Este porco poderá salvar a sua vida
Os requisitos de entrada deveriam ter vindo acompanhados de um manual de instruções. “Registe-se na cabina de segurança. Tire os sapatos junto da porta. Dirija-se aos balneários e tome um duche quente. Vista um fato cirúrgico protector comprido e as botas de borracha até aos joelhos e, por fim, coloque um par de óculos de segurança que, com o calor pegajoso do complexo laboratorial, ficarão rapidamente embaciados.”“Lamento o incómodo”, disse-me, a sorrir, o meu guia, Björn Petersen, acenando-me para avançar. “Temos de ser excepcionalmente cuidadosos com os agentes patogénicos. Vai ver que se habitua, prometo.”Horas antes, eu acordara num hotel numa cidade da região do Midwest, cujo nome me pediram para não mencionar. Agora que a luz do Sol se espraia sobre a pastagem à minha volta e um manto de neblina paira no ar, dou por mim a seguir Björn, um cientista de origem alemã, pelos corredores de um centro de investigação altamente secreto e atravessando um pátio lamacento, com marcas das pegadas deixadas pelas botas.“Quando comprámos este sítio, os proprietários estavam a usá-lo como centro de investigação para estudar gado”, disse. Apontou depois para um celeiro adjacente. “As vacas estavam aqui e os cavalos ali em cima no campo. Mantivemos praticamente a disposição, mas, como é evidente, o nosso objectivo é muito diferente.”Quando entrámos no celeiro, disse-me algo que não percebi – a voz dele foi abafada por um coro estridente de grunhidos de expectativa e a algazarra dos chispes a bater no cimento. Cerca de uma dezena de porcos avançaram para a frente dos seus recintos individuais, batendo com os focinhos nos portões de metal. “Quero apresentar-lhe alguém”, disse Björn, pestanejando sob a luz forte. Ele parara junto do recinto de um animal cuja placa identificava como Margarita. Ela aninhou o corpo contra a mão de Björn, como se fosse um gato doméstico muito grande. “A Margarita foi uma das nossas primeiras”, disse o investigador com orgulho, debruçando-se para acariciar os protuberantes pêlos negros entre as orelhas da porca. “A maioria dos animais que está a ver foram criados a partir das mesmas células, mas há algo de especial no primeiro, não acha?”Björn Petersen, responsável pelo complexo, é especialista em clonagem de gado e xenotransplantes, uma técnica científica incrivelmente avançada, na qual matéria animal é transferida para pacientes humanos. O nome deriva da palavra grega para “estranho” ou “estrangeiro”. Em 2023, após quase um quarto de século a trabalhar em centros de investigação governamentais na Europa, Björn Petersen mudou-se com a família para o Midwest, nos EUA, onde aceitou um trabalho na eGenesis – uma empresa de biotecnologia financiada por um grupo de investidores de capital de risco – que dava então os primeiros passos de um plano fenomenal para desenvolver rins de porco geneticamente modificados com a intenção de os transplantar em seres humanos.Impulsionada pelos avanços da edição de genes e da medicação imunossupressora, a eGenesis rapidamente demonstrou que os seus órgãos poderiam sobreviver durante longos períodos nos corpos de sujeitos de teste primatas, filtrando o sangue e produzindo urina tão competentemente como um rim “alotransplantado”, ou seja, da mesma espécie. Agora, dois anos mais tarde, Björn Petersen e a eGenesis encontram-se na linha da frente de uma grande revolução na ciência do transplante de órgãos.A revolução que poderá superar a escassez de dadores humanos a nível global e a situação dos milhares de doentes que, todos os anos, esperam por um novo rim. Os resultados já se revelaram impressionantes: um progresso dos testes de transplante realizados em primatas, para cirurgias de transplante para seres humanos em morte cerebral – e, por fim, no mês de Março de 2024, num desenvolvimento que foi noticiado em todo o mundo, para um transplante num ser