madeira obscurece o Sol. Porém, este sítio é perfeito para aquilo que Bernie Kuhajda procura.“É o habitat de que precisamos”, diz Bernie, biólogo especializado em conservação aquática do Instituto de Conservação do Aquário do Tennessee. Bernie tem esperança de encontrar uma espécie – o esturjão do Syr Darya (Pseudosca-phirhynchus fedtschenkoi), autóctone destas águas, mas que não é avistado desde a década de 1960, depois da construção de uma série de barragens soviéticas neste sistema fluvial. Esses projectos bloquearam o acesso aos territórios de desova do peixe e mudaram para sempre o curso do Syr Darya, que corre desde os picos altos da Quirguízia até ao que resta do mar de Aral. Se este esturjão, de alguma forma, ainda existir, Bernie acredita que será neste troço do rio, de águas rasas e repleto de sedimentos, que poderá ser encontrado.Meses antes, Bernie fora contactado pela organização de conservação Re:Wild, que dirige um programa para procurar aquilo a que chama espécies perdidas – as criaturas que não são vistas há pelo menos uma década e poderão já estar extintas, mas sobre as quais não há dados conclusivos suficientes. Os agentes da Re:Wild entraram em contacto com o investigador, sabendo que ele era um de um grupo muito pequeno de cientistas que já avistara o esturjão do Syr Darya. Enquanto frequentava a licenciatura, na década de 1990, Bernie visitou museus em Londres, Moscovo e São Petersburgo e filmou 27 espécimes fusiformes, embranquecidos devido a anos passados num armazém. “Disseram que era um perito”, lembra Bernie, recordando a conversa telefónica com a Re:Wild. “E eu expliquei que só os tinha visto mortos em frascos.”O esturjão do Syr Darya é um peixe com uma aparência muito específica. Com um comprimento máximo de 22 centímetros, é a mais pequena das 26 espécies de esturjão. A maior é o esturjão-beluga: o maior exemplar de que há registo, retirado do rio Volga em 1827, media mais de sete metros e pesava mais de 1.450 quilogramas. Todos os esturjões possuem uma cabeça longa e chata, barbelas ondulantes semelhantes a bigodes, capazes de detectar presas no leito, e cinco fileiras de placas ósseas que se erguem na vertical ao longo do seu corpo. É difícil confundir este peixe ancestral com qualquer outro animal. Se cruzar um peixe-gato com um tubarão, um estegossauro e uma serra de poda, não estará muito longe de imaginar um esturjão.Ao longo de 162 milhões de anos, os esturjões sobreviveram a alterações climáticas, deslocações continentais, erupções vulcânicas e uma extinção em massa. “Sobreviveram ao asteróide que matou os dinossauros e a tudo o resto que a natureza e o espaço atiraram na sua direcção”, diz Bernie. Tudo excepto a humanidade. Hoje, são o grupo de peixes mais ameaçado do mundo. As populações globais de esturjão sofreram uma queda catastrófica de 94% desde 1970. A União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) identifica25 espécies de esturjão como vulneráveis ou ameaçadas, 17 das quais em vias de extinção e uma extinta em ambiente selvagem. Teme-se que três das espécies em vias de extinção, incluindo o esturjão do Syr Darya, já estejam na verdade extintas.Em termos ecológicos, os esturjões estão no limite. Economicamente, são dos animais mais valiosos do mundo. Grande parte do seu declínio pode ser atribuído à pesca excessiva. O caviar, nome atribuído às abundantes ovas do peixe, é salgado e vendido em todo o mundo como símbolo de estatuto e riqueza. Algumas latas custam mais de vinte mil euros por quilograma.Contudo, até para uma espécie como o esturjão do Syr Darya, que não é procurado pelas suas ovas, as decisões tomadas pelo ser humano e as mudanças ambientais têm sido devastadoras. “Os seres humanos só demoraram 200 anos a destruir todos os habitats ribeirinhos ocupados por esturjões”, diz Bernie. Os esturjões evoluíram ao longo de 160 milhões de anos em rios de águas livres, que funcionavam como espaços sem barreiras. “Todos os esturjões migram”, diz o especialista. Agora, existem demasiados obstáculos. Barragens, reservatórios, dragagens e desvios para projectos de irrigação bloqueiam as migrações para os territórios de desova, a montante do rio, e retêm as larvas que flutuam para jusante. Os escoamentos agrícolas podem provocar a proliferação de algas tóxicas, enquanto a construção, o abate madeireiro e a extracção mineira destroem habitats de desova e produzem sedimentos nocivos.Teme-se que três das espécies em vias de extinção, incluindo o esturjão do Syr Darya, já estejam na verdade extintas.Bernie Kuhajda espera que um pequeno número de esturjões do Syr Darya tenha sobrevivido ao Antropocénico. Se o peixe for encontrado, o investigador seguirá o manual de instruções: procurará capturar uma população de machos e fêmeas em idade fértil, instalá-los-á numa incubadora e criá-los-á para reintrodução na natureza. Há programas de berçários, incubadoras e transporte e há leis e instituições que proíbem a pesca ou limitam-na a colheitas sustentáveis. Até a indústria do caviar desempenha um papel para salvar os esturjões da extinção.Antes de chegar ao rio, Bernie deteve-se numa banca de pescado à beira da estrada e fez circular uma fotografia impressa de um dos exemplares de museu. As carrinhas rugiam ao passarem na auto-estrada, enquanto o pescador estudava a imagem e confirmava que retirara algo semelhante da água há alguns anos. A constatação aumentou a excitação de Bernie.Avançando em direcção à água, ele e o seu colega, Dave Neely, transportam uma rede e vasculham o rio. Três funcionários da autoridade de pescas do Cazaquistão vieram ao local, conduzindo uma grande carrinha da era soviética, desde o mar de Aral, para supervisionar os esforços de busca do peixe perdido. Um deles, Tynysbek Barakbayev, inclina-se sobre o veículo, observando Bernie e Dave caminhando a vau pelo rio adentro. “Temos uma oportunidade”, diz. “Mas esta oportunidade é muito pequena.”É Abril e o Rio Wolf, no Wisconsin (EUA), pulula de esturjões. Os peixes rondam as rochas junto das margens e as suas barbatanas cortam as águas brancas espumosas despejadas pela Barragem de Shawano, que se encontra entre uma fábrica de papel, de um lado do rio, e o Parque dos Esturjões da cidade de Shawano. Desde a construção da barragem em 1892, este é o ponto mais distante até onde os esturjões conseguem nadar. Uma multidão começa a reunir-se junto das margens para assistir a este rito anual de Primavera, no qual milhares de esturjões nadam, vindos do lago Winnebago, 200 quilómetros a jusante, para desovar. Estes peixes são uma pequena amostra dos cerca de quarenta mil esturjões adultos do sistema do lago Winnebago. A população de esturjões-de-lago do estado de Wisconsin é uma das mais saudáveis do planeta.Se o peixe for encontrado, o investigador seguirá o manual de instruções: procurará capturar uma população de machos e fêmeas em idade fértil, instalá-los-á numa incubadora e criá-los-á para reintrodução na natureza.É esta história de recuperação que os defensores dos esturjões estão a tentar imitar pelo mundo fora. Os esturjões foram outrora tão abundantes nos rios da América do Norte que, segundo as histórias indígenas, era possível atravessar a água sobre os seus lombos. Os esturjões-de-lago (os peixes que estão agora a desovar abaixo da Barragem de Shawano e podem medir dois metros) distribuíram-se, em tempos, desde os Grandes Lagos e a baía de Hudson até à bacia hidrográfica do Mississípi, a sul, mas na década de 1970 já estavam maioritariamente extintos de muitos dos seus rios naturais.No Wisconsin, as populações de esturjões já tinham diminuído anos antes, mas uma gestão previdente conseguiu evitar o desastre. Em 1915, o Estado proibiu a pesca dos esturjões-de-lago e depois foi ajustando requisitos para  tamanho e a captura que ainda hoje se encontram em vigor. No plano ecológico, os esturjões estão à beira do colapso. No plano económico, falamos de um dos animais mais valorizados da Terra.Os limites de captura no Wisconsin são estipulados por Margaret Stadig, alcunhada de chefe dos esturjões. Margaret é uma bióloga especializada em pescas do Departamento de Recursos Naturais deste estado, tendo sido encarregada da supervisão da saúde da população do lago Winnebago. Também colabora com a administração federal num programa de reprodução que pretende restaurar os esturjões-de-lago no seu antigo domínio. Esta é a sua primeira temporada de desova. Observa os esturjões preparados para desovar e explica que os machos são mais esguios, “mais parecidos com torpedos”. Também são mais activos, saltando da água de tempos a tempos, com os corpos vibrando como cordas de guitarra dedilhadas.Quando chega a altura de uma fêmea desovar, um grupo de machos rodeia-a, batendo com as caudas no seu abdómen de forma tão vigorosa que um espectador empoleirado na margem consegue sentir as rochas tremerem, até ela expelir os ovos. Os ovos e a láctea (o esperma dos peixes) encontram-se e instalam-se nas rochas ou no leito do rio. As larvas eclodem uma semana mais tarde e acompanham o movimento das águas. “Eles vibram quando desovam”, diz Margaret, referindo-se àquilo que os habitantes locais chamam “trovões de esturjão”.Quando os trovões começam, a equipa científica também começa a trabalhar, capturando os esturjões com uma rede e colocando-os sobre um oleado. Um membro da equipa segura a cabeça de um peixe e outro a cauda enquanto um terceiro lê os dispositivos telemétricos, indicativos de que o peixe já foi, ou não, capturado anteriormente. Margaret definirá mais tarde os limites de pesca do próximo ano, recorrendo a um algoritmo baseado no número de peixes com e sem dispositivos. Graças a estas quotas, a população