humano vivo.Depois disso, os funcionários da Agência para a Alimentação e para os Fármacos (FDA) dos EUA deram luz verde à eGenesis para realizar um ensaio clínico com três pacientes, passo que contribuiu para aumentar o interesse despertado pela empresa. Desde que se mantenha no bom caminho e os testes sejam bem-sucedidos, a empresa tem planos para reforçar a sua capacidade de produção. Mike Curtis, director executivo da eGenesis, acredita que a ciência ficará amplamente disponível ao público antes do final da década. “A longo prazo, diria que estamos perante um cenário no qual os transplantes entre espécies suplantam por completo os alotransplantes. Chegaremos a um ponto em que já não precisaremos de dadores humanos”, prevê.Para chegar a esse ponto, serão necessários mais aperfeiçoamentos da tecnologia e mais porcos como Margarita e cientistas como Björn Petersen. Acima de tudo, porém, será necessária a confiança dos pacientes que se submetem às cirurgias e colocam as suas vidas nas mãos desta ciência inovadora e dos médicos e hospitais que estão a promovê-la. O xenotransplante bem-sucedido do ano passado – um procedimento de quatro horas realizado no Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, que exigiu uma fé inabalável, uma dose enorme de desespero e uma quantidade imensurável de sorte – foi, possivelmente, o passo em frente mais significativo rumo a este novo futuro.Tudo começou numa quinta do Midwest, onde, numa manhã fria de Março, uma carrinha estava à espera de madrugada. A porta da carrinha abriu-se, um porco com um ano foi colocado no interior e o veículo deslizou pela estrada, transportando aquilo que representava anos de investigação clínica, esperança e investimento a grunhir na parte de trás.Ao longo das 18 horas seguintes, enquanto a carrinha viajava para leste ao longo da I-90, um milhão de cenários passou pela cabeça de Mike Curtis. “Passa tudo pela cabeça, incluindo a possibilidade de outro veículo embater na carrinha”, diz. Ou de Rick Slayman mudar de ideias.O silêncio reinava na sala. Todas as outras opções tinham sido esgotadas e o tempo chegava ao fim. Sentado atrás da secretária, no seu gabinete do Hospital Geral de Massachusetts, em frente de um homem que se tornara seu amigo, para lá de seu paciente, o nefrologista Winfred Williamsfez a pergunta improvável e esperou pela resposta.“Conhece o termo ‘xenotransplante’?”Rick Slayman, cujos acessos vasculares para fazer diálise se esgotavam, abanou negativamente a cabeça. Winfred não se mostrou surpreendido. Em 2023, os xenotransplantes ainda eram um tema relegado para as revistas científicas, ou notícias curtas e ocasionais sobre enxertos de pele ou transplantes de córnea. Por isso, deu o seu melhor para explicar que os avanços rápidos na edição de genes estavam a criar a esperança de que, em breve, os médicos conseguissem implantar um rim de porco num ser humano, sem risco de rejeição aguda e imediata. “a longo prazo, diria que estamos perante um cenário no qual… já não precisaremos de dadores humanos.”Mike Curtis, director executivo da empresa de biotecnologia eGenesisO especialista conversara longamente com pessoas de uma empresa de biotecnologia chamada eGenesis, situada na outra margem do rio Charles. Descobrira que a empresa recebera recentemente autorização da FDA para proceder a um ensaio de “acesso alargado”, uma concessão especial para tratar pacientes sem tratamentos alternativos à sua disposição.Winfred nem precisou de dizer a Rick que ele poderia candidatar-se ao procedimento. Supervisor do Departamento dos Transportes de Massachusetts, homem alegre com o hábito de encantar quase todas as pessoas que conhecia, Rick lutara desde sempre contra a hipertensão e a diabetes, condições frequentemente conjuntas que tinham conduzido a sua insuficiência renal à fase final: a destruição significativa dos seus rins e respectivo declínio do