de esturjões do rio Wolf é agora suficientemente saudável para sustentar os seus próprios efectivos. Os funcionários federais esperam aproveitar esse sucesso e criar esturjões para repovoar rios noutros estados.Depois de cada peixe ser medido, identificado e dotado de um dispositivo, é entregue a um grupo do Serviço de Pescas e Vida Selvagem dos EUA que recolhe os ovos e a láctea das fêmeas e dos machos, mistura-os com uma pena de peru (suficientemente suave para não danificar os ovos enquanto são agitados) e, em seguida, transporta os ovos fertilizados para o Berçário Nacional de Peixes de Warm Springs.Cerca de um mês mais tarde, outras unidades vão buscar os peixes e criam-nos em tanques, alimentando-os com umadieta à base de artémia e larvas vermelhas. Depois de alcançarem 15 centímetros de comprimento, os peixes são libertados em rios onde os esturjões foram há muito eliminados pela pesca excessiva, pelas dragagens, pela poluição e pelas barragens.A população de esturjões-de-lago do estado de Wisconsin é uma das mais saudáveis do planeta.Desde o ano 2000, o aquário e os seus parceiros reintroduziram mais de trezentos mil esturjões-de-lago nos rios Tennessee e Cumberland, tendo esperança de que eles prosperem nos troços entre barragens. As primeiras fêmeas estão agora a atingir a idade fértil, embora Bernie e a sua equipa ainda não tenham visto provas de que os peixes reintroduzidos já tenham desovado com sucesso e que as suas larvas tenham sobrevivido ao perigoso trajecto dos reservatórios estagnados dos sistemas fluviais até se transformarem em juvenis.No entanto, esturjões-de-lago reintroduzidos já se reproduziram em sistemas fluviais mais livres na bacia hidrográfica do rio Coosa. “Quando começamos um programa de regeneração de esturjões, acreditamos que é para durar um século”, brinca Bernie, que se juntou à equipa no Wisconsin para cortar amostras das barbatanas e mapear a genética das incubadoras. “É um investimento a longo prazo.”Antes de a equipa de Margaret Stadig terminar o seu trabalho, os seus membros separam 73 esturjões para entregar à tribo Menominee, cuja reserva se situa acima da Barragem de Shawano. Durante milhares de anos, o povo Menominee reunia-se todas as primaveras para um banquete e uma cerimónia. “Esperávamos que o esturjão chegasse após os longos meses de Inverno”, diz David Grignon, o agente de preservação histórica da tribo.Quando a barragem foi construída, há mais de 130 anos, a migração dos esturjões ficou bloqueada e a cerimónia deixou de existir. Um século mais tarde, os funcionários estaduais do Wisconsin que colaboram com a tribo começaram a levar os peixes para o outro lado das barragens. “Transportam-nos em grandes carrinhas e tanques”, a cada Primavera, diz Grignon. E a tribo reavivou a sua cerimónia, que conta com dançarinos que imitam o movimento dos esturjões que sobem o rio.Os oficiais da tribo também estão a trabalhar na construção de um elevador fluvial para restaurar a migração natural dos esturjões até à reserva. Por enquanto, os chefes dos esturjões como Margaret também têm de trabalhar como parteiras, transportando os peixes a bordo de carrinhas para que eles consigam transpor fronteiras humanas invioláveis.Ironicamente, a própria indústria que causou o declínio de tantas espécies de esturjão está a desempenhar um papel fundamental no seu regresso. Na unidade de criação de esturjões da sua família, nos arredores de Milão, em Itália, Sergio Giovannini encontra-se numa grelha metálica sobre a água e aponta para baixo dos seus pés, para um peixe chamado Cavallo. A maior parte do caviar do mundo é actualmente produzida em unidades de aquicultura como esta. São unidades que os defensores dos esturjões gostariam que desempenhassem um papel no salvamento de muitas espécies europeias produtoras de caviar. A família Giovannini cria 300 mil esturjões para vender no mercado global. A maioria destes peixes serão vendidos pelo seu caviar e a sua carne. Mas não Cavallo.Margaret Stadig define os limites de pesca do próximo ano, recorrendo a um algoritmo baseado no número de peixes com e sem dispositivos.Todos tinham presumido que Cavallo, um peixe esguio que saltava como um garanhão, fosse um macho – daí o nome masculino. Mas em 2020, depois de a família transferir Cavallo de um sítio alimentado por água de nascente para os tanques alimentados pela água do rio da sua unidade de criação, Cavallo produziu ovos pela primeira vez. Tinha então cerca de 50 anos. Agora os seus ovos contribuem para o futuro da espécie. “Damos água do rio a esta Senhora Esturjão e, passados três ou quatro anos, os milagres acontecem”, diz Sergio.Também é uma espécie de milagre que Cavallo e outros esturjões-adriáticos que vivem nesta unidade de criação existam. O pai de Sergio, Giacinto, comprou Cavallo e cerca de sessenta outros esturjões-adriáticos