funcionamento. Rick fora submetido a uma bateria de diálise, mas, como Winfred Williams recordou mais tarde, o tratamento começou rapidamente a consumir demasiado tempo à equipa médica e tornou-se extremamente doloroso para Rick. “Para a diálise funcionar devidamente, é preciso acesso vascular fiável”, explica o médico. Tradicionalmente, esse acesso é assegurado através de uma fístula arteriovenosa, uma ligação cirúrgica entre uma artéria e uma veia e perfurada por agulhas. Uma das agulhas remove o sangue do paciente e a outra devolve-lhe uma versão “limpa”. “No caso do Sr. Slayman, o problema era que ele estava a fazer muitos coágulos e isso dificultava um fluxo contínuo durante a diálise”, continuou. “Num ano, ele foi submetido a várias sessões de descoagulação num hospital. Uma após outra, após outra.”Era uma forma de vida difícil para qualquer um, e mais ainda para alguém tão enérgico como Rick. O prognóstico a longo prazo era sombrio. Mesmo a diálise mais eficaz não cura as lesões renais. Torna simplesmente possível um paciente continuar a viver. No final, é necessário um transplante, desde que se consiga arranjar um órgão: em 2018, dos cerca de 95 mil norte-americanos que aguardavam por um novo rim, apenas um quarto conseguiu obter esse órgão.Em Dezembro desse ano, Rick Slayman era um dos sortudos 25%. A sua cirurgia, realizada por um cirurgião veterano do Hospital Geral de Massachusetts, Tatsuo Kawai, não teve quaisquer problemas e as complicações pós-cirúrgicas pareciam mínimas. Rick conseguiu voltar a trabalhar a tempo inteiro. No entanto, passados três anos, sintomas familiares começaram a reaparecer, como o inchaço e a fadiga. Os testes revelaram cicatrizes no rim doado e evidências iniciais de diabetes recorrente. “Foi muito claro para mim que o órgão não sobreviveria por muitos mais anos”, disse-me Winfred Williams.Rick Slayman viu-se de novo obrigado a submeter-se a um ciclo punitivo de diálise e descoagulação. Mais tarde, os médicos prescreveram-lhe um tratamento com anticoagulantes e instalaram uma nova fístula na secção de cima da sua coxa. Nada parecia ajudar. Em vez disso, emergiam mais sinais preocupantes, como hipercalemia, ou seja, níveis anormalmente elevados de potássio, que dificultavam a respiração, obrigando Rick a acorrer às urgências locais em busca de tratamento.Embora hoje pareça inovadora, a ciência dos xenotransplantes renais remonta há décadas.“Teve de ser submetido a intervenções que exigiam anestesia e estadas prolongadas no hospital e lembro-me de ele dizer: ‘Doutor, não tenho a certeza se consigo continuar assim’”, continuou o médico. “Pensou em desistir por completo da diálise. E nós sabíamos que isso seria uma sentença de morte.”Foi nesse momento que Winfred Williams ponderou a ideia do xenotransplante, recordando as suas conversas com a eGenesis. O médico confiava nos cientistas da empresa: visitara os laboratórios e ficara maravilhado com o que vira. Mesmo assim, sabia que o seu paciente teria algumas reservas. Tal como Rick Slayman, Winfred Williams é negro e lembrou-se dastristemente célebres experiências de Tuskegee: durante 40 anos, o governo norte-americano realizou um estudo com centenas de homens negros com sífilis, mas escondeu-lhes intencionalmente os diagnósticos e privou-os de tratamentos com penicilina quando esta se tornou disponível. “Temos de perceber que aquilo que aconteceu em Tuskegee ficou marcado a ferro e fogo nos norte-americanos de ascendência africana”, resumiu o médico. “Criou neles um medo profundo de serem usados como cobaias.”Ao longo de várias reuniões sobre consentimento informado, Winfred fora tão claro com Rick sobre os perigos de se submeter a uma cirurgia inovadora como sobre os perigos de não fazer nada. Não seria fácil. Rick assimilou o risco. Em conversas com a família, recordou mais tarde a sua filha Pia Slayman, o pai mostrou-se “confiante de que a cirurgia seria um sucesso. Por isso, eu só podia apoiá-lo”.A última sessão de consentimento informado ocorreu no início de 2024, pouco antes da data marcada para a intervenção cirúrgica. Winfred disse-me que Rick chorou. “Disse: ‘Eu quero fazer isto, mas eu quero que você esteja lá para mim. Que tome conta de mim.’ E eu prometi que o faria. Foi um momento muito comovente porque o Sr. Slayman estava prestes a embarcar numa viagem por águas completamente desconhecidas. Eu podia tratar da navegação, mas o pioneiro teria de ser ele.”Embora nos pareça inovadora, a ciência dos xenotransplantes renais remonta há décadas, resultando parcialmente do trabalho de um talentoso médico e professor da Universidade de Tulane chamado Keith Reemtsma. No início da década de 1960, este cirurgião cardiotorácico começou a planear uma série de cirurgias de animais para humanos utilizando rins removidos de chimpanzés de laboratório. Estava motivado por uma ideia: durante décadas, os cientistas tinham feito transfusões de sangue – ou enxertos de pele – de animais para pacientes humanos. O rim e a utilização de imunossupressores em destinatários humanos representaria um mero passo em frente, em escala e complexidade. Alguns anos mais tarde, Keith Reemtsma foi validado quando um dos seus pacientes sobreviveu aproximadamente nove meses com um rim de chimpanzé – proeza notável numa época em que as probabilidades de sobrevivência dos pacientes com insuficiência renal eram ainda mais baixas do que na actualidade. Não havia acesso generalizado a tratamentos de diálise e não existia uma base de dadores nacional para transplantes renais.A euforia durou pouco. Na década de 1960, a doença renal já atingira o estatuto de crise nos EUA e mesmo que os xenotransplantes pudessem ser aperfeiçoados – uma grande incógnita, tendo em conta que 12 dos 13 pacientes de Keith Reemtsma não duraram mais do que oito semanas com os órgãos de chimpanzé – como poderiam os cientistas garantir a disponibilidade de um número suficiente de primatas? Uma solução tão difícil como esta não fazia sentido, diz Robert Montgomery, especialista em transplantes da Universidade Langone de Saúde, em Nova Iorque, e ele próprio detentor de um coração transplantado. Também se impunha a questão do bem-estar animal: “Pessoas como Jane Goodall contribuíram muito para o nosso conhecimento sobre os graus de semelhança entre nós e os primatas”, disse.Por fim, acrescentou o especialista, a epidemia de Sida progrediu. Presume-se que a doença teve origem em símios. “Uma espécie dadora mais próxima dos seres humanos na escala evolutiva facilita a probabilidade de um bom resultado”, disse Robert Montgomery. “Por outro lado, também é mais fácil transmitir um agente patogénico de um primata para um ser humano” do que seria com qualquer outro animal.Digamos, por exemplo, um porco.Embora sendo criaturas notavelmente inteligentes, os porcos tendem a não ser vistos com particular reverência pela maioria das pessoas. Segundo uma estimativa, mais de mil milhões destas criaturas são abatidas e consumidas pelo ser humano todos os anos. E os porcos reproduzem-se com facilidade, tipicamente duas ou três vezes por ano, tendo ninhadas com oito a 12 bácoros, em média. Esta é uma das razões pelas quais muitos investigadores da área dos xenotransplantes começaram a afastar-se dos primatas a partir do início da década de 1990.Essa mudança veio acompanhada por obstáculos específicos, o mais frustrante dos quais era um antígeno suíno conhecido como oligossacarídeo galactose, abreviado para alfagal. Este antígeno, presente nos porcos, não existe no corpo humano, que tenta eliminá-lo da corrente sanguínea produzindo anticorpos que se agreguem a ele. Quando isto acontece após um transplante de órgãos, costuma desencadear a rejeição aguda do órgão recebido. Os antibióticos e os imunossupressores podem ajudar, mas não a longo prazo, como concluíram