a pescadores do rio Pó e dos seus afluentes em meados da década de 1970, antes de Sergio nascer. Foram dos últimos esturjões-adriáticos selvagens capturados vivos. A UICN designou-a como espécie em vias de extinção, e possivelmente extinta em ambiente selvagem, em 2010.Embora Giacinto tivesse experiência na criação de trutas e lúcios, não fazia ideia de como criar esturjões em cativeiro. Ouvira dizer que os russos fertilizavam com sucesso espécies de esturjão do mar Cáspio desde a década de 1860. Na década de 1940, descobriu-se como induzir a ovulação com injecções de hormonas da pituitária e, em 1969, retiravam-se ovos através de laparotomias, cirurgias invasivas para aceder aos gâmetas, bastante semelhantes às cesarianas humanas.Peixes de aquicultura reintroduzidos já regressaram às  suas bacias hidrográficas autóctones e, em alguns lugares, começam a reproduzir-se pela primeira vez em décadas.Em 1978, Giacinto pediu ajuda às autoridades soviéticas, mas estas recusaram. Então, ele foi aprendendo através de tentativa e erro, com a ajuda de cientistas franceses e italianos. Em 1988, aproximadamente na altura em que a pesca de esturjões selvagens foi proibida, ele criara finalmente um “método de remoção” não-invasivo, aplicando pressão suave no abdómen fértil da fêmea, de modo a “espremer” os ovos do peixe. Não eram necessárias incisões.Pouco depois, distribuiu os seus primeiros alevinos de esturjões-adriáticos por organizações de conservação, para projectos de repovoamento e, na década de 1990, começou a criar esturjões-adriáticos e outras espécies para produção de caviar. Pensa-se que todos os esturjões-adriáticos actualmente existentes descendam da população recolhida por Giacinto na década de 1970. “Olhando para trás, podemos dizer que [os Giovannini] provavelmente salvaram o esturjão-adriático”, diz Beate Striebel-Greiter, líder da iniciativa dos esturjões do World Wide Fund for Nature.Os especialistas têm esperança de que este tipo de esforços permita proteger outras espécies como a do Danúbio, a do Volga e o beluga, o maior e mais cobiçado. Os esturjões-beluga sofreram uma pressão demográfica esmagadora quando o número de esturjões caiu a pique no século XX devido ao excesso de pesca e à construção de represas. Floresceu então o mercado negro, no qual não havia regras e se estima que as fêmeas de beluga com ovos poderiam ser vendidas por cerca de três milhões de euros cada. Outrora, era possível encontrar e pescar esturjões-beluga no Norte de Itália. Agora, desapareceram dos rios italianos e só se encontram em números muito pequenos nos mares Cáspio e Negro… e em explorações de aquicultura.Embora o comércio de caviar ilegal persista, a expansão da aquicultura torna-o menos lucrativo. “Quando mato peixes com a minha mão direita, também posso estar envolvido na conservação com a mão esquerda”, diz John, irmão de Sergio Giovannini.Depois de saírem da exploração dos Giovannini, os esturjões de aquicultura viajam a bordo de uma carrinha até à empresa processadora de caviar Agroittica Lombarda, na cidade vizinha de Calvisano. A empresa processa quase 28 toneladas de caviar por ano. Ao contrário do que sucede no programa de criação dos Giovannini, a colheita de caviar ainda implica matar os peixes. Os esturjões são descarregados para uma calha de abate em forma de V e transportados para salas de processamento onde os operários, equipados com luvas e batas cirúrgicas, removem os ovários e retiram centenas de milhares de ovos escuros e reluzentes – que representam até 25% do peso total do peixe – para, em seguida, os lavarem, provarem, classificarem, pesarem, salgarem, embalarem, prensarem e, por fim, enlatarem e etiquetarem para venda. Ao longo do processamento, as ovas pretas espalham-se pelas mesas, pelos baldes e pelo chão.“Quando compramos caviar, não compramos as ovas do esturjão. Compramos uma percepção”, diz Paolo Bronzi, presidente da Sociedade Mundial para a Conservação do Esturjão. “Um produto de luxo, como champanhe, caviar…” Na sala de classificação, um dos operários dá-me a provar um pouco do caviar do esturjão do Danúbio, uma espécie em vias de extinção. É verdade, sabe mesmo a abundância: nascimento, sal, mar, vida.No Cazaquistão, nas margens do Syr Darya, os agentes das pescas cazaques fumam cigarros e aguardam, de olhar solidário, enquanto Bernie Kuhajda se esforça por manter-se equilibrado sobre o fundo lodacento do rio. Ele e Dave Neely deslizam a rede abaixo da superfície. Na primeira vez, capturam ramos e erva. Na margem do rio, vão colocando cada espécie capturada num recipiente para medi-la e fotografá-la, desemaranham a rede e voltam a metê-la na água, na esperança de que a próxima passagem capture um esturjão que nenhum cientista vê há mais de cinquenta anos.Este tipo de trabalho tem tido repercussões. Graças a cientistas e especialistas em aquicultura, as populações de esturjão já começaram a recuperar. No Leste da América do Norte, as populações de esturjão-atlântico, esturjão do golfo do México e esturjão-de-lago já conseguiram recuperar. Espécimes de aquicultura reintroduzidos, como os do rio Wolf, já regressaram às suas bacias hidrográficas um pouco por toda a parte, de Nova Iorque à Alemanha e à China e, em alguns sítios, começam a reproduzir-se pela primeira vez em décadas. Em 2021, após mais de trinta anos de repovoamento, os cientistas descobriram uma fêmea encalhada com ovos e detectaram juvenis em três rios italianos, sugerindo que os peixes reintroduzidos podem ter começado a reproduzir-se de novo. Em Abril de 2024, esturjões do rio Yangtzé criados em cativeiro desovaram no seu habitat autóctone pela primeira vez – quase dois anos após um painel de especialistas internacionais ter dado o peixe como extinto na natureza.Espécimes de aquicultura reintroduzidos, como os do rio Wolf, já regressaram às suas bacias hidrográficas um pouco por toda a parte.Os conservacionistas não desistiram das espécies mais ameaçadas: Bernie ajudou a identificar o último esturjão do Alabama capturado com uma rede na natureza em 2007. Os biólogos continuam a vasculhar o rio em busca dele e  encontraramADN do peixe nas suas águas. Infelizmente, Bernie não encontrou um esturjão do Syr Darya, mas planeia regressar na Primavera para procurá-lo a montante, no Uzbequistão, onde as águas são mais rasas e os canais entrançados facilitam a recolha. Ele acredita que eles estão ali e que a próxima expedição poderá trazer de novo à superfície o ansiado peixe pré-histórico. “Irei reconhecê-lo assim que ele sair da água”, diz. “E a minha cabeça andará à roda.”A National Geographic Society, empenhada em divulgar e proteger as maravilhas do nosso mundo, financiou o trabalho da exploradora Hannah Nordhaus nesta reportagem publicada originalmente na edição de Junho de 2025 da revista National Geographic.

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Os superpoderes, afinal, são humanos ou sobre-humanos?

Os superpoderes são reais. OK, talvez os humanos não consigam saltar por cima de edifícios altos, como o Super-Homem, ou disparar raios de energia com os olhos, como o Ciclope, mas, segundo os cientistas, os nossos corpos e cérebros têm o potencial de realizar muitas proezas aparentemente sobre-humanas.Por vezes, os superpoderes da vida real devem-se a mutações genéticas, tal como nas histórias sobre origens contadas pela banda desenhada. O povo sherpado Himalaia, por exemplo, adaptou-se a grandes altitudes com genes que lhe dão super-força e resistência.No entanto, outros superpoderes podem ser adquiridos. Sabemos que os corredores mais rápidos do mundo, como Usain Bolt, vencedor de medalhas de ouro olímpicas, podem atingir super-velocidades graças a anos de treino físico. Os atletas mentais, capazes de proezas de memória surpreendentes, também juram que qualquer pessoa pode desenvolver uma mente semelhante a uma armadilha de aço.Até o medo pode ser vencido com o condicionamento adequado. Basta perguntar ao escalador Alex Honnold, que já foi comparado com o Homem-Aranha por escalar vertentes rochosas íngremes sem cordas.Os cientistas começam a perceber o que se passa dentro do corpo e da mente das pessoas que possuem estas e outras capacidades altamente desenvolvidas. Estão a descobrir que, embora os nossos genes nos concedam alguma vantagem, a maioria de nós tem um potencial por explorar.Seguem-se alguns exemplos de super-heróis que se escondem entre nós – e a ciência por detrás das suas incríveis capacidades.Super destemido: Alex HonnoldA maioria das pessoas sente um calafrio só por olhar para uma fotografia de Alex Honnold pendurado num precipício apenas pelos dedos.Mas não Honnold. Quando os cientistas examinaram o cérebro do famoso escalador através de uma ressonância magnética funcional, descobriram algo surpreendente. Quando exposto a imagens que tipicamente desencadeiam uma actividade intensa na amígdala, uma região do cérebro associada ao medo, a amígdala de Honnold mantinha-se em silêncio absoluto.Em termos estruturais, o cérebro de Honnold é perfeitamente normal e há muito que ele nega não sentir medo. É possível que ele se tenha condicionado para diminuir determinada actividade cerebral, concentrando-se no planeamento meticuloso de cada movimento, escreveu Jane Joseph, a neurocientista que examinou a actividade cerebral de Honnold, na revista Popular Science.E isso é um superpoder que nós podemos explorar. Os psicólogos utilizam métodos de condicionamento semelhantes para ajudar as pessoas a superarem medos e a neurociência está a revelar como as memórias do medo são construídas e como podem ser desfeitas.Super resiliência: o caso dos Sherpas“Os seres humanos ainda estão a evoluir”, diz