com relutância vagas sucessivas de investigadores, ao compreenderem que seriam obrigados a remover o antígeno alfagal do rim do porco – um procedimento moroso.Em 2012, as cientistas Emmanuelle Charpentier e Jennifer A. Doudna propuseram uma solução eficiente e inovadora, patenteando uma tecnologia conhecida como CRISPR-Cas9 – a analogia mais utilizada compara-a a uma “tesoura molecular”. Utilizando a CRISPR, os investigadores fazem “cortes” no código genético humano e animal, substituindo assim mutações que causam doenças e alterando, de forma fundamental, a forma como os genes se exprimem.Nos EUA e na Europa, qualquer intervenção experimental tem de passar por duas etapas antes de ser disponibilizada ao público. Na fase pré-clínica, um fármaco ou cirurgia é testado em laboratório. Na segunda, caso os reguladores considerem os resultados aceitáveis, os investigadores podem passar para os seres humanos.Em 2017, um ano antes de Rick Slayman receber um rim doado por um ser humano, os cientistas afiliados da eGenesis iniciaram um ensaio pré-clínico com vários macacos que receberam rins de porco modificados em laboratório, informalmente apelidados de knockouts – uma alusão aos antígenos eliminados através do processo de edição de genes. Um dos macacos viveu quase trezentos dias.“Tivemos uma reunião com a FDA e, basicamente, perguntámos: ‘De que precisam para nos deixarem passar [para a próxima etapa]?’”, recorda Mike Curtis, o director executivo da eGenesis. “Eles deram-nos um valor: 12 meses de sobrevivência num macaco. E eu pensei que estávamos claramente a avançar na direcção certa.”No entanto, a eGenesis não era a única a desejar a aprovação da FDA. A Revivicor, uma subsidiária da empresa de biotecnologia United Therapeutics, desenvolvera em simultâneo os seus próprios rins de porco modificados. Os métodos de engenharia utilizados pela eGenesis e pela United Therapeutics, empresa cotada em bolsa e considerada de utilidade pública, parecem semelhantes. Os cientistas de cada empresa começam por editar células fetais suínas a fim de eliminarem a expressão de antígenos perigosos, antes de clonarem as células através de transferência nuclear – técnica que produz embriões com uma composição genética compatível. “ O Sr. Slayman estava prestes a embarcar numa viagem por águas incertas. Eu podia tratar da navegação, mas o pioneiro teria de ser ele.”Winfred WilliamsOs embriões saudáveis são implantados em fêmeas, que parem ninhadas de bácoros com células editadas idênticas, mas é aqui que acabam as semelhanças na abordagem das duas imagens. A United Therapeutics elimina apenas quatro genes suínos, preferindo utilizar uma raça de porco chamada Landrace, devido à sua fertilidade e tamanho das ninhadas. A eGenesis faz 69 edições nas suas células, 62 das quais são eliminações e sete são acrescentos provenientes do genoma humano. E essas células têm uma origem diferente: a eGenesis prefere utilizar uma raça mais pequena chamada Yucatan, com órgãos de dimensão mais parecida com os do ser humano. Em Setembro de 2021, a NYU Langone foi autorizada pelos reguladores a transplantar um rim de porco editado pela United Therapeutics num paciente humano em morte cerebral. (Uma vez que um paciente em morte cerebral é legalmente considerado morto, o corpo foi assistido por um ventilador durante o procedimento.) Robert Montgomery realizou a cirurgia. “Passei a maior parte da minha carreira a tentar aumentar o número de dadores de órgãos vivos”, disse, lembrando que o número anual de dadores de rins vivos estagnou há 15 anos, mantendo-se na fasquia de seis mil nos EUA. “Foi difícil não considerar o transplante uma inovação. O entusiasmo era palpável. Eu também o senti.”Em Outubro de 2021, a universidade divulgou as notícias: o rim xenotransplantado fora ligado à coxa do paciente através de uma rede de vasos sanguíneos e começou a funcionar de imediato, criando urina durante quase três dias.Restava um passo decisivo: um teste num paciente vivo.