Tatum Simonson, que estuda a genética e a fisiologia da adaptação a grandes altitudes na Universidade da Califórnia, em San Diego. O povo sherpa do Nepal é um exemplo perfeito da capacidade de desenvolver um superpoder, diz ela.Os membros deste grupo étnico vivem há mais de 6.000 anos a uma altitude média de 4.250 metros acima do nível do mar, onde existe cerca de 40 por cento menos oxigénio do que ao nível do mar. “A selecção natural teve muito tempo para descobrir a melhor forma de lidar com a escassez de oxigénio”, diz Simonson.Normalmente, à medida que os níveis de oxigénio baixam, o corpo humano bombeia mais glóbulos vermelhos, as células que transportam oxigénio. No entanto, isso torna o sangue mais espesso e pode causar mal da montanha – ou até morte.Os sherpas desenvolveram várias mutações genéticas que lhes permitem manter níveis baixos de glóbulos vermelhos, enquanto as mitocôndrias das suas células consomem oxigénio de forma mais eficiente.Simonson está a estudar o desempenho dos tibetanos a altitudes mais baixas e descobriu que eles mantêm a sua vantagem mesmo ao nível do mar, um superpoder sobre o qual ela espera aprender mais, a fim de ajudar pessoas com deficiência crónica de oxigénio no sangue, devido a doenças respiratórias ou cardiovasculares.Super-nadadores: os ‘nómadas marinhos’ BajauExiste uma razão para gostarmos de super-heróis que voam alto como o Super-Homem ou mergulham nas profundezas do oceano como o Aquaman: eles conseguem ir onde o resto de nós não consegue.Os praticantes de mergulho livre não precisam de qualquer equipamento de mergulho para sondarem as profundezas aquáticas. O povo Bajau, das Filipinas, Malásia e Indonésia, é particularmente famoso por conseguir permanecer debaixo de água até 13 minutos, alcançando até 70 metros de profundidade.Tal como os sherpas, dizem os cientistas, os Bajau desenvolveram uma vantagem genética para consumirem oxigénio de forma mais eficiente. No entanto, uma vez que enfrentam uma forma mais imediata de privação de oxigénio, os Bajau desenvolveram um mecanismo mais rápido.Com o passar do tempo, a selecção natural privilegiou um baço maior, que contém glóbulos vermelhos oxigenados. Quando mergulham, os seus baços contraem-se e esguicham esta reserva para a corrente sanguínea.Super agilidade: samurai Isao MachiiNa ficção, criaturas míticas como os vampiros e os lobisomens possuem super agilidade; a capacidade de se deslocarem com um equilíbrio, coordenação e reflexos extraordinários. Na vida real, uma combinação de genética e treino permite a algumas pessoas deslocarem-se de forma sobre-humana.Vejamos o caso do espadachim Isao Machii. Se disparar uma bala na sua direcção, ele será capaz de cortá-la ao meio, em pleno ar, com um golpe da sua espada. Ou o lendário pistoleiro Bob Munden, que foi submetido a testes que provaram que conseguia sacar e disparar com precisão a sua arma em menos de um décimo de segundo – mais rápido do que o tempo de reacção de um cérebro humano comum.Os cientistas ainda estão a tentar perceber como o sistema nervoso central ajuda as pessoas a planearem e executarem movimentos tão complexos de forma inconsciente.Super memória: Atletas mentaisImagine decorar a ordem de um baralho de cartas em 20 segundos. Ou os nomes e as caras de algumas centenas de estranhos em poucos minutos. Para alguns dos atletas mentais que competem no Campeonato da Memória dos EUA, realizado anualmente, estes feitos são fáceis.E não há nada de especial nos campeões da memória, excepto o facto de terem treinado, diz Anthony Dottino, fundador do campeonato. Dottino e o seu filho Michael organizam programas de treino de memória e dizem que qualquer pessoa pode melhorar a sua memória – e com qualquer idade.Para prová-lo, Michael Dottino está a trabalhar com neurocientistas para estudar a forma como os treinos de memória afectam a actividade cerebral. A sua investigação já revelou como as técnicas de memória funcionam, formando redes neuronais no cérebro que fixam as memórias novas a memórias antigas.Além disso, um estudo publicado na revista Neuron concluiu que as pessoas normais podem melhorar as suas memórias de forma dramática com apenasseis semanas de treino.Aqui está um superpoder ao alcance de todos nós.Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

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A história do "Miss Macao", o primeiro avião comercial sequestrado da História