“Foi difícil não considerar o transplante uma inovação. O entusiasmo era palpável. Eu também o senti.”Robert MontgomeryPoucas horas depois da última reunião de consentimento informado com Rick Slayman, no gabinete de Winfred Williams, as engrenagens começaram a girar nas instalações da eGenesis. Perante o olhar atento de Björn Petersen, o pequeno porco foi colocado na carrinha, que acelerou estrada abaixo até à via rápida.A viagem que se seguiu foi “uma dança logística”, resumiu Mike Curtis. Viajando para leste durante a noite, o porco chegou a um centro veterinário na zona ocidental do estado de Massachusetts. Ali, ambos os seus rins foram removidos pela equipa cirúrgica e o porco foi eutanasiado após a operação. Ao meio-dia, os órgãos tinham sido embalados numa caixa refrigerada e colocados na traseira de outra carrinha, desta vez com destino a Boston. No hospital, Rick Slayman – previamente submetido a um forte tratamento com imunossupressores – foi anestesiado e preparado para a cirurgia, enquanto a família aguardava ansiosamente na sala de espera. Às 13 horas do dia 16 de Março, a cirurgia começou.A partir do seu lugar no bloco operatório, Winfred Williams observou os colegas Leonardo Riella, director clínico de transplantes renais do Mass General, Tatsuo Kawai, que fizera o primeiro transplante renal de Rick Slayman alguns anos antes e trabalhara com Riella para obter as autorizações da FDA, e Nahel Elias, director cirúrgico de transplantes renais, enquanto faziam a cirurgia. Todos conheciam as dificuldades causadas pelo longo combate de Rick contra a doença renal e pela sua hipertensão. “Toda a sua anatomia vascular mudara”, resumiu Winfred. “Tinha os vasos sanguíneos muito calcificados e endurecidos e não podemos simplesmente abrir vasos calcificados e fazê-los funcionar. Temos de procurar a distribuição anatómica certa. Além disso, temos de nos lembrar de que o Sr. Slayman era um homem grande e que os vasos disponíveis para ligar o rim doado se encontravam mais ou menos nas profundezas da sua cavidade abdominal.”Nos dias que precederam a intervenção cirúrgica, Pia Slayman lembrou-se de quão confiante o pai estava em relação ao sucesso da cirurgia. Quando entrou na sala de recobro naquela noite, pegou na mão do pai e chorou de alívio. Embora compreendesse o significado histórico da cirurgia e o interesse que esta inspiraria nos jornalistas, Rick disse ao pessoal hospitalar que preferia manter-se longe dos holofotes. Animado e cheio de coragem, concordou em posar para algumas fotografias, juntamente com a família antes de regressar à casa que partilhava com a sua noiva, Faren Woolery.A semana seguinte foi complicada: poucos dias depois da cirurgia, Rick foi diagnosticado com sintomas de rejeição aguda e tratado com aquilo que Williams descreveu com a mesma medicação anti-rejeição “que utilizaríamos num transplante humano comum”. O tratamento foi eficaz.“Ele vai entrar no panteão da História da medicina.”Winfred Williams dirigindo-se aos amigos e familiares de Rick SlaymanNo entanto, 51 dias após o transplante, Rick regressou para mais uma consulta. Os médicos repararam então em sinais de perda de volume – estava a perder mais nutrientes e fluidos do que absorvia. Foram-lhe administrados fluidos por via intravenosa de forma a melhorar o volume de líquidos “e recebeu uma infusão de magnésio para lidar com alguns níveis baixos”, explicou Winfred.Nesse mesmo dia, Rick e Faren saíram do hospital e foram às compras perto de sua casa, na cidade de Weymouth. Pararam em duas lojas. Rick acompanhou a noiva na primeira, mas pediu-lhe para não o fazer na segunda. Não lhe apetecia. Nessa noite, depois de jantarem e verem televisão juntos, o casal foi deitar-se. No quarto, Faren reparou que Rick parecia sofrer dificuldades respiratórias, respirando de forma superficial, por volta das 23h30.Por volta da meia-noite, Rick sofreu uma paragem cardíaca. Faren ligou para as urgências e contactou depois Winfred Williams, que direccionou a equipa de emergência médica para conduzir Rick às urgências hospitalares mais próximas. O médico correu ao seu encontro, no Hospital South Shore, em Weymouth, mas os seus esforços não foram suficientes: Rick Slayman faleceu na madrugada de 11 de Maio, aos 62 anos.Nas horas que se seguiram à sua morte, a família reuniu-se com Winfred Williams em South Shore para ser informada sobre o sucedido. O irmão e a noiva de Rick participaram na reunião. O médico explicou que era fundamental perceberem o que acontecera, dado o seu estado de saúde relativamente saudável mais cedo, naquele mesmo dia. Depois de telefonar à mãe de Rick, a família autorizou a realização de uma autópsia. Os resultados que foram publicados no início deste ano revelaram que o problema fora o coração, não o rim. “Aquilo que achamos que aconteceu é que, devido à sua doença cardíaca grave, ele padecia de arritmia e teve um episódio que conduziu à sua morte”, resumiu o médico.O tecido do rim estava saudável e, embora houvesse “evidências residuais” dos sintomas iniciais de rejeição “não ocorrera uma insuficiência renal aguda que pudesse ter causado o falecimento do Sr. Slayman”, disse Winfred Williams. “Em suma, o xeno-enxerto estava a funcionar razoavelmente bem.”É claro que pode ser difícil ver as coisas dessa forma, tendo em conta que as pessoas que recebem rins de dadores humanos mortos podem viver 12 anos e as pessoas que recebem um órgão de um dador vivo podem viver até duas décadas. Rick Slayman viveu menos de dois meses, com algumas intervenções médicas pelo meio. E Lisa Pisano, que, em Abril de 2024, se tornou a segunda paciente viva a receber um rim de porco modificado – no seu caso, da United Therapeutics – faleceu três meses após o transplante devido a problemas cardíacos.Robert Montgomery, que chefiou a equipa cirúrgica de Pisano, lembrou que “os pacientes à beira da morte, que tentamos salvar com uma tecnologia nova em folha, ainda em aperfeiçoamento, não são bons indicadores do sucesso da ciência a longo prazo. Estamos a lidar com o mais difícil dos cenários”.Vários dias após o falecimento de Rick Slayman, Winfred Williams foi convidado a falar no seu funeral, realizado numa igreja baptista de Milton, no estado de Massachusetts. Não sabia como seria recebido. A sua mente recuou até ao legado persistente das experiências de Tuskegee. “Quando entramos neste tipo de congregação, nunca sabemos como vamos ser recebidos porque pode existir a suspeita, mesmo que não verbalizada, de que fizeram experiências com este indivíduo porque é isso que fazem às pessoas negras”, lembrou.Na igreja, toda a equipa médica de Rick Slayman se juntou a Williams e ele iniciou o seu discurso apresentando Tatsuo Kawai. Os receios sobre a forma como seriam recebidos desapareceram de imediato. “Antes de eu acabar de dizer o nome completo dele, a congregação levantou-se e aplaudiu de pé. Aquela energia foi simplesmente inacreditável.” Contando-me o que disse à igreja cheia de gente, Williams conteve as lágrimas. “Ele vai para o panteão da história da medicina. Queria que soubessem que ele dera novas esperanças a pacientes em todo o lado.”Após as intervenções cirúrgicas de Rick Slayman e Lisa Pisano, a eGenesis e a United Therapeutics, juntamente com hospitais de todo o país, receberam uma torrente de pedidos de pacientes há anos em listas de espera por rins humanos. Não interessava que os reguladores da FDA ainda só autorizassem ensaios de acesso alargado. As notícias dos transplantes tinham aberto as comportas. “As pessoas queriam acesso”, recorda Mike Curtis. “Se a sua saúde já está em declínio, por que teriam de esperar?”Mike Curtis só era capaz de responder com a verdade: a eGenesis trabalhava o mais