Miss Macao é o nome de um avião que ficou na História por motivos pioneiros, mas da espécie sombria: foi o primeiro avião comercial a ser sequestrado no ar desde que a aviação se tornou num meio de transporte regular.Devido à sua dispersão dos vários arquipélagos, o serviço de transporte via avião era comummente utilizado nos mares da China, incluindo Macau, que dava o nome ao personagem principal desta narrativa: um avião PBY Catalina, anfíbio, extremamente comum durante a Segunda Guerra Mundial pelo seu uso flexível. Durante o conflito, foi usado para diversas missões, desde vigilância de submarinos até ataques nocturnos, por ser fácil de controlar, rápido, resistente e de tamanho médio.A fiabilidade do CatalinaA popularidade do Catalina depois da guerra explica-se por tudo isto. A companhia aérea australiana Qantas, por exemplo, usava-o para a travessia entre o Sri Lanka e Perth, 27 horas no céu de plena confiança. Durante a fase final da Guerra, mesmo com as batalhas aéreas sobre o Índico e o Pacífico, os seus Catalina fizeram 271 voos sem qualquer problema. Os passageiros recebiam um certificado confirmando que haviam estado mais de 24 horas, um dia inteiro, a voar. Por isso, quando Hong Kong fundou a sua companhia aérea local, a Cathay Airlines, procurou logo obter um destes fiáveis modelos, comprando por um terço do preço um avião usado à Qantas. Chamou-lhe Miss Macao, e para atrair passageiros acrescentou-lhe um frigorífico para bebidas e tudo. O nome deveu-se à sua tarefa, fazer regularmente a viagem de quase meia hora entre Hong Kong e Macau.Ora, Macau foi sempre um território com leis sui generis. Por exemplo, enquanto durante muitas décadas os jogos de sorte foram proibidos na China continental comunista, Macau permaneceu a meca dos casinos, podendo encontrar-se um em cada rua. Da mesma forma, quando, no pós-guerra, o comércio de ouro foi proibido em praticamente toda a região do mar da China, por questões de segurança, Macau foi excluído desta regra.O arquipélago sempre teve um curioso estatuto nas relações entre Oriente e Europa, fruto de uma convivência frágil entre Portugal e China. Apesar das convulsões que atingiram os dois países no início do século XX (a queda da monarquia em ambos os casos), as relações mantiveram-se estáveis, com renegociações dos direitos de ocupação de Macau em 1928. Mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, a neutralidade portuguesa foi respeitada pelos japoneses, o que fazia do território insular uma espécie de passagem franca para vários criminosos e para esquemas quer por parte dos Aliados, quer por parte do Eixo. Macau conseguiu, portanto, evitar qualquer conflito durante boa parte da Guerra e manteve um certo estatuto de ilha livre de controlos nos anos que se seguiram.A viagem A 16 de Julho de 1948, o Catalina levantou voo de Macau para Hong-Kong. Vinte e cinco pessoas iam a bordo, incluindo quatro milionários: um jockey de corridas, um executivo da Coca-Cola, o dono de um circo famoso e um comerciante de ouro. Além destes, uma tripulação comandada pelo piloto norte-americano Dale Cramer e o co-piloto Ken McDuff – ambos convocados à última hora para substituir os pilotos originais, que adoeceram.Normalmente, o voo duraria vinte minutos, um sopro, numa noite que não antevia complicações: o céu estava limpo, o vento soprava sem força. No entanto, entre os passageiros, estavam quatro cidadãos chineses com intenções mais sinistras. Combinaram entre si que seria uma excelente ideia raptar os milionários passageiros, obrigando o avião a aterrar em Xiao Chika, uma pequena aldeia na província de Guangdong, e depois exigindo um resgate pelas vinte e uma almas restantes. Sabiam particularmente da identidade do comerciante de ouro, Huang Songping, conhecido por carregar amiúde barras do vil metal nas suas viagens. Estes piratas eram indivíduos pobres e estavam verdadeiramente desesperados e literalmente investidos neste arriscado plano: note-se que nunca ninguém tentara sequer um plano do género em toda a História da aviação.Quando passaram os vinte minutos e o Catalina não aterrou no destino, preocupações começaram a assaltar os que esperavam a sua aterragem. Mal sabiam que nesse preciso momento, um pescador na China continental assistira a um fenómeno que lhe pareceu sobrenatural. Um bólide do céu atingiu o solo a alguma distância e fez surgir uma enorme bola de fogo. No seu pequeno barco, o indivíduo deslocou-se ao local e encontrou a carcaça ainda ardente, destroçada, de um avião. Depois de muito buscar, apenas encontrou um sobrevivente. Levado ao hospital, este sobrevivente teve uma enorme surpresa quando, ao acordar, as primeiras pessoas que encontrou foram os polícias de Jizhou, a pequena aldeia onde o haviam encontrado.Este passageiro contou uma triste história, de como o avião explodira em pleno voo e que desmaiara e não se lembrava de mais nada. Apresentou-se como um pobre homem, desempregado, que voara até Macau em busca de um trabalho. Um homem chamado Zhao prometera-lhe um trabalho, comprando-lhe o avultado bilhete; no entanto, não soube muito bem explicar que emprego era este. Ninguém acreditou na história. Além de que pareceu completamente rocambolesca a ideia de que um avião tão fiável como