arduamente possível para fazer a tecnologia chegar a mais pacientes. “Expliquei muitas vezes que queremos todos o mesmo, mas queremos fazê-lo bem”, contou. E fazê-lo bem exigiria a aprovação para ensaios clínicos com pacientes saudáveis, acrescentou. Pacientes como Tim Andrews.Antigo gerente de supermercado nascido em Concord, no estado de New Hampshire, Tim, de 67 anos, submetia-se a tratamentos de diálise três vezes por semana há dois anos – procedimento que demorava com frequência seis horas, incluindo a viagem e o tempo de preparação, e o deixava fraco e exausto. Quando falei com ele sobre as dificuldades de diálise, lembrou-me que o seu apetite desaparecia e que a náusea era quase constante. Começou a confrontar a provável realidade de nunca receber um órgão humano e de ter de repetir esta rotina emocionalmente esgotante para o resto da sua vida. Tal como acontecera a Rick Slayman, essa ideia era assustadora.Contudo, no final de Agosto do ano passado, deram-lhe a oportunidade de realizar um xenotransplante no Hospital Geral de Massachussets, no âmbito de um ensaio da eGenesis com três pacientes, autorizado pela FDA. Caso concordasse, teria a possibilidade de começar de novo. Teria, nas suas palavras, “uma segunda oportunidade”. A sua família estava desconfiada: a irmã, enfermeira, advertiu-o sobre os riscos. Mas ele mostrou-se decidido.“Não é assim que quero partir – quero fazer algo”, lembra-se Tim de ter dito. “Sabia que poderia morrer de imediato. Expliquei à equipa do hospital que, se morresse mas permitisse que aprendessem algo, valeria a pena. E se não morrer e conseguir dar esperança às pessoas, isso é o que o que eu realmente desejo.”Em Janeiro, Tim submeteu-se ao transplante, realizado por uma equipa cirúrgica de novo chefiada por Tatsuo Kawai. Saiu do hospital radiante, com a mulher, Karen, a seu lado. Nada era garantido, ele sabia. Mesmo assim, obtivera aquilo que esperava: um novo crédito da vida. “Cada dia é um dia novo”, disse.Segundo uma recente notícia da Nature, sua recuperação, para já, progrede em conformidade com o plano estabelecido. Treina num ginásio duas vezes por semana, leva com regularidade o braco alemão a passear e ajuda a mulher em casa, aspirando o chão. Se tudo continuar a correr bem, no próximo ano o casal viajará de avião para visitar os parentes dela, no Norte de Itália.Enquanto recupera a energia, Tim tenta também inspirar as dezenas de milhares de pessoas afectadas pela crise de doação de órgãos. “Se eu morrer e vocês tiverem aprendido algo, então seja. E se eu não morrer e conseguir dar esperança às pessoas – isso é o que eu realmente desejo.”Tim andrewsTodas as quartas-feiras à noite, encontra-se na Internet com um grupo de apoio para pacientes de transplantes, que se apoiam mutuamente. Como é natural, perguntam-lhe sobre o seu rim de porco. “Quero dar essa esperança a todas as pessoas que estão a fazer diálise ou a lutar contra a doença renal”, disse.A fuga à diálise e o revigoramento total do corpo são o futuro para Tim e, potencialmente, para mais dezenas de pessoas ao longo dos próximos anos, caso os ensaios clínicos se alarguem a 50 pacientes, conforme planeado. E tanto ele como Mike Curtis reconhecem que nada disto seria possível sem Rick Slayman e Lisa Pisano, que provaram que o potencial dos rins geneticamente modificados era mais do que hipotético – uma solução real que valia a pena perseguir.“Para aqui chegarmos, devemos muito a pessoas corajosas como o Sr. Slayman e todos os cientistas sobre cujos ombros nos erguemos”, resumiu o executivo da eGenesis. “Tivemos a sorte de entrar nesta área quando entrámos, porque beneficiámos de décadas de progresso e investigação e combinámo-las para tornar isto realidade. Quase temos de nos beliscar para confirmar que não estamos a sonhar. Mas aqui estamos.” Artigo publicado originalmente na edição de Agosto de 2025 da revista National Geographic.