o Catalina explodisse sem motivo, este estranho fora encontrado vestindo um colete salva-vidas, o que seria impossível em estado inconsciente. Além disso, testemunhas em terra garantiram que barulhos de disparos se fizeram escutar.A investigação revela os seus culpadosA análise dos destroços trouxe à liça outros inquietantes pormenores. Buracos de balas foram encontrados, e outros projécteis estavam ainda cravados e foram recuperados, revelando pelo menos duas armas diferentes. Ficou claro que alguns dos passageiros haviam sido atingidos, nomeadamente o co-piloto. Todos os passageiros foram identificados, excepto três homens.Depois de ter mentido à polícia, o sobrevivente passou a ser o principal suspeito em tudo isto. Para ajudar na obtenção de provas, a companhia aérea Cathay anunciou que se alguém desse informação que possibilitasse a identificação de qualquer um dos misteriosos passageiros, haveria uma recompensa. Tendo este dinheiro em vista, uma mulher chegou-se à frente e revelou que um deles era seu parente. Além disso, os outros dois eram seus amigos e haviam ficado em sua casa com um terceiro indivíduo. O quarteto iria voar para Hong Kong, mas apenas com uma bagagem de mão. Ora, a única coisa que faltava era uma confissão.Surpreendendo no método, em vez de usar costumeiras práticas violentas, os agentes de ordem chineses foram astutos. Um polícia à paisana fingiu estar a visitar o doente no quarto do estranho. Levando consigo um jornal português, mentiu, dizendo-lhe que os três restantes piratas haviam sobrevivido e quando presos rapidamente confessaram todo o plano, implicando-o como líder. O estranho, que revelou chamar-se Wong Yu, negou tudo e explicou que era apenas um homem de mão e fora Zhao o verdadeiro cabecilha e planeador. Contou então o que se passara. Eis a sua versão: os quatro homens decidiram tornar-se piratas. Um deles passara algum tempo em Manila, trabalhando num aeroporto, e aprendera a pilotar e surgiu então a mirabolante ideia de raptar pessoas durante um voo. Venderam tudo o que tinham, incluindo os seus arrozais, e com três mil dólares americanos no bolso, compraram os bilhetes. Um dos piratas exigiu ao piloto que abandonasse os comandos, mas o co-piloto pegou numa arma de ferro e tentou desarmá-lo. Como reacção, os inexperientes assaltantes do ar dispararam selvaticamente sobre as duas únicas pessoas que sabiam controlar o aparelho. Sem controlo, o avião caiu a pique nos mares do Sul da China.A história do primeiro assalto aéreo podia ficar aqui, com um final satisfatório. Wong Yu foi preso, o caso resolvido. No entanto, uma última reviravolta aguarda o leitor. Levado o caso a tribunal pela Polícia de Macau, o juiz sugeriu que, estando o Miss Macao registado em Hong Kong, era então às autoridades daquele território que competia a jurisdição de um crime cometido no avião. As autoridades britânicas, no entanto, retorquiram que o incidente se dera em território chinês, com o avião a despenhar-se no estuário do Zhujiang e, como tal, era a China que se devia encarregar do problema.A China não reclamou a justiça deste cidadão e, assim, Wong Yu foi libertado em 1951 e deportado de Macau para a China continental. Desapareceu da história (rumores dizem que foi assassinado no próprio dia da libertação). Apesar de outros crimes anteriores envolvendo aviões (com agressões a bordo ou aparelhos roubados ainda no aeroporto), foi a primeira vez em que uma tentativa de sequestro e assalto foi feita em pleno voo. Este acto seria usado em anos seguintes como arma de terrorismo, reivindicação política (veja-se, em Portugal, o caso da Operação Vagô, em 1961) e a simples ganância, criando anti-heróis folclóricos ou misteriosos como D.B. Cooper.

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Uma dieta arriscada

À primeira vista, a vida desses marsupiais parece simples: dormir quase vinte horas por dia e passar o resto do tempo a mastigar folhas de eucalipto. Mas por detrás dessa rotina sonolenta há um desafio constante. O eucalipto não só é pobre em nutrientes, como também está repleto de compostos tóxicos para a maioria dos mamíferos, que induzem um estado de sonolência permanente nos coalas.Estes animais desenvolveram um intestino longo e especializado que abriga bactérias capazes de decompor as toxinas e extrair o escasso valor energético das folhas de eucalipto; mas, mesmo assim, a sua dieta é tão pobre que não podem dar-se ao luxo de gastar energia em excesso, daí o seu carácter tranquilo e o seu gosto por descansos prolongados. Além disso, eles consomem apenas algumas das mais de 600 espécies de eucalipto, escolhendo cuidadosamente as folhas mais tenras e menos tóxicas. A sua alimentação é uma aposta arriscada, uma adaptação ao limite que funciona entre margens